quarta-feira, agosto 13, 2014




Visto do público, parecia que não dirigia. Os gestos concentrados, frente ao peito, sob a curva da garganta dificilmente se viam para quem tinha à frente as suas costas. Mas a nós, tocava-nos como à sua flauta barroca. Nas subtis manifestações de grandeza que Bach pedia. Lembro-me do seu medo de voar que nos fazia atravessar a Europa de autocarro. Lembro-me da suicidal tour de 21 dias e 17 concertos, quatro deles no Japão, em que todos os dias alguém ficou doente... menos ele, apesar de beber até adormecer para poder ficar dentro do avião. Lembro-me das poucas palavras de que precisava para nos ligar a todos como corpo físico e vibrátil. Lembro-me no corpo da cruz de Santo André que era formada pelas primeiras três notas do segundo Kyrie, das asas de anjos que flamejavam no Sanctus. Éramos nós que as desenhávamos com a voz ao ritmo do seu gesto pequeno. Lembro-me no corpo de ter sido indescritivelmente feliz a fazer música. E das lágrimas correndo espontaneamente enquanto a voz segura sustentava a abóbada de som sobre a progressão dos baixos. Sanctus dominus deus sabbaoth. Frans Brüggen morreu hoje. Morreu-me um deus. E só me apetece cantar.

quinta-feira, janeiro 17, 2013

da falta e da espera (e do privilégio de ler e poder sentir o que se sente ao ler certos livros)

A DAMA DAS NEVES


Era uma vez um grande demónio que vivia no mais alto pico da mais alta serrania da terra toda. Morava ele num castelo de penedo branco mesmo no bojo das grandes virações da neve, lá onde não trepam brejos nem agulhas de pinheiral. O vento andava-lhe de roda aos uivos, não havia em muitas léguas ao derredor nem casario ou ermida benta. E as nuvens de gelo bailavam em virações sem fim fazendo tinir endoidado o catavento de prata da barbacã mais soberba. Dentro do castelo que estava todo aparelhado de bons madeiros arruçados e panos de fina lã com traça de batidas a gamos javardos, com céus de anil e prados da papoila e da bonina mais subtil, havia dispostas por todos os cómodos fornalhas ardentes de cobre e oiro fino, lares sempre acesos todo o dia e toda a noite. O demónio, que era da altura de três carros de milho, luzia voz de trovão e barba ruça que lhe descia às partes, passava os dias em roncos de penar de boca de fogo para boca de fogo, só se aventurando ao ermo para caçar as águias alvas e os ursos de felpa pálida. Tal se dava somente na calmaria dos tufões de nevão. Vivia pois ensombrado de se ver assim sem mais companhia que a dos mais altos penhascos e abaladores ventos, mau grado as suas lareiras de oiro e as suas camas de minério de prata e pedras preciosas e peles de urso curtidas nesses sempiternos fogos e os manjares de boas carnes que é o que os demónios recebem de ração à mesa dos seus paços retirados. Seu maior entretém era o de vaiar as grandes águias brancas que vogavam no mau tempo até aos seus anchos balcões e mirantes de jade, sabendo-se defesas aos homens e aos diabos. Um dia que se achou mais repeso de tão grande penar, abriu de par em par um dos janelos de cristal de rocha do seu castelo de penedo alvo e bradou bem alto aos céus turvados de neve para que o deus das neves o ouvira, Grande Amo e Senhor das coisas brancas, até quando a minha penada solidão? Dá-me ao menos uma filha para que possa acompanhar-me neste tempo sem termo, nesta morada de fogo no coração dos sítios mais ermos e mais altos e mais frios de toda a terra.

MADALENA (aflita) — Ele morre, tia, ele morre?
ELISA — Não, minha querida, os demónios nunca morrem, coitados.
SIMÃO — E depois, e depois, tia?

E depois, ouviu-se então o fragor de uma grande quebra de gelos como se sete dos mil altos cabeços à volta houvessem desabado à vez e uma voz que esbravejava ainda mais de rijo que o reboar dos montes esfarelados, Que assim seja, ó Filho da Neve, que se faça em ti segundo a tua vontade. Nessa mesma noite, o Demónio das Neves adormeceu na sua cama de oiro e pau vermelho e peles brancas. Acordou pelo meio da noite com um ardor pequeno no meio dos peitos e viu, à luz dos imensos archotes e fogo aceso, que lhe estava a nascer na pele por debaixo dos pêlos ruços, sobre o sítio do coração, uma mancha de um branco a puxar ao azul, tal qual um cristal de neve, assim a modos de flor. Pelos dias que vieram, a mancha foi-se tornando em bolha fina e dura, fria aos dedos como o cristal da rocha e talqualmente transparente. Dentro dela estava uma menina que ia crescendo. Tinha as mãos postas e nelas um nardo mindinho, a cara muito desfalecida e de fina traça, os olhos de fenda rasgados alto fechados. Luzia um toucado de prata lavrada e uma véstia toda de seda branca bordada a migalhas de nácar e aljôfar, tão comprida que só se viam os pezinhos nus muito delgados ainda translúcidos e azulados. Ao fim de três dias, quando a menina já ia pelo menos em três mãos de altura e a bolha chegava à cinta e à raiz da gorja da barba do demónio, ele atreveu-se a tocar-lhe com a polpa de três dedos. O cristal estalou em mil pedaços muito airosos que foram esvoaçando para o chão e a menina abriu os olhos que eram da cor das sombras na neve e muito lisos e fundos e disse na palma das mãos do seu pai, Bom dia, Senhor Pai, dê-me a sua bênção.


Maria Velho da Costa, CASAS PARDAS, "A TERÇA CASA"

quinta-feira, novembro 08, 2012

ne cherche pas l'absolu. il est en toi comme un ravin de sècheresse qui te perdra.

A finitude
é preciso aprender a lidar com a finitude
eu preciso de aprender a lidar com a finitude
o finito e o fininho e o concreto e o definido
o definito
mete o medo no fim do medo
mete o medo no fim de tudo
mete o medo no olho

A finitude, o limite
ou passearei a vida a tentar
cruzar o que não está lá
quebrar o que não desenhei
enfrentar o que não vi

A finitude. O traço.
O desenho.

(e eis porque o ensino devia ser mais genérico, quando não desenho, dou-me demasiado às palavras)


O limite
não a fronteira.

sexta-feira, maio 11, 2012

surreal sidewalk

O Bernardo não era deste planeta. Perguntei-lhe pelo menos uma vez de onde vinha realmente, ele que andava aqui claramente a enganar-nos a todos, mas ele riu apenas e não me quis dizer. Ria muito. E bem. Acho que me lembro de todas as conversas que tive com ele. E daquela sensação que ficava sempre no fim de o ouvir falar, rir ou tocar, esta certeza de que vale mesmo a pena andar por cá, de que tudo é um encantamento à espera de ser escutado, desenhado, fotografado. Mexido com os dedos. A morte do Bernardo é absurda. É estúpida. Mas foi na falésia, onde os passos dele sempre fizeram sentido.




Goin' alone, life is your own | But sometimes the cost is dear. | Being complete, knowing defeat | Keeping on from year to year. |  It takes some doing. | Monkery's the blues you hear | Keeping on from year to year. | Life is a school, 'less you're a fool | But the learning brings you pain. |  Knowing at once you're just a dunce | Trial and error, loss and gain. | It takes some doing | Monkery's a slow, slow train | Trial and error, loss and gain.


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terça-feira, abril 03, 2012

segunda-feira, abril 02, 2012

a Flober

estava na caixa de cartão, debaixo da cama dele. os chumbos cuidadosamente guardados à parte. latas bem longe de qualquer ser vivo, com ou sem raíz, e alvos desenhados em contraplacados e outros pedaços de entulho. o pequeno coice tão grande para os meus treze anos, a mão dele sempre no meu ombro. e aquela vez em que decidimos que agora é que era, íamos comer passarinhos... mas eles estavam vivos, nos ramos, nos ninhos, voando. e voltámos para as latas.




dia das mentiras. o da morte do Mário Viegas e o dos cravos vermelhos levando o meu pai para o mar. 16 anos de um, 1 ano de outro. e a cabeça cheia de palavras e música de uma velha cassete de crómio nomeada, naquela letra inconfundível, "selecção Manéis".

domingo, fevereiro 26, 2012

sabemos tanto que é estranho.

sei que o genocídio económico não é uma metáfora e que na sua maioria os alemães concordaram
com a guerra embora desconhecessem
os fornos. sei que muitos portugueses
ainda acham que o santinho de santa comba é que era, mesmo que não fosse, mas enfim,
pelo menos era honesto
e outros epítetos erróneos que se lhe atribuem,
como sério,
e que hoje até suspiros de comoção se soltam à audição da palavra
austeridade.
e sei que muitos outros portugueses colaboraram em massacres em África
com poucos pares no horror em todo o mundo,
talvez no Cambodja. e que em cada esquina havia um bufo.
para onde foram?
e também sei que os franceses reuniram os judeus
para os expedirem para os campos ainda antes de lhes ser pedido e que no fim,
na reconciliação,
afinal eram todos resistentes
e as únicas punições foram para as mulheres
que dormiram com alemães. a única punição foi para o amor.

sabemos tanto acerca de nós que é estranho que ainda nos conheçamos tão mal.

segunda-feira, janeiro 09, 2012

para quem ainda não nasceu e para o meu pai, que não se fez papoila, mas onda do mar.


‎It's Sunday morning, a morning of hangovers. The whole hotel seems suspended in the air. We ask her to get to the bar, to make it sing for her, to sing for her son (for whom she had written this song). We erase ourselves. She, she doesn't. After we're done filming, I cry. She cries too.

domingo, setembro 25, 2011

remenisemergente.

espera aí... este sentimento... isto não me é estranho. como é que isto se chamava...? ai... está debaixo da língua... esperança? será isso? esperança...

domingo, setembro 11, 2011

na pele.

Mais uma mudança. Vivi relativamente estável até aos 24. Daí para a frente, entre Lisboa e Porto... ora, são sebastião-campo pequeno-ribeira-rua da alegria-boavista-anjos-pinheiro manso (estação de francos)-sá da bandeira (a república feliz)-e agora aqui... nove casas em dez anos. E mesmo assim cada mudança me espanta como a primeira. O conforto imediato de um sítio que está certo, ainda que despido. Os gatos-reflexo da minha própria estranheza racionalizada. Reconhecer e integrar os novos caprichos da luz, do som em volta, do som cá dentro. Garantir que todo o chão já foi percorrido com os pés descalços. Decidir. Todos os dias decidir muitas vezes. E aí reside o percurso mais esquisito, no sentido ontológico da palavra. Os hábitos. Quando saltamos no espaço passamos a peneira do essencial e do contingente. Os objectos mudam de sítio, o papel-higiénico já não está à esquerda, a janela já não está na marquise, já não há marquise (adoro esta palavra, marquise, de cada vez que a digo vejo uma senhora velha tipo duquesa de alba que vive nas cozinhas da classe média, imagino sempre um zé para uma maria, "já alimentaste a marquise?"), ainda falta o piano, ai que me falta o piano, as sequências dos dias, mesmo para quem tende a sequenciá-los pouco (o meu caso) alteram-se porque sim, sem resistências. A respiração muda. Ainda há livros nos pacotes e televisão só a preto e branco. Mas em HD. Quais são os meus hábitos? Estou todos os dias em crivo, a ver se conheço, a ver se aprendo, a ver se decido. Mas são poucos. Vou percebendo, pela nona vez, que são poucos. Há hábitos que são como alguns recheios deviam ser, as cortinas, as louças, os quadros, os móveis. Não são nossos. São das casas.

sábado, agosto 20, 2011

lentamente, como as arrumações profundas...

... multiplicam-se uma vez mais os caixotes e esmurram-nos o peito as redescobertas súbitas. num papel que à primeira não parece outra coisa senão lixo.


"Tu és a música
És o tempo
em que Filha-Amor te chamo.
Não tem o tempo um momento
mais, que o tempo em que te amo.

Julho/96
Pai"

... escrevia bem.



Beato, Outubro de 2008

segunda-feira, agosto 01, 2011

a casa da minha avó.





Rabino, Amoreiras, Odemira
Julho 2011

porque se tem usado a palavra “louco” de forma muito abusiva nestes últimos dias.



…de repente, de atrás de un árbol, me aparezco yo. Mezcla rara de penúltimo linyera y de primer polizón en el viaje a Venus: medio melón en la cabeza, las rayas de la camisa pintadas en la piel, dos medias suelas clavadas en los pies, y una banderita de taxi libre levantada en cada mano.


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sexta-feira, julho 29, 2011

screws and drivers (trust your head around).



passou meio ano, mais de meio ano fora de casa. pensei comprar casa nova. como gato, seria a morada. assim caça quem não tem cão, sozinho. mas... às vezes o cão simplesmente não cabe no apartamento. e muita coisa morreu neste meio ano. muita coisa irrompeu, sementes protegidas que se fizeram à terra rija, perdas e ganhos, truques e espelhos, corredores deformados. perdi o meu pai durante o processo de me ganhar a mim. mas acho que ele se foi sabendo isto, sabendo o que mais importa. que tudo está cheio de amor. mesmo quando se torce, mesmo quando bate, mesmo quando nos força a voltar-lhe as costas para poder não desaparecer de vez. pode ser que volte a casa, agora. o vento lá fora fica pelo 5dias onde a Sassmine se substituíu ao Manel. mas o Manel fica por aqui, sentindo o vento cá dentro. olá outra vez.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

quarta-feira, dezembro 01, 2010

não tarda volto a morar aqui um bocadinho

... tenho saudades, mas ainda não as suficientes. até já.


terça-feira, outubro 12, 2010

ecos

Somewhere in there was an awful scene, with people expressing disgust for Billy and the woman, and Billy found himself out in his automobile, trying to find the steering wheel.
The main thing now was to find the steering wheel. At first, Billy windmilled his arms, hoping to find it by luck. When that didn't work, he became methodical, working in such a Way that the wheel could not possibly escape him. He placed himself hard against the left-hand door, searched every square inch of over six inches, and searched again. Amazingly, he was eventually hard against the right-hand door, without having found the wheel. He concluded that somebody had stolen it. This angered him as he passed out.
He was in the back seat of his car, which was why he couldn't find the steering wheel.

Kurt Vonnegut, Slaughter House 5 or The Children's Crusade






gift shop


Paris, Dezembro de 2009
Ligne 14 — le verre en face




Billy made no reply to this, either, there in the ditch, since he didn't want the conversation to go on any longer than necessary. He was dimly tempted to say, though, that he knew a thing or two about gore. Billy, after all, had contemplated torture and hideous wounds at the beginning and the end of nearly every day of his childhood. Billy had an extremely gruesome crucifix hanging on the wall of his little bedroom in Ilium. A military surgeon would have admired the clinical fidelity of the artist's rendition of all Christ's wounds—the spear wound, the thorn wounds, the holes that were made by the iron spikes. Billy's Christ died horribly. He was pitiful.
So it goes.

Billy wasn't a Catholic, even though he grew up with a ghastly crucifix on the wall. His father had no religion. His mother was a substitute organist for several churches around town. She took Billy with her whenever she played, taught him to play a little, too. She said she was going to join a church as soon as she decided which one was right.
She never did decide. She did develop a terrific hankering for a crucifix, though. And she bought one from a Santa Fé gift shop during a trip the little family made out West during the Great Depression. Like so many Americans, she was trying to construct a life that made sense from things she found in gift shops.
And the crucifix went up on the wall of Billy Pilgrim.

Kurt Vonnegut, Slaughter House 5 or The Children's Crusade, 1979

sábado, outubro 02, 2010

the bird listens to the band



... and the coda.



Lisboa, Teatro Municipal São Luiz
Outubro de 2010

terça-feira, setembro 28, 2010

avenida dos milionários




cova do vapor, out 2010

sábado, setembro 25, 2010

terça-feira, setembro 21, 2010

soldier on!




again. if you wanna kill me, I'll be there. and I'll die happy.*

domingo, setembro 19, 2010

água.

queria ter palavras simples para contar histórias simples. mas às vezes não são precisos recursos. só muita vontade e um pouco de água na concha das mãos.



sábado, setembro 18, 2010

domingo, setembro 12, 2010

between one blur...




and the other.



o relatório.

pedra arrancada
limar das arestas
limpeza do sangue
e da gravilha.

sábado, setembro 11, 2010

do peso.

pesa.
mede, e gira o ângulo, e transfere o olhar.
dois dias. para perceber
achar os óculos na cara
dois dias. para perceber o que se sabe saber.

obstáculo identificado.
luzes verdes num écran negro
um tracejado branco.
aim. fire.

e lá vai mais uma tripa na granada
lá se me vai mais um pedaço de coração no torpedo
cá me fico um bocado maior
expoente matemático de uma regeneração insaciável.

assim come, sobrevivente.
assim fica, para sempre salivante.