domingo, agosto 31, 2008

cabidela

Ok, simbolizar simbolizar. Setembro começa com um corte. Pode não ser mau. Começa comigo a tentar não sujar a camisola branca enquanto com a mão direita, a única livre, procuro gaze, compressas, bétadine, nada, ah, percebo, devia ter um estojo de primeiros socorros e agora não tenho propriamente tempo para ir tratar disso. O Filipe, a quem peço ajuda na escada, também se apercebe com isto de que tem de ir às compras amanhã. O lavatório, o chão, a caixa dos medicamentos, tudo pinga e escorre vermelho vivo, vermelho meu. A minha casa é um filme gore e os gatos olham o meu estado de semi-pânico, entre o riso, o auto-insulto e o desmaio, enquanto enrolo um turco em redor do dedo a ver se pelo menos estanco a torrente. Sinto-me branca, isto não vai correr bem, pressiona pressiona respira, pensa nas piadas parvas de criança, sai-te a tripa grossa por aí, que a fina não cabe, goza, andar para o posto médico faz-me bem, o vento acorda-me, o movimento impede o torpor, se tivesse como fazia figas para que o posto esteja aberto, o Filipe ri-se, o posto está fechado, deita o ar fora, ele não te falta, é só uma pequena crise de ansiedade, um e dois e... passou. Carro, São José, pontos, então? depois de duas anestesias já não é dor, SÓ SE FOR NO SEU DICIONÁRIO, CARAGO!!!


Ufa... Simbolizar, simbolizar. Comi cabidela ao almoço. E Setembro começa com um corte, profundo, na diagonal, de várias camadas, de muito vermelho. Pode não ser mau. Mas só penso em Wilde e em como o entendo e como nestas alturas o que menos me preocupa é o cérebro sem fundo que o mais do tempo me dá tanto trabalho. Livrai-me, senhor, das dores físicas, que das espirituais trato eu.

caminho de luz




No fundo, são os actores. A indizível Fernanda Montenegro, a maravilhosa Marília Pêra, este puto genuíno e tocante que se chama Vinicius de Oliveira. Porque quando estamos distraídos, Central do Brasil nem se afasta muito, em linguagem, dos ramos do Cinema Novo que no Brasil têm continuado a crescer. E assim seguimos, em velocidade de cruzeiro como o autocarro ou o "caminhão", quando de repente vem um plano que entontece de tanta beleza, de tanta mestria, entrando em arco pelo Pedegrulho adentro em plena classe marginal do Rio de Janeiro, ou embriagando de luz a paisagem desolada que os viajantes atravessam, ou entregando de raspão um olhar, uma emoção que quase se pode palpar de tão subtil, um riso, uma lágrima, um grito. A luz, aliás, fala, e só me lembro de me emocionar tanto com a luz de um filme com Um dia de cão, do Sidney Lumet, primo na rudeza, na clareza granulada do dia, no mistério belo e terrífico do anoitecer, na simbiose com os lugares e a arquitectura, com as personagens, falando com elas, ajudando-as a falar. Belo e terrífico. Como a viagem da infância.

coisas que me fazem chorar




sábado, agosto 30, 2008

da inutil.idade da beleza

Um dia, já eu era velha, um homem dirigiu-se-me à entrada de um lugar público. Deu-se a conhecer e disse-me: —"Conheço-a desde sempre. Toda a gente diz que você era bonita quando era nova, vim dizer-lhe que, para mim, acho-a mais bonita agora do que quando era jovem gostava menos do seu rosto de mulher jovem do que daquele que tem agora, devastado."

Penso frequentemente nesta imagem que sou a única a ver e de que nunca falei. Está sempre aí no mesmo silêncio, deslumbrante. É, de todas, a que me agrada de mim própria, onde me reconheço, onde me encanto.

Muito cedo na minha vida foi tarde demais. Aos dezoito anos era já tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direcção imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham conhecido aos dezassete anos aquando da minha viagem a França ficaram impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezanove anos. Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos, conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto destruído.


Marguerite Duras, O Amante, trad.: Luísa Costa Gomes e Maria da Piedade Ferreira


coisas velhas

Broken Bicycles - Tom Waits & Crystal Gayle

assinónimos

Estes posts em Belo em redor da melancolia, espoletados por um comentário AQUI, não são mais do que variações sobre a beleza, não muito diferentes das que, há umas semanas, assim foram baptizadas. O que faz do ser humano o ser humano é precisamente a capacidade de olhar para si mesmo, desenhar-se, mitificar-se, abstractizar-se no ler da sua própria finitude. A beleza não é mais que o doce sabor de uma tragédia. E o mito do narciso é bem mais do que a efabulação de uma patologia psíquica. É o que nos perde. E o que nos identifica.

para um irmão melancólico — na morte de Marilyn


Henri Cartier-Bresson
Marilyn durante a rodagem de The Misfits, 1962



Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou

Ruy Belo

sexta-feira, agosto 29, 2008

da melancolia — serviço de abastecimento da palavra ao país

Vieram ter comigo dos lados do mar. Eram três, eram três mil. Vi que era pão que procuravam ou que não era pão que procuravam. Pus-me a distribuir por eles as minhas palavras: árvore, pássaro, mar, criança, rapariga, mulher. A cada palavra minha eu ia-me esvaziando. Era a vida, a minha vida que se ia. Eles ficavam incendiados. Nunca tinham pensado que se pudesse comunicar assim coisas próprias. Vieram mais, muitos mais dos lados do mar. Disse-lhes: morte, deus. E caí redondo no chão. Naquele dia ficou instituído o serviço de abastecimento da palavra ao país. Ainda vieram ter comigo, dizendo para eu arranjar outra designação, que aquelas iniciais não podiam ser. Mas eu já habitava plenamente a minha morte, meu planeta desde tenra idade.

Ruy Belo

da melancolia — um dia não muito longe não muito perto

Às vezes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer-me que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada para te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?

Ruy Belo

da melancolia — a mão no arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

Ruy Belo

texturas 2.0




Bordeira, Agosto de 2008

texturas



Cordoama, Agosto de 2008
fotografias de Manel e de Mar

um país olimpicamente triste

Foram os Jogos Olímpicos com o melhor resultado de sempre para Portugal. E foram os mais reveladores da nossa mesquinha mentalidade, capaz de deprimir o maior dos optimistas [não, não é nem nunca foi o meu caso, não penso que uma mosca dentro de casa ande sempre à procura da saída, mas por via das dúvidas abro-lhe as janelas...].

Toda esta palhaçada é fácil de resumir. Gastamos quase nada com os nossos atletas, enquanto inundamos o negócio futebulesco de benesses —nada de pessoal, eu gosto de futebol, o desporto, não o circo. Temos um presidente do comité olímpico que diz que se demite e depois afinal não, afinal temos uma medalha de ouro, dá-se o dito por não dito e cá ficamos a nadar, como sempre, entre os bacalhaus a demolhar. Temos atletas que falam como crianças no pátio durante a aula de educação física e um comité olímpico que reage como se fosse o maná de todos os atletas que recebem ninharias para se preparar, trabalham, estudam e treinam, vão aos jogos sem o acompanhamento dos treinadores, e passam de quatro anos de preparação anónima para a esperança de todo um país desprovido de auto-estima e de horizontes, que num momento os afaga e no seguinte os espanca. Temos um velejador de primeira em pico de forma que abandona as competições a chorar, dizendo que não aguenta mais, depois de um magnífico quarto lugar e uma medalha falhada por muito pouco. E no meio disto tudo, atletas e jornalistas fazem o cerco a uma medalha de prata que, no seu direito de atleta, se exprimiu sobre a mentalidade amadora que regeu os seus colegas, sem ofender ninguém, dizendo apenas a verdade.


Cesto de caranguejos. Todos ralham e ninguém tem razão. E quem se lixa é quem se abre ao mundo e fala honestamente. Trata-se Vanessa naquela base do "esta acha que é melhor que os outros". A chatice, meus amigos, é que é mesmo. E não fez nada de censurável. Já o comportamento invertebrado do presidente do comité olímpico passa incólume, aceita-se como se fosse ético, cala-se como se fosse digno. Poder, quem o tem tem ascendente, poder, quem o tem faz-se valente...

a felicidade é qualquer coisa parecida com isto

De volante na mão, descer em Mushaboom, subir em Buena.


Buena - Morphine

o meu aniversário é um dia como outro qualquer 2.0

Há poucas pessoas que me fizessem passar um fim de aniversário no casino. Mas para trabalho de campo é um maná. E para a alma também acaba por ser, porque entre as slots, as gravatas, os dourados e um público pé-descalço a cantar a paz o pão habitação saúde educação, há um Lynch que se ri e se passeia. Ainda ganhei um euro e meio e acho que só agora, horas depois, começo a perceber como —é a iluminação do Jameson, provavelmente. Ainda dancei Prince e Dead or Alive e Culture Club. Ainda tive risos, carinhos, abraços, conversa boa, depois de uma farinheira com couve que me soube pela vida. E a prenda, ai, a prenda das prendas deu-ma o meu mestre, que veio ao encore e brincou com as horas: —Alguns já perderam o último comboio e a Joana já não faz anos...

E a seguir... isto.

O Primeiro Dia - Sérgio Godinho


... todos são. Está sempre sempre tudo no início. É esse o segredo de para um velho ainda poder ser cedo. Começo mais um primeiro, o trigésimo terceiro de todos os primeiros anos que tive até aqui. Nunca me senti tão desperta. Nem tão criança.


E enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida...

o meu aniversário é um dia como outro qualquer

Cheirar a esteva. E o mar. E os mares. E o vento, em carícias agrestes que exigem vigília. Sentir a luz amarela a chorar na minha pele, a areia e a estrada sob os pés. Escorrer o olhar sobre as falésias e as pessoas e deixar o medronho descer em fogo pela garganta. E com os grilos nos ouvidos, percorrer toda a via láctea no aconchego dos braços de um urso polar.

segunda-feira, agosto 25, 2008

no caminho aberto

Supa Sista - Ursula Rucker

Até mais logo!

entre [na releitura...

... percebi que há poucos meses — anos, coloquei na carruagem que desejava vazia um desconhecido; agora percebo que o fiz para me convencer de que não eras tu; agora sei claramente que o braço que me cerceava o colo era o teu; não te quis adormecer na carruagem que desejava vazia...

... porque já então eu assim a desejava sem saber.]

divergências significantes: a fauna

Só tenho pena que o Da Ponte não tenha conseguido meter no libreto da ópera uma das melhores frases da peça de Beaumarchais. Acusado por todos de estar, como sempre, bêbedo, o jardineiro António responde à altura do maior dos filósofos: —Beber sem ter sede e fazer amor todo o ano são as únicas coisas que distinguem o homem dos outros animais.

Uff...

Finita la commedia. Acabou tudo em bem e não viveram felizes para sempre, porque a mère coupable Condessa Rosina ainda há-de ter um filho de Cherubino, mas isso agora não interessa nada, os bons costumes estão para já salvaguardados e os enganos sopram no zeffiretto que sacode as agulhas dos pinheiros do jardim Almaviva. As camadas infindáveis de leitura de uma obra-prima são promessas sucessivamente cumpridas de epifania, e a música tem o dom de tudo fazer sobreviver mesmo a um embrulho tradicional, velhote, gasto. Desde que o material humano cumpra e se divirta, Mozart, Da Ponte e Beaumarchais chegam incólumes em cada curva, em cada ironia, em cada sombra, em cada rasgo de luz. Ali também está uma parte de mim, e senti saudades de cada momento que já me passou pelo corpo, das árias da Susanna, das da Condessa, de ouvir a Nezes cantar o Cherubino. É um privilégio ter sentido música desta por dentro, pelos seus meandros, pelos meus. É possível que seja a principal razão pela qual não trocava o meu percurso errático por nada.


Também graças a esse percurso, me vejo metida nestes assados. Hoje foi tudo bem mais calmo, podia ser perfeito com tempo e ensaios, mas pronto, não vale muito a pena perder tempo com "ses". Aqui o bombeiro agora parte para umas curtas conversas com o sol e o sal do sul.

domingo, agosto 24, 2008

abandono — a culpa que me desculpe


Anjos, Agosto de 2008



Pé depois de pé, sigo o caminho que tracei no mapa. Desviei-me, aqui e ali, perdi tempo, gastei energia, e tudo ganhei, os músculos prontos, em movimento, em remoinho, um músculo de entre todos que dificilmente se deixa comandar, saltando do peito a bombar, a bombar, a gargalhar, a cumprir a sua função e a aceder, sim, tratas-me bem e em troca dou-te a mais franca das minhas carnes para que a leias. Desviei-me, aqui e ali, mas não perdi de vista o caminho. O meu caminho só, o meu passeio público. Será talvez o instinto de sobrevivência, remetendo o amor ao seu devido lugar, um amor, artigo indefinido. E no entanto nada é límpido, nada é líquido. Porque o espaço que ocupaste, o pedaço que ainda ocupas, talvez não seja largo, mas é tão profundo que a cada passo que dou sinto que te abandono, e quase me recrimino pela fraqueza que me força a fazê-lo. Mas há muito que tenho esta mira milimetricamente afinada: a culpa não é para mim. Nunca fui mulher de arranjar desculpas. Disse-te adeus e respirei...

coisas que me fazem sorrir [saludos, viejo polaco]

Naranjo En Flor - Roberto Goyeneche


Todo o bom principiante é um céptico, mas todo o céptico não passa de um principiante.

Johann Frederik Herbart

sábado, agosto 23, 2008

divergências significantes: a simbiose


Henri Cartier-Bresson, 1908-2004


Ao repescar estes textos, que como já disse têm praticamente cem anos, li na diagonal algumas contextualizações oferecidas a quem lançou o desafio, e regressei àquele sentimento de estranheza que tive há cem anos atrás. A maioria das pessoas vê nesta imagem um casal ligado, apaixonado, com história ou com futuro, vê a simbiose, a troca. Eu nunca vi tal coisa. A sensação de desconforto que esta fotografia sempre me trouxe passa pela intuição do sacudir do comboio nos carris, mas assenta sobretudo naquele gesto de cárcere que envolve o pescoço da mulher. É quase violento, no seu estatismo, no ar que não deixa entre o seu antebraço e a traqueia alheia, parece quase difícil que ela respire, que ela possa decidir mover-se. Não é troca, é uso.


Olho as minhas palavras. E vejo a minha fraqueza, a minha esperança, a minha resistência ao escuro. Sem notar, tive de recorrer a um estratagema simples para expressar a minha incomodidade, e dei-lhes uma relação contingente, efémera, morta antes de existir, chamei-lhes estranhos, desconhecidos, acidentes. Quando o contacto dos corpos sussurra que o não são. Que se conhecem bem. Que se amam, até, talvez. Não consegui embeber tal relação no desconforto com que a imagem me atinge. A negação é o diabo...

Hoje, provavelmente, o texto seria bastante diferente. Já voltei a viver sem medo.

vent as you go

I Have the Moon - The Magnetic Fields

We have walked in ancient times
And we've been burned for many crimes
We have ended many lives
But we never really died
You have the sun, I have the moon

You have to fly around the world all day
To keep the sun upon your face
I'd like to come and comfort you
But I'd be blinded by the blue
You have the sun, I have the moon

You're bound to die under the sun
And I'll be doomed to carry on
You have become like other men
But let me kiss you once again
You have the sun, I have the moon


Stephen Merritt

insight

Conheço pessoas que se enchem com a dor dos outros. Que percorrem os caminhos deixando pequenos marcos de tristeza nas bermas, culpados na sua boa consciência, inchados no seu ego sôfrego de amor. Mas não são os encantos do caminheiro que se definem no amor perdido e resistente, por mais marcos que enfeitem o seu caminho. É apenas o coração de quem o vê passar que fica à mostra na sua vermelhidão, que face à morte iminente se descobre inesperadamente vivo. Os mortos também andam.

contexto — carruagem vazia















imagem manipulada por El-Mau


Acredita em mim, eu juro que não sabia. Não sei o que tomou conta de mim, o que tomou conta do ar para me fazer colapsar desta maneira e adormecer nestes braços. Juro que não me dei conta, perdoa-me a cegueira, foi o cansaço, a exaustão, os sobressaltos duros e negros deste comboio a cair.

Ainda há pouco respirava contigo, a cabeça abandonada no teu peito, o coração cerceado pelos teus braços. Sonhava? Sonhava, pois. Que outra explicação pode haver? Juro que não sabia quando me deixei adormecer, quando me permiti intoxicar lentamente pelo baloiço descarrilado, pela doçura do sono respirado em conjunto. Ele? Não sei o que pensou. Mais certo será que nada tenha pensado. Soltou os braços e recebeu o meu tombo. Foi generoso, à sua maneira. Mas depois foi apertando, apertando. Suponho que não soubesse sequer evitá-lo...

Ingrato, o despertar. Bizarro. Um bem-estar que passa a mal enquanto com os dedos desfaço os pequenos nós de maquilhagem que ainda se me agarram às pestanas, enquanto eu esfrego um olho. Dói-me o pescoço, tenho os rins feitos em papa e o ouvido esquerdo louco com o tique-taque que há pelo menos uma hora o vem moendo, insidioso. É tarde. E tu não usas relógio. Ainda há pouco respirávamos juntos e já os fôlegos se contestam, misturados no arfar bruto do comboio. Estes braços desconhecidos apertam-me o pescoço que me dói insuportavelmente. Liberto-me suavemente, escorrendo pelo meio deles, como uma cobra. Estalo as vértebras para que o ar possa voltar a passar livremente, ao seu ritmo e não seguindo um passo alheio. Olho o seu rosto adormecido. Nunca o vi, estranho-me e estranho-o. Juro que não me apercebi de quem era, de quem eu era, quando me abandonei. Acredita-me. Foi o escuro, foram os olhos pesados, foi o coração apertado, foi o seu cheiro nos meus poros despertos. Ainda está escuro, mas já não tenho vontade de dormir, mau-grado todo o sono que me pesa nos olhos. A carruagem está agora vazia, já as respirações largaram os corpos em atraso e alcançaram por si o seu destino. A carruagem está agora vazia, e eu jurá-lo-ei, jurá-lo-ei até que me creias. Está vazia.

contexto — os pardais não voam








imagem manipulada por El-Mau





Os pardais não voam, assim encasacados. Hei, puto! Não ouves? Larga esse sobretudo, ainda tens bons ossos para aguentar a humidade espessa do norte. De guarda-chuva na mão e vais assim, assim cabisbaixo, assim como se foras um velho, assim arrastado, assim-assim? Que se passa com os miúdos de hoje, que parece que levam o peso do mundo às costas...? De guarda-chuva na mão e não o abres? Nunca ouviste falar de miss Poppins, de fitas de nastro e de cetim em tons pastel, de canções de inocente rebelião contra os ditadores que te protegem entre muros de casas aquecidas e te dão ao menos três refeições quentinhas por dia e um catálogo de repressões para passeares pelo teu mundo adulto?


De que me falas tu? Não te entendo. Que protecção é essa que nasce das tiranias? Os meus pais ficaram para trás, não os vejo nesta fila que anda em centopeia, portanto ficaram para trás, há já uns meses que ficaram para trás neste caminho que palmilho há mais anos do que sou. Não quero pensar que não ficaram para trás. Se assim o fizer, que me resta senão aceitar que foram para a frente e se foram para a frente como os reencontrarei? E se foram para a frente? Se foram para a frente tanto mais me pesa este sobretudo, mais se me fecha este guarda-chuva; este enorme guarda-chuva, ainda ontem era da minha altura. Rivalizam entre si, as botas e o sobretudo, na aliança desnatural com a gravidade. Puxam para baixo e puxam e puxam, e no entanto quando me estenderam o sobretudo ele flutuava como as penas das galinhas que fugiam espavoridas das minhas corridas, essas corridas tão gargalhadas que até pareciam corridas de criança. Enganaram-me, com este sobretudo. Já as botas... Escolhi este gorro porque era fofo, era o mais fofo da vala comum de chapéus cobertos de fuligem que passaram à nossa frente antes da viagem. Era fofo. Havia de puxar-me para cima, para cima, para as nuvens, hop! Mas as botas, o sobretudo... o gorro fofo é fofo, mas nada mais. É fofo e fraco e desistiu de voar à primeira luta perdida contra o sobretudo. Depois vieram as botas, aqueceram-me os pés carregados de neve e morreu-se-me a esperança de voar. Sou um velho. Já me lembro mal, mas se bem me lembro, não era velho quando nasci.

Foi ontem que cheguei a Orsay sem entender ainda por completo de onde vinha. Cheguei a Orsay vindo do nada, e no entanto nada me parecia Orsay. Os meus pais seguiram em frente, e eu nunca consegui alcançá-los, nunca o quis, ainda não o quis, ainda não. Conheço bem os trilhos da terra. Balancei-me em caminhos de mar. Mas os do céu... Bem tentei, mas as botas não me deixaram e perdi o guarda-chuva. É por isso que te berro, que me apetece quase bater-te, a ti, assim velho e arrastado em preto e branco. Olha à volta, e verás o tudo que te cerca. Verás como te constrói e alicerça esse peso de injustiça que te verga. Verás como tamanho veneno te vacina. Que nervos, esta criança, este ancião, este espectro da sobrevivência!... Hei, puto? Nunca ouviste falar de guardas-chuva voadores?

contexto





Fez ontem cem anos que nasceu Henri Cartier-Bresson. E também estão perto de passar cem anos sobre os dias em que escrevi para duas das suas imagens, respondendo ao desafio do El-Mau. À suivre..

sombras bizarras

Nunca tinha tido aquela sensação. Uma projecção, total, aquele arco puxando as sobrancelhas, a expressão do olhar, os jeitos da boca, o tom com que a frase começa. Tudo reconhecido, mas no rosto errado, nos olhos errados, no corpo errado. Já tinha visto, claro, em filhos que num momento se parecem em demasia com o pai, em materializações de uma imitação, quando vemos para lá do traço e encontramos campos morfológicos. No limite, nos cães que se parecem com os donos. Mas aquela sensação... nunca tinha tido. Fiquei estática, tentando perceber se estava a olhar o original ou uma cópia. Tentando perceber se tu não passas de uma cópia. Ficaste sem carne, de repente. De tal modo, que o discurso se esboroou num choque pasmo. Eram outros olhos, aqueles, e estavas assim presente, tu que estás cada vez mais distante. Tenho de virar as antenas, estão demasiado apuradas. Mudar a frequência. Não quero receber mais sinais. Não quero mais. Chega.

sexta-feira, agosto 22, 2008

da idade

Sempre fui melancólica. E quando digo sempre, digo sempre, desde criança. Mas até há não muito tempo, dava-me ao trabalho de o tentar esconder.





Agora tenho mais que fazer. E isso agrada-me.


[obrigada, Diogo]

o lugar estranho



















Anjos, 20 de Agosto de 2008


Tantas vezes em que simplesmente não sei onde estou, não quero território, e outras em que me parece que sempre aqui morei, é aqui, até quando não sei, que está certo. Achei graça a uma frase que ouvi ontem: same where, different when. Pode ser só isso. A casa é muito, muito mais do que um lugar físico. E esta é minha.

o polvo volta a atacar

Belo. De manhã tinha o dia todo delineado e ia descer ao mar vicentino no sábado, o mais tardar. À hora do almoço gira tudo, e hop, hoje vais ser coordenadora de legendagem para as Bodas de Fígaro. Mas ensaio? Não, minha linda, é a estreia... a ESTREIA!!!????

Ir buscar a partitura, acabar as anotações em contra-relógio da Paula, e mesmo assim sair de casa com dois actos por anotar. Nos últimos anos não percorro assim tanto a marginal em que vivi, e, caramba, não consigo deixar de me surpreender com o número de rotundas. A sério, não terão exagerado, assim, só um bocadinho? Cascais, por sua vez, continua linda, apesar de atravancada, e cada vez mais parecida com uma construção de legos habitada por pinipons de camisola às riscas. O percurso fez-me bem para respirar fundo e relaxar: é de alto risco, pois, e por isso mesmo não devo nada à perfeição, todo o acerto será uma vitória, um pouco como o guarda-redes antes do penalty. Quatro horas de penalties. E não é que fui defendendo? Considerando que o o segundo acto foi revisto e o terceiro anotado na hora anterior aos primeiros compassos da abertura, e o quarto nos vinte minutos de intervalo, diria que correu mesmo bem. Se a isso acrescentarmos dois cortes não assinalados na partitura e uma má tradução, diria até que foi perfeito. Tudo secundado por um Cherubino e uma Condessa de primeira apanha. Pronto, mais uma secção a acrescentar no currículo: bombeiro. Domingo há mais. E agora com tempo para limar arestas [jejeje], até é capaz de dar tempo para ir à casa de banho durante as quatro horas da récita. Não esquecer de levar outra vez chocolate. O Mário não resiste, a Cremilde finge que não vê, e sempre vai aquecendo a noite.


Noite de vários lucros, mas há dois que ficam necessariamente à frente: Mozart e voltar a ouvir a gargalhada da Marisa.

quinta-feira, agosto 21, 2008

17,67

foto THOMAS KIENZLE/AP



Néeeeeeeeelson!!!!!!!! Eu nem queria dizer, para não agoirar... mas eu estava com uma fezada. Foi bonito, o espírito, a resistência de um atleta que decidiu que o folclore típico da mesquinhez portuguesa não havia de sabotar a sua vontade. Foi bonito vê-lo lutar. Foi bonito saber de antemão que o último salto não seria nada que se visse, porque os olhos já não tinham força para esconder a emoção, as lágrimas. Foi bonito ver a inteligência, a segurança que não é arrogância, a humildade que percebe onde se faz a diferença. Da Naide, fico à espera da próxima. Este ano tinha uma fezinha nela. Talvez daqui a quatro haja outra fezada que se concretize.


Néeeeeeeeelson!!!!!!!!



Logo depois do último salto, tive de sair à pressa. As ruas estavam impávidas. Nem uma bandeira ondulava. Toda a gente parecia alheia. Nada aconteceu. Não há bolas ressaltando na equação. Pois.





Néeeeeeeeelson!!!!!!!!

e alguém me diz que isto representa bem o concerto de Paris




Caramba, man. Eu percebo a tua embirração, acredita que percebo. Mas não podias dar cá uma saltada um dia destes? É que já são décadas de espera, não se faz. A malta oferecia-te até uma daquelas senhoras de Fátima que brilham no escuro, para levares para casa.



...

Claro que a pessoa que esteve no concerto de Paris foi devidamente espancada com mocas e varapaus. Encontra-se neste momento na unidade de traumatologia de Santa Maria. Diz que ainda não recebe visitas. As if I care.

quarta-feira, agosto 20, 2008

o carro escuro — daguerreótipo

O cérebro é uma máquina. Mas há imagens que levam tempo a revelar e de repente surgem penduradas na corda. Daquelas imagens não pixelizadas, das que obrigam a amarelar as mãos no nitrato de prata e só ao fim de alguma escuridão ganham contornos. Era escuro e grande, o carro. Tu ias de verde e rias e mudaste repentinamente de expressão quando me viste. Soube imediatamente que carro era. Sei agora que estava certa. Sei, portanto, que dia era. Sei o que ias fazer. Acredito em coincidências, mas não deixo de lhes achar graça.


Nesse dia andei Lisboa quase toda. Ainda chorei muito. Vi um grande filme. Escrevi uma curta. E fiz uma ferida no pé, de tanto caminhar. Carne viva.


Já está quase sarado, o pé. E o choro foi tanto que acelerou o calendário.



Numa semana passaram dois meses. E eu desejo que esse dia te tenha sido tão importante como me foi a mim.

o meu puto psicopata

A propósito da Red Bull Air Race, na Ribeira.

— Será que vem algum kamikaze? Iss'é que era...

terça-feira, agosto 19, 2008

sessenta — adagio para cordas

sessenta — electrodoméstico

Laura em Agosto


Oeiras, 17 de Agosto de 2008

Eeeeeeeeee... já está cá fora! Miúda de coragem, que vir a este mundo não é para qualquer um. Bem-vinda, Laura!

kit rodoviário de sobrevivência em Lisboa




copyright de Catarina C.

segunda-feira, agosto 18, 2008

as coisas que uma pessoa nunca se lembra de limpar

O óculo da máquina de lavar roupa. Até que um dia se pousa lá o dedo e se percebe que não há outro remédio senão ser o armagedão de uma já evoluída sociedade de ácaros.


Estas coisas deviam ter um sistema qualquer de auto-limpeza. E eu devia ter uma mulher-a-dias. Ou um homem.

e já agora

Até Londres, que pelo menos não vai obrigar-me a estar de olho aberto até às seis da matina para ver correr a menina. Viva o meridiano de Greenwich. Vá, ao menos a final do triplo salto calha à tarde...

Parabéns à Vanessa Fernandes. E aos Gatos, que tanto contribuíram na preparação desta fantástica atleta.

reflex — o que um actor pode aprender com uma triatleta




Este spot é maravilhoso. Por todos os motivos. E no fim de tudo ainda me põe a pensar no texto, nas palavras, na interpretação — deformação profissional, enfim. Vanessa Fernandes usa aparelho nos dentes e é ligeiramente belfa. Palpita-me que não tenha preocupações por aí além quanto à correcção da elocução e da dicção, tem bastante mais em que pensar. Imagino que não tenha grandes dilemas ou decisões de interpretação quando faz uma publicidade. E no entanto, nesta locução, está tudo certo. Pela razão única de que ela sabe bem o significado e o peso de tudo o que está a dizer, e as suas frases estão, por isso mesmo, carregadas de imagem. Diz as palavras com verdade, ainda que elas já estivessem escritas, e isso é a lição, sem adjectivo, a lição e ponto. Tudo o resto é lana caprina.

do alívio

Já passou.


... caramba.


Um glândula irrequieta, no fim de contas, nada mais. Mas o tamanho do alívio é a recompensa milionária de qualquer drama queen que se preze...



La Llorona - Chavela Vargas

nó na garganta

Antecipação.


...
Não vale a pena.
Espera.



...

A seu tempo.
Vai desatar-se. Faltam poucas horas.

é igual a éme cê ao quadrado

Numa semana passou um mês.




E não é relativo.
Passou mesmo.

insight

Na verdade nunca te dei o que querias. E não me arrependo. Terias feito ainda mais estragos.

leste







Agosto de 2008

oeste

Agosto de 2008

open space

E bom, por agora fica assim.

domingo, agosto 17, 2008

coisas que me fazem chorar

Ginastas, em geral. E esta prova de assimétricas. Sempre. Porque é tão perfeita que se permite rasar constantemente o abismo. A tal falha que me define o belo.


Nadia Comaneci, Montréal, Agosto de 1976

olha, fartei-me

E andei a pintar paredes com ardósia. E não tenho dinheiro para ir às compras, portanto...

ex-machina

Tunes, Setembro de 2006



Nem sempre são os actores que se movem frente a um cenário fixo.

sábado, agosto 16, 2008

mecanismo


How wings are attached to the backs of angels, de Craig Welch


Mecanismo. Cada um encontra o seu. Lâminas de protecção, grades que deixam ver e quase tocar o que tanto se deseja, o que tanto se rejeita. Mecanismo. Cada um inventa o seu. E, naturalmente, nunca pode haver ninguém que melhor encaixe na máquina do que o próprio inventor, medida de todos os rolamentos.

we all are




E espreitem AQUI a versão do Zappa. Porque para maluco, morsa e meia.

fresta

Descobri uma coisa importante, sabes? Sinto que não tinha grande coisa a aprender contigo. E acho que sempre o senti. Estranho.



Bizarro, mesmo. Dado o tamanho do vazio.


Tóquio, Janeiro de 2000




[Sempre gostei desta fotografia, pelas mesmas razões pelas quais posso considerá-la falhada. Não há luz fotografada. Não há feixes oníricos rasgando a penumbra, apenas a intuição das sombras na madeira. Falhada. Mas tentada. Por isso me é tão querida.]

sexta-feira, agosto 15, 2008

de passagem



— Então, ficas?
— ... hã?

Lisboa, 15 de Agosto de 2008

quem diz que a ASAE é uma polícia de costumes?

Graça, 15 de Agosto de 2008

joana francesa — para a polegar

Joana francesa - Elis Regina


[I know what you mean...]

academia - adenda

Não há quem seja apenas escultor, apenas pintor, apenas arquitecto. O evento plástico realiza-se de uma forma una ao serviço da poesia.

Le Corbusier



... há pessoas que sabem do que falam. Digo eu, que não sei nada.


[obrigada, Puto.]

ai, apetecia-me tanto...



Mas não, não vou dizer nada. Apenas que é lindo, inteligente, luminoso, espirituoso, despretencioso, requintado, inocente. Em tempos e silêncios passa todas as emoções, todas as palavras que as personagens, na sua binária condição, não dizem, e entrega-nos a maravilha humana que é a construção de uma identidade pela memória. Entrega-nos o melhor de nós.

Não há mesmo muito mais para dizer. Wall-E é um filme para ver fresco, para risos claros e silêncios inesperados. Claro, para a lagrimita ao canto do olho, mas sem uma pontinha de travo a farinheira.


... e bom, a ver se umas certas pessoas começam a compreender o poder dos musicais, cof cof. Não, no filme não há cantorias, descansem. E também não tem cenas eróticas, ao contrário do que o teaser abaixo pode parecer sugerir.


as mulheres e os cavalheiros

Diz o comentador dos Jogos Olímpicos que no atletismo são as senhoras que começam.



...


As senhoras. Porque vão correr de saltos, não é?






...

Olha, a primeira partida foi falsa. Já se sabe que as mulheres são umas cabras. A segunda partida também pareceu, mas eles resolveram não assinalar. Para evitar galinhagem, com certeza.

quinta-feira, agosto 14, 2008

às vezes vivemos num relâmpago e morremos o resto do tempo.

Acho que esta mera frase dava uns quantos posts sobre a beleza. Porque tem em si toda a falha essencial. A decomposição da luz.

academia

O amor nasce de um momento de poesia, e não sou eu que o digo, é uma insustentável verdade do ser. Por vezes é detectável, esse momento, outras vezes refunde-se e não se consegue seccionar de uma massa demasiado espessa. Mas não nasce de absolutamente mais nada que não um único, por vezes mínimo, momento de poesia. Quem não sabe isso, não sabe nada que valha a pena saber.

tao

Porque, bem vê, só quando estamos esgotados (de ternura ou de qualquer outra força) reconhecemos a nossa inesgotabilidade. Quanto mais dermos mais nos sobra, desde que prodigalizemos - é uma coisa sempre a brotar! Sangremo-nos - e seremos fonte viva.

Marina Tsvietaieva, Noites Florentinas, Oitava carta



Há coisas que dizemos. Como esta, assim: acho que só agora compreendo na totalidade o alcance destas palavras. Mentira. Já antes o compreendera. Mas o esquecimento é o fim do arco da memória, arco antigo guiado pela vara guiada pela mão direita de um miúdo canhoto. Rasgão de luz, a relação com uma sequência de palavras faz-se sem se ver e adormece e acorda e adormece. E quando acorda dizemos: acho que só agora compreendo na totalidade o alcance destas palavras. E no fundo sabemos que nunca soubemos totalmente o que quisemos dizer com "totalidade".

Acho que agora, talvez. A dádiva regenera-se em si mesma. A dor sangra. O amor guardado apodrece. Sangue e podridão. Duas imagens muito directas no que à vida e à morte diz respeito. Hoje alguém me dizia, eu não quero estar vazio aos 24 anos. A essa recusa brindo, a essa e à recusa de apodrecer antes do tempo certo. Que é aquele em que a casa ficou desabitada e o inquilino se tornou musgo nas paredes, só vapor condensado, nada de sangue. O tempo em que já nada se sente.

quarta-feira, agosto 13, 2008

coisas que me fazem chorar [para o k.]

Lilac Wine - Nina Simone


James Shelton, Lilac Wine, por Nina Simone


... porque a versão do Jeff Buckley é de fazer chorar as pedras da calçada, e mesmo assim a Nina arruma-o a um canto, não é? Como é normal, aliás. Apesar de ambos terem em comum aquele ar de quem está a cantar na casa de banho enquanto obras-primas lhes saem boca fora e dedos adentro. Uns filhos da grande puta, era o que era...

frame a frame

É assim que me voltam algumas situações, algumas conversas, alguns silêncios, frame a frame. Às vezes fazem sentido, às vezes são surrealistas, às vezes são feios, às vezes, como este, fazem-me rir. Fazia-te impressão não haver mulheres na banda, disseste. E ao mesmo tempo dissemos a mesma frase, só o final divergiu. Onde eu vi camionistas, tu viste faunos. Bem dizia o Vincent Vega, no fundo é tudo igual. Mas o busílis está sempre nas "little differences".

bolonha

No metro, ainda agora, dois cromos-tipo aqui da zona, quarentões de fato de treino e dentes estragados exibidos num sorriso de aparente auto-confiança.

— Não, é que não estás bem a ver. Eu só me faltam três anos para ser bacharelado, e poder dar aulas de História. Só que já não tenho cabeça, já não tenho vagar para isso.


Giro. Faltam-lhe três anos a ele e a toda a gente que nunca andou numa universidade. Mas sem mestrado e doutoramento bem comprados também não ia longe. Ainda bem que já lhe foge o fito para outras andanças, era um desperdício de tempo. Mas fico a pensar nas coincidências da vida. Eu também fiquei bacharelada em três anos, curioso. Nem dei por ela. E em mais um dei por mim dr. E agora? Se não der em mestra de uma treta qualquer, esses dois títulos são verdadeiros tesouros escondidos a meio caminho entre a árvore do enforcado e o lago azul. Valha-me Long John Silver...

terça-feira, agosto 12, 2008

tao

Continuo a querer-te como sempre, e no entanto não mais hei-de voltar a querer-te como queria.

must I dream and always see your face?

coisas que me fazem chorar

Disse-te adeus e morri - Amália Rodrigues

José António Sabrosa e Vasco Lima Couto, Disse-te adeus e morri, por Amália Rodrigues

nunca tinha pensado nisto assim...

"Onde é que se consegue juntar os melhores atletas do mundo num refeitório? Nos Jogos Olímpicos."

José Couto, antigo nadador olímpico



E novamente, toda a grandeza se pode reduzir às pulsões mais básicas do ser humano. Neste caso, a fome.

a bandeira invertida




Uma arca preciosa, uma silenciosa torrente de questionamento filosófico e humano. Um filme igual aos seus actores, virtuosamente em underacting. Aliás, um show de cinema e de actores. Susan Sarandon e Tommy Lee Jones são gigantescos na emoção e na contenção com que atravessam O vale de Elah. E o desconforto fica, ludibria esse sítio secreto da nossa mente, habituada aos thrillers de guerra, que espera a conspiração, espera os segredos cabeludos, espera o davidiano veterano contra o golias federal. Mas só recebe um cão atropelado no Iraque e uma bandeira invertida. E uma estranheza de se saber humano. Porque o carro azul parece verde sob a luz amarela.


... podia, sem dúvida, fazer um post-testamento à conta só dos olhos de Tommy Lee Jones. Mas a verdade é que não me apetece dizer mais nada, senão que daqui em diante vou estar atenta ao nome de Paul Haggis.

segunda-feira, agosto 11, 2008

the words of the prophets are written on the subway walls

Rua do Carmo, 11 de Agosto de 2008

quoth the raven, "Nevermore!"

Perseu está a verter

Parece que esta noite há chuva.

sequenza

III.Presto - Assai meno presto - Simon Rattle.Wiener Philharmoniker


Ludwig van Beethoven, Sinfonia no.7, opus 92 em Lá maior, III andamento: Presto—Assai meno presto, sempre por Rattle e a Wiener Philharmoniker. Para evitar descompensações...

coisas que me fazem chorar

II.Allegretto - Simon Rattle.Wiener Philharmoniker


Ludwig van Beethoven, Sinfonia no.7, opus 92 em Lá maior, II andamento: Allegretto, por Simon Rattle com a Filarmónica de Viena

pois

Anjos, 11 de Agosto de 2008





[... era de esperar que amanhecesse assim.]

coisas que me fazem chorar

In A Sentimental Mood - Duke Ellington & John Coltrane

Duke Ellington, In a sentimental mood, por Duke Ellington, John Coltrane, Jimmy Garrison e Elvin Jones

noite — luto


Anjos, 11 de Agosto de 2008


Sabes já que quando amas não há luto real que possa partir do insulto. Aos idos que deixam vento no coração é preciso dizer adeus com uma carícia. Só então podes deixar de ver roxo em cada reflexo de amarelo. A perda não tem outra cor primária que não a tristeza.

dia — destroços



Santa Catarina, 10 de Agosto de 2008


House Of Cards - Radiohead

domingo, agosto 10, 2008

enquanto há sol

Enquanto há sol é mais fácil domar os caudais. Enquanto há sol os diques respondem às ordens, as águas comportam-se, restringem-se, recolhem-se em pudor, em desvalor. Mas desde sempre sussurra o walking bass... it begins to tell 'round midnight.

coisas que me fazem chorar

Beethoven: Piano Sonata #15 In D, Op. 28, "Pastoral" - 2. Andante - Alfred Brendel

Ludwig van Beethoven, Sonata no.15 em Ré maior, opus 28 "Pastoral", II andamento: Andante, por Alfred Brendel

às vezes

partindo-se [what's to become of it?]

Lisboa, 10 de Agosto de 2008



Senhora, partem tão tristes
Meus olhos, por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora de esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.


João Roiz de Castelo Branco



This Love of Mine - Little Jimmy Scott

encerramento — yet another

Um grande concerto, para a despedida do ano, e se havia coisa da qual sabia estar a precisar era de uma boa noite de sentidos e jogos sonoros, energia bruta e dura e refinada na sua liberdade. Curto e grosso, do que precisava era de onze grandes músicos playing their asses off, e foi o que tive. A metrópole feita arte, o movimento constante, a ordem que consegue surgir no meio do caos para nele logo submergir de novo, para se render ao sopro, à energia. Trânsito e multidões entre bocais e palhetas, uma sirene de ambulância saída de um violoncelo, um boi de um contrabaixo, dois bateristas — o que para mim é à partida one drummer too many — e a revelação nos duetos, na des-ordem síncrona, na inteligência que sobrevive até a baquetas partidas ao primeiro ataque. Além da experiência sensual que é sempre o barítono de Mats Gustafsson.

Já lhes perdi a conta, aos encerramentos. Se há espaços sem tecto que me formaram a personalidade, foram a festa do Avante! e o Jazz em Agosto. Termino mais este com as perguntas do costume. Entre docs, conferências e anfiteatro, a nata das natas continua a aportar em Lisboa. A.N. [antes de Neves, ou melhor dizendo, e.N., entre Neves] era sectário, o nível era altíssimo, a linguagem tendencialmente mais ligada a algumas raízes, mas acabava por haver espaço para muita coisa. Agora, d.N., continua sectário, com um nível altíssimo, e praticamente só há espaço para os territórios do free — e nenhum para músicos da terra, o que apesar de tudo não era mal pensado, acho eu. É uma escolha, legítima, de dar uma clara identidade de vanguarda ao festival. Mas parece-me um pouco irónico que a defesa com unhas e dentes da música da liberdade só possa fazer-se entre muros selados. Fico a recordar a árvore que entrou no meu pessoal concerto do Otomo Yoshihide, e dá-me vontade de ouvir naquele espaço outras coisas, e estas ainda, e talvez ainda outras. Além de que, como todos os anos, dou por mim a pensar nos chases que Betty Carter faria com as copas tocadas pelo vento e com os aviões com timing para os pianíssimos. Ela nunca esteve na Gulbenkian, para minha tristeza, mas tenho-a na memória, gloriosa, a distância de primeira fila, no CCB, dois ou três anos antes da morte. Se calhar na fronteira do fim de uma era.


Feed The Fire - Betty Carter

sábado, agosto 09, 2008

não quero

o plástico nas janelas em parede levadiça
é feio
mentiroso
não quero.
espreito, não espreito
é o buraco negro que o plástico contém
retém
que é maior quanto mais pequeno
pelas proporções no espaço.
é feio. não quero.
gosto mais de portadas de madeira
não se abrem em furos indistintos
e cada fresta que nelas se revela
é um rasgão de luz único e transitório.

eu até dormia...

... se não estivesse a ser obrigada a ouvir este gajo com voz de cana rachada que berra vezes sem conta ióre biútiful, ióre biútiful, ióre biútiful its tru. Está-me a dar saudades do karaoke berrado à terça à noite na rua de São João. Carago... ao menos esses não acham que sabem cantar.

da beleza essencial

Diz então Alberto Caeiro, que, segundo os rumores, sempre embirrou solenemente com o Álvaro de Campos [as relações não tendem a ser fáceis entre pessoas que partilham as duas primeiras letras de cada nome]:

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.



E digo eu, que embirro muito mais com o Alberto Caeiro do que com o Álvaro de Campos, embora, como boa apaixonada, embirre com os dois: fazendo um círculo em redor do indizível, perguntêmo-nos então se as flores e os frutos acaso têm forma, cor e existência, ou se essas palavras são meros nomes que encerram em si a humana tradução possível de uma impressão. Mestre Alberto diz, inequivocamente, que as coisas têm forma, cor, existência. Mas beleza não. Ou seja, cor, forma, existência, são palavras às quais subjaz um valor concreto, material, existem independentemente do observador. Mas beleza não. Será uma palavra cujo valor se esgota em si mesma, ou poderá ser também tradução de algo concreto, embora bem menos óbvio do que um azul, uma esfera ou uma presença física? É o nome de uma sensação, de uma emoção, de uma reacção química, de umas quantas sinapses, o nome de qualquer cousa que não existe, que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão? Fico a pensar no que distingue verdadeiramente estes substantivos na forma como se relacionam com os respectivos significantes. Se é que algo de essencial os distingue.


... e o inconveniente engenheiro naval lá continua a picar-me ao ouvido:—Mas então onde está a beleza disto?...

Ou ela só existe na directa proporção da pouca gente que há para dar por ela? Sendo que eu, um boi a olhar para o Taj Mahal, não me incluo no grupo, mas sei que se me explicarem tudo bem explicadinho...

As Coisas - Gilberto Gil & Caetano Veloso

sexta-feira, agosto 08, 2008

da beleza matemática — regresso a Newton

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó---óóóóóó óóó---óóóóóóó óóóóóóóó
(o vento lá fora)



Álvaro de Campos, 1928

da beleza concreta

Será a beleza um mero adjectivo que usamos para definir o que não podemos traduzir matematicamente? E a beleza que está numa equação, que se desprende de um teorema, que se anuncia numa conjectura, o que é?

bom dia

Downtown Train - Tom Waits

quinta-feira, agosto 07, 2008

da beleza ainda

Como discutir a história do som absoluto da árvore que cai sozinha na floresta, pensar a beleza implica pensar outra alma que não a do objecto belo. É, será, um dado adquirido. Mas será que produz som ou não, a árvore? Porque se há implicações estéticas sobre as quais se pode discorrer, filosofar, a verdade é que há reacções orgânicas à beleza. Reacções físicas. Como as lágrimas que vêm aos olhos com a resolução de uma segunda em Bach, ou face à esmagadora vastidão do deserto ou da paisagem do Pico, ou a um rosto que nos comove para lá de qualquer explicação. É aí que está a ferida, é nas falhas que se tocam? A falha do belo na ferida do esteta?


09 Quitollis peccata mundi - Bach

E pronto, já estou em casa e já posso dizer-vos que este Qui Tollis Peccata Mundi da Missa em Si menor de JS Bach, é aqui brilhantemente interpretado pelo Balthasar-Neumann-Chor e pela Freiburger Barockorchester, sob a direcção de Thomas Hengelbrock. Tal como o Sanctus de há uns meses atrás, também ele cheio de avassaladoras dissonâncias.

aposta secreta

o dente de leão não fugiu com o sopro. aproximou-se e dançou.

a minha varanda é uma casa de passe

Tenho a varanda literalmente toda cagada. E por cima da caca, um cemitério de ramos secos que os galifões trazem no bico às namoradas. A gataria anda doida com as cenas obscenas, mas mais doida ando eu que vou ter de limpar o lixo destes ratos do ar. Carago mais os pombos urbano-depressivos!... Até vivo numa zona arborizada, e eles tinham de preferir fornicar em cima de uma caixa de ar condicionado em vez de no meio do verde luxuriante do Monte Agudo. Estão a ficar iguais às pessoas, é o que é.

da beleza

Na origem da beleza está unicamente a ferida, singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si, preservada, e onde se refugiam ao pretenderem tocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda. Fora de miserabilismos. A arte de Giacometti parece querer revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas, para que ela os ilumine.

Jean Genet, O estúdio de Alberto Giacometti, trad.Paulo Costa Domingos, ed.Assírio & Alvim





















Alberto Giacometti, Femme qui marche
Tate Gallery, Londres 1998



Somos as nossas feridas, singulares e únicas. Algumas nunca se descobrem. Outras sentem-se ao primeiro olhar, ouvem-se no primeiro toque, cheiram-se na primeira palavra. E é por isto que não acredito em quem não quer acreditar no amor à primeira vista. Sim. Os braços dela estão abertos. E cortados. Mas ela continua a andar.