sábado, agosto 25, 2007

My funny valentine

A estação dos anjos não tem novidades. Não tem mosaicos em colorido novo-rico, nem tiradas filosóficas, nem cruzados tomando Al-Usbuna, nem obras de arte. É escura e o ar é esverdeado, a cor está toda na gente, nos saris, nos turbantes, nas sandálias prateadas da cantilena nordestina.

Ando geralmente em observador de silêncio minucioso. Mas esta noite o Chet sussurra-me palavras doces ao ouvido, e estou metida com as minhas ressonâncias internas. Esperando no banco corrido, espreito apenas de esguelha, num quase-reflexo ao movimento de uma pequena pasta de couro manhoso que ao abrir-se revela, no lugar de documentos de alta importância e confidencialidade, duas ou três folhas soltas de palavras cruzadas, uma factura perdida, uns poucos papéis com parcos e indistintos rabiscos. O olhar está pouco voluntarioso, hoje, e do meu co-esperador retenho apenas um fato escuro e a forma dos sapatos bem assentes no chão, as pernas longas em ângulo recto. O ruído dos carris e o quadro electrónico avisam, Destino: Cais Sodré.

My funny valentine
sweet comic valentine
you make me smile with my heart


É raro sentar-me. Os meus percursos metropolitanos costumam ser relativamente curtos e só de pé se pode livremente escolher um filme. Há uma personagem que se destaca progressivamente. Mesmo sentado é claramente alto e grande. Grandes mãos, grandes pés, grande cabeça, grandes orelhas, feições largas. Até espanta como tal imagem leva tão longos segundos a sobressair da mole que se espalha pela carruagem, com o seu fato escuro e os longos sapatos rematando o ângulo recto das pernas. Só quando abre a pasta de couro percebo que os meus olhos vêem agora de frente o que há pouco só quiseram ver de lado.

your looks are laughable
unphotographable
yet you're my favourite work of art


O rosto amplo parece marcado de uma perplexidade residente. Os sobrolhos altos sobre o nariz e descaídos nas têmporas, interrogativos, o lado esquerdo do lábio e do nariz ligeiramente erguidos, como num espasmo muscular que, num rosto aparentemente neutro, uma imagem ou uma emoção não esperada possa ter carimbado há dez anos ou há dez minutos. Ou talvez até haja relatos médicos publicados onde se fale na perplexidade congénita, confesso a minha ignorância. O nariz é grosso, como os lábios, parece ter polpa. Todo um conjunto que poderia ser grosseiro é estranhamente simétrico, quase divertidamente harmonioso. Com a pastinha de couro apoiada sobre os joelhos e enfiado no seu fato escuro, parece uma grande criança a caminho de algum evento que não compreende, mas que é de notória importância. O mais provável, no entanto, é que apenas venha do Banco, a caminho de casa.

is your figure less than greek?
is your mouth a little week?
when you open it to speak are you smart?


Fica subitamente num plano mais afastado quando um figurante redondo, barrigudo, camisola amarela, boné e passe social pendurado ao pescoço pelos tradicionais cordões de sapateiro, se vem prantar junto ao poste, como que sublinhando pela paródia a melancolia do meu protagonista. O camisola amarela aproxima-se da porta e deixa o enquadramento. O foco regressa ao homem grande e de fato escuro que se prepara para sair na próxima paragem. Fecha a pastinha de couro e ergue-se, talvez lentamente, mas correctamente no seu tempo grande e melancólico, os sobrolhos não mexem, arco constante e intocado, a metade esquerda do lábio no seu esforço contínuo para alcançar o fulcro da ogiva que protege os olhos. Os olhos grandes. Dirige-se a onde estou, à porta. Nem por um segundo se apercebe de que é observado, nem por um segundo eu deixo de o observar. Estamos ambos confortáveis. E é confortável assistir à sua saída de cena, lentamente cruzando a porta e poisando o pé no novo cais enquanto o Chet estende nos meus ouvidos os versos finais da banda sonora claramente cantada para este largo buster keaton.

don’t change a hair for me
not if you care for me
stay
little valentine stay
each day is valentine’s day.


As portas fecham-se com o trompete. E eu acordo subitamente e percebo que acabo de perder a minha saída. Vejo os créditos finais e saio no Cais de Sodré.

5 comentários:

Anonyma disse...

Mr. Chet Baker, sim.
Faz-nos acreditar que os sonhos existem...

Curiosamente, e apesar de My Funny Valentine ser um peça belissima, e talvez a mais conhecida do grande publico, não é uma das que mais amo...
O que é extraordinário dado que foi assim que me apresentaram Chet Baker...
Mas...dez mil cds depois (lol) encontro aqui e ali peças bem mais avassaladoras....
Mas CB é sempre CB sem discussões, sem opções, sem comparações...
lol

Anónimo disse...

Vale sempre a pena perder uma saída a troco de um bom filme ;)Beijos

violeta13 disse...

que bonito, meu Deus!, que bonito. fico feliz que realizes curtas dessas na tua retina. até breve, amiga

João Barbosa disse...

o metro presta-se à meditação. bonito texto.

pedro efe disse...

que maravilhosa curta METRagem! :)

ah! e muitos muitos parabéns.