quinta-feira, julho 31, 2008

as palavras e o acaso [a-mor-al]

A acção do amor, o seu carácter de agente divino no homem, é conhecida, sobretudo, nessa depuração do ser que o padece e suporta. E também numa deslocação do centro de gravidade do homem. Pois ser homem é estar fixo, é pesar, pesar sobre alguma coisa.
O amor consegue, não uma diminuição, mas sim uma desaparição dessa gravidade que, quando ele não existe, é apoio da moral, condição dos que vivem moralmente, só moralmente.


María Zambrano

bom dia

Somethings Coming - Oscar Peterson Trio


...it may come cannonballing down through the sky.

quarta-feira, julho 30, 2008

blue!

As luzes do quarto estão apagadas, e lá fora a luz vai descendo fria e doce, como é seu capricho. Não fotografo, não ia servir de nada, só de frustração. Mas vou olhá-la de novo, uma e outra vez. As paredes são brancas, a cortina da janela é vermelha. Mas todo o meu quarto está azul. Azul profundo e transparente. A maior das belezas é ar, leve, intocável, pronta a ser recebida por cada poro.

sazonalidade

Nós, os tarefeiros de estúdio, somos como as modelos, forçadas a fotografar bikinis em Janeiro no topo do Monte Branco. Estou cheia de calor e passei o meu fim de tarde a cantar canções de natal com cadências a la diva. Depois não querem que seja desorientada...

post it

Falling In Love Wiht The Wolfboy - The Magnetic Fields

... não pressiones aqui. Ainda dói.


Loving - Kronos Quartet

o fantasma dos verões futuros — exorcismo para... alguém

O velho - Chico Buarque

terça-feira, julho 29, 2008

ah, pronto, é que já ninguém aguentava o suspense...

Carlos Fragateiro demitido da direcção do TNDMII.


... e agora, vão deixar-nos nesta ânsia, a contar os boys pelos dedos a ver quem é que passa a gerir a panela a partir de agora? Vá lá, que os nossos coraçõezinhos já não podem com tanta ansiedade...! Ai.

fumo azul

Pintar paredes. Mas há alguma coisa que se compare? Ver a matéria fluída a alargar, a alastrar, a absorver-se a cada poro do estuque, ver a cor a mudar com a água que se vai aos poucos e escurecê-la uma vez, e outra vez mais até ficar no ponto em que a queríamos. Ok, quase, mesmo quase, no ponto em que a queríamos. Ver a luz transformá-la no decurso do primeiro dia. Pensar em enchê-la de assinaturas, rostos, rochas, palavras, e pensar que assim é que ela está bem, terreno de possibilidades para assinaturas e rostos e rochas e palavras. A felicidade é coisa tão mate como o fumo azul da minha parede. E eu quando for grande quero ser trolha.



Lisboa, 29 de Julho de 2008

it takes one to know one

I Feel It All - Feist


... or so they say.

do psicologismo [ou Try walkin' in my shoes]

Na vida amamos as pessoas antes de lhes conhecermos as histórias. Porque não seria assim com as personagens? Amamos os mistérios. E eventualmente desvendamo-los e continuamos a amar. Eventualmente.


Cantão, Outubro de 1999


... fica assim, com rebordo e tudo. Porque foi ainda em filme, paridinho pela minha saudosa K-1000, manual, pesada p'a burro, lindíssima, leal, sensível e vilmente fanada em Londres no mês seguinte. Senti-me como o Camões, com menos um olho.

segunda-feira, julho 28, 2008

assim, devagar

Assim, devagar. Pé ante pé, para não pisar. Não vou trair-me, não vou mentir-me, estou onde estou, onde deveria estar portanto. Não vou massacrar-me o peito julgando-o em atraso, querendo ficar para trás, querendo conformar-se ao desquerer, não vou cobri-lo com um fogo de artifício azedo mas cheio de brilhos fátuos. Acariciá-lo, talvez, amaciá-lo para o distrair do ontem que o agarra com patas de caranguejo. Vou soltá-las, uma a uma, abrir-lhes as tenazes. Não passou pela minha boca o mais importante de tudo, o barco pintado de fresco em que te vejo, o furo que ostenta no casco no meio de todo o seu orgulho azul, os teus olhos que tentam ferozmente manter a vela aberta mas que murcham para fingir para novamente murcharem e fazerem-se enfunados. O vento sopra e a terra entra pelo mar adentro. E é angustioso, ver as tuas muralhas desabarem no silêncio, para serem reconstruídas em papel de cenário, para rasgarem novamente, e tu tentando tanto que os rasgões não se vejam, sufocando em algodão para abafar o estrondo. Que não existe, porque já não está lá ninguém para ouvir. A pedra rola de cima do monte, talvez seja o monte errado, foge-lhe quando desce, não vá apanhar-te na vertigem. Não se formaram nos meus lábios tais palavras, nem se formarão mais, estás demasiado longe para ouvir e nunca conseguirias ler, tens outro alfabeto. Haveria outras saídas possíveis, mas eu não sei usar a luz nos espelhos para comunicar. Vou soltá-los, pacientemente, um a um, cada tenaz, cada passo, cada fiapo de amor. Assim, devagar, leva menos tempo.

a frase da noite

A tendência é de pastar na herança, em vez de copular com o destino.

António Coimbra de Matos




... mas é que há coisas que metem um medo dos diabos. Pastar é muito mais simples, e sempre se vai copulando aqui e ali, não se perde tudo, certo?

...

Certo. Quer dizer, perde-se lã a cada época de tosquia, mas nem dói nem nada.

domingo, julho 27, 2008

A fost sau n-a fost?




Faltou-me a coragem para o Senhor Lazarescu. Dessem-me uma semanita para respirar, e estaria lá batida, mas assim, ainda sob a influência do Mungiu... bom, a sanidade mental falou mais alto. Fica para outras núpcias. Hoje foi a última etapa romena no Nimas. E mantendo-se o cinza generalizado, a desolação, a pergunta faz-se 16 anos depois da queda de Ceausescu: onde estiveste tu no dia 22 de Dezembro de 1989? Mas mais importante ainda, houve ou não houve revolução às 12:08 A Este de Bucareste? Começamos por receber pinceladas simples e certeiras das vidas daqueles três homens que vamos ver lado a lado a olhar para a câmara. Tudo o resto é um fabuloso programa de televisão, caseiro a armar à CNN, onde um engenheiro têxtil enriquecido crê fazer algo de relevante, fazendo a pergunta relevante — houve ou não houve? a fost sau n-a fost? —, a pessoas relevantes — afinal chegou à praça antes ou depois das 12:08? afinal foram heróis ou apenas foram na carroça? afinal de onde roubou as magnólias que ofereceu à sua mulher nesse dia? —, com telefonemas relevantes — os membros da Securitate não têm passado e o professor estava na praça, sim, mas bêbado. É a revolução uma questão horária? Ou funciona mesmo como os candeeiros de rua, primeiro acendem os do centro, depois o círculo alarga para a periferia? Ou afinal é preciso lembrar que houve vidas perdidas e que hoje neva lá fora, amanhã será lama, não há tempo a perder?

No meio de tantas pequenas perguntas que se riem das respostas, a omnipresente praça de papelão, os jogos das luzes de rua em abertura e fecho, o nível e a carne dos actores, a realização sem artifícios mas não sem arte, até no retratar delicioso do amadorismo televisivo, a hilariante melancolia dos diálogos, o papel que constrói barcos nas mãos de Piscoci e se desfaz em pedaços nas de Manescu. Aliás, o Piscoci de Mircea Andreescu, o tal que em 1989 roubou as magnólias, é uma antológica figura de cinema, que rouba qualquer cena só com o olhar. A sua comédia é tão singela, tão ternamente amarga, o seu texto tão inteligente, as suas cenas hilariantes. Os tempos de todo o filme são de um refinamento a toda a prova, e os questionamentos de uma inocência acordada. Belo. E fez-me rir. Muito. "Cinema romeno" não era expressão muito presente no meu vocabulário artístico, mas ricas surpresas nos chegam da terra do conde Vlad.

ardósia

é de um cinza claro se clara é a luz. obscuro reclama cinzel,
reclama escopro, reclama maço.
queria apagar, mas a goma mancha e nunca houve giz. tudo se cravou.
não sabemos o que é um traço leve, nada se esvoa num sopro. raspa.
tens de raspar.
a pele arrepia-se em pequenos vulcões que a esticam, que a rasgam expelindo uma lavazinha
levemente sanguínea. tens de raspar,
mesmo que os dentes te doam com a vibração estridente. raspa,
ainda que te roguem os ouvidos que não o faças,
ainda que se furem com a agulha de som
que nasce do teu cinzel sobre esta ardósia cinza claro
se clara é a luz. mas estás no escuro,
que podes fazer?
para a próxima, usa o giz.

sábado, julho 26, 2008

as canções são como as cerejas




... falando nas fronteiras da violência. E, vagamente, nas suas origens.

segunda

Lisboa, 26 do Sete de 2008




E a terceira já se prepara para enfrentar a luz. A sexta é que parece querer morrer na praia. A ver...

following close but nearly twice as slow...




Hoje acordei com isto na cabeça. Bem-disposta, portanto... Mas esta fica longe do piano. Tirar-lhe o bandolim é tirar-lhe o flare.

da violência — adenda

Dei por mim, graças ao filme avassalador que vi há dois dias e de que vos dei conta, a requestionar-me sobre a violência. De como não exige sangue. De como não exige corpo a corpo. De como se pode palpar nos ambientes, nos tons de voz, no olhar, na energia, nos subentendidos, nos silêncios. Nos olhares. O mais duro neste filme talvez seja a forma como a violência entra e fica, e se acomoda, e não é expelida, não pode sê-lo. Fica o stress pós-traumático nos olhos de quem passou por uma guerra psicológica, mas os membros ficam intactos. A maior violência seja a inevitabilidade da mentira. Nunca vi uma mesa de família tão cordial ser tão violenta pelo simples facto de existir naquele momento. Ou palavras mais violentas do que as que Otília não diz a Gabita, estendida na cama com uma sonda dentro de si, a segunda invasão consecutiva na mesma cama. Ou que a apatia dele face à necessidade dela. A violência pode tornar-se uma peça do jogo, uma peça como qualquer outra, um acidente, um incidente reincidente. Fica-se como aquela nervosa lâmpada fluorescente à porta do quarto do hotel, a zunir, a piscar, indefinidamente, sem nunca fundir. E sem nunca acender.


... Entretanto respiro fundo, a ver se ganho ânimo para ir ver A morte do senhor Lazarescu. Parece que os efeitos secundários são semelhantes. Não sei se me chega a coragem...

sexta-feira, julho 25, 2008

jazz me fingers

E mais uma pó saco! É impressionante como a privação de repente dá um fogo dos diabos. E agora que descobri finalmente como se faz de um piano uma guitarra [muito graças a esta senhora, devo dizer], agora que aprendi a rasgar, ninguém me pára, levo dez minutos a montar uma canção e dias inteiros de curtição a fazer dela o que quero. E aquela frase do Binau, uma das antológicas, finalmente saíu da cabeça para se concretizar nos dedos: o ritmo, o ritmo é que não podes falhar; nas notas, balda-te à vontade, agora se falhas o ritmo, morreste. Parece que aprendi a lição, e até os Arcade Fire já cá cantam. Viva o pop, o Binau que me perdoe...

Tymps (The Sick In The Head Song) - Fiona Apple

I've already been bled dry to quit, so it must be that I really used to love him... I sure hope that's it.

da violência


















Creio que nunca me tinha acontecido. Não me lembro de sentir, a meio de um filme, que não ia aguentar vê-lo até ao fim, como um dia quis desistir do Pico a vinte metros do cume. Talvez ande um pouco à flor da pele, mas a verdade é que 4 Meses 3 Semanas e 2 Dias é uma experiência de violência psicológica e, consequentemente, física. Pensei, mais do que uma vez, que não conseguiria aguentar, tantas e tão duras são as sensações que um tão simples, inteligente e cru modo de filmar pode disparar. É uma violenta história de um aborto clandestino na Roménia do final dos anos oitenta. Não tem sangue a espichar, nem complicações hospitalares, nem mortes nem prisões, e apesar de mostrar um feto abortado aos quatro meses [três semanas e dois dias], é um violento libelo pela liberdade de escolha, na exacta medida em que nunca tenta sê-lo. Mas a violência é indescritível. A violência da coerção que escorre das palavras do "executante" do serviço, a violência de se estar acuado, a violação consentida porque não há outra saída, a espera ansiosa, o quarto fechado, o telefone ocupado, a mesa de família em brilhante plano estático e longo, longuíssimo, em que tudo acontece nos olhos de Anamaria Marinca. A violência do silêncio, da dormência, da incomunicação, do que se cala porque não há como dizer. A violência real de ser mulher, com ou sem aborto. No abrupto final — negro, não se fala mais nisto, não podemos falar mais nisto — pareceu-me despertar de um transe, como se o meu corpo e o meu espírito, dormentes, se tivessem rendido à inevitabilidade do sofrimento e fossem já capazes de suportar tudo o que ainda viesse pela mão de Cristian Mungiu. O estado preciso em que sentia aquelas duas mulheres naquela desolada mesa de restaurante de hotel. Não é este um efeito dos grandes filmes?

quinta-feira, julho 24, 2008

primeira






















Lisboa, 24 do Sete de 2008






... menos um talvez.

divergências significantes: a culpa

A culpa é um redil. É o abrigo e a prisão de quem nela mora, de quem dela não sabe querer sair. A culpa come, e para poder continuar a comer lança outras pequeninas culpas que vão caindo pelo caminho para se transmutarem em tantas outras idênticas manobras de diversão, fogos dispersos, peões do grande fogo. A culpa é casa emparedada, mas é casa, para os corajosos é luta, para os cobardes é abrigo. Quem fica, quem tem demasiado medo para sair, tem de sobreviver, e para sobreviver deve manter-se incógnito. Marcar no rosto uma cordialidade fixa, nos olhos um simpático vazio. Deve empedernir-se no seu próprio cimento e as próprias feições misturar no tijolo translúcido que lhe empareda as janelas. E enquanto isso deve acenar, acenar muito, ao longe e sem motivo.

... a culpa é uma boa desculpa.

terça-feira, julho 22, 2008

Tadzio no túnel de luz




Começa a repescagem do cinema perdido, cortesia do Nimas, com uma câmara em tubos, em ondas, em movimento, e a sensação que fica é de estatismo, de paragem. A luz, os travellings, o som, tudo no desafio me faz pensar nos carrosséis de feira, velhos parques-viveiro de suburbanos, em que a coragem de avançar para o Paranoid Park encontra paralelo na primeira viagem solitária ao volante de um carrinho-de-choque. Também a banda sonora sugere esse paralelo , girando em realejo derretido inesperadamente para modo menor, logo na abertura estática. Há uma morte, um possível homicídio, há uma investigação, mas nada disso é importante face à viagem interior por detrás dos olhos parados de um adolescente. Estamos fora da cabeça de Alex e de repente dentro e subitamente fora, e novamente não sabemos bem onde, em prismas que rodam, em soberbos jogos de som. Mas o vazio mantém-se entre viagens. Tadzio num skate. Aschenbach por detrás da câmara. A morte não é em Veneza, é no carril. Mas a frieza, a bela e mortal contemplação, está lá.

Atrás de mim, durante a ficha técnica, ela diz que não percebeu a história — mais uma vez para Gus Van Sant o tempo não é linear, é fílmico. Ele disserta, "não, quer dizer, a história está montada, tem é uns momentos mortos". Olho de soslaio para a minha companhia, que também tenta disfarçar o sorriso maldoso. Mas goste-se ou não se goste do que traz a moldura, pareceu-me que dizer isto é mais ou menos o mesmo que olhar para uma pintura e dizer que num canto não há nada desenhado. É um filme arty? Oh sim, mais assumido era difícil. Mas é bom como tudo.

bons títulos

Depois de uma pesquisa colectiva em que fomos dar a este interessante sítio com um belo nome, até fico com pena de não ter nada de mais para dizer, uma vez que nos saíram uns belos nomes para novos blogs. A saber: coisasquenaoencontroemladonenhum.blogspot.com, assim como, cenasquenaohanememcassette.blogspot.com.

Quem quiser usar, está à vontade.

segunda-feira, julho 21, 2008

divergências significantes: um homem

Um homem sabe vedar as suas emoções com corda de cais, sabe, apenas com um aparente desligar de si e dos outros, com uma ironia insensível, mascarar de força a maior das fraquezas. Um homem sabe com um sorriso pré-formatado, enganar-se a si próprio e dizer que nada foi assim tão mau, eu sou como sou e fiz o que não pude evitar. Um homem sabe ser boçal e básico porque isso o faz sentir-se mais homem, e assim veste a capa de zorro ao puto que continua mais ou menos no mesmo círculo, embora creia ir já a meio da sua volta ao mundo. Um homem constrói-se de certezas, e recusa-se a enfrentar o logro que essas certezas são, se para se manterem fortes exigem que ele fira e desconsidere e magoe, ainda que com o tal sorriso, sempre com um sorriso. Um homem sabe que essas certezas são fumo, mas um homem que é um homem prefere a máquina de haze, prefere o conforto dos olhos entreabertos. Um homem faz de conta que não chora, ou só chora em privado, e se o faz em público nega-o, sempre sempre sempre com o mesmo sorriso. É isto que é um homem.

Ou talvez seja precisamente tudo isto que não é um homem.

in the backseat

Foi estranha a entrada desta canção na minha vida, há uns meses atrás. Bateu-me imediatamente, porque me transportou para um sonho absolutamente nítido que tive uma única vez aos catorze ou quinze anos, tão nítido que nunca mais o esqueci. Eu pensava que conduzia um automóvel, e só depois de muitas curvas e contracurvas me apercebi de que na realidade nunca saíra do banco de trás. Quem conduzia, não interessa, é assunto cá meu. Mas talvez por isso estas palavras me pareçam tão tristemente mentirosas, tão candidamente dissimuladas. Desde os quinze anos que sei que não estou em paz no backseat. My whole life, I've been learnin' to drive.

In the Back Seat - The Arcade Fire

domingo, julho 20, 2008

a pensar morreu um actor — adenda segunda [ou Conversar com o Fernando é inspirador]

Pensar a contracena empurra-nos para o nevoeiro de energia e dúvida daquela peça. O dilema de Hamlet é o do actor, se o virmos repartido entre dois fossos, o da introspecção e o da expressão. O Fantasma, a voz que instrui, é verdadeira ou falsa? É verdadeira e falsa.

Há pouco mais de seis meses, dizia-nos num ensaio o excelentíssimo GB Corsetti que o teatro é um destilado da vida. É bom, sim, que o trabalho do actor se mantenha sobre o dilema que o Fernando descreve, sobre esse risco, pois não é mais, a vida, do que um percurso de funâmbulo, seja embora para tantos um percurso sonâmbulo. E esses dois fossos que acompanham o percurso de um lado e de outro, a introspecção e a expressão, são os infinitos abismos, mas também muitas vezes as próprias redes que aparam as quedas prováveis quando se arrisca. Talvez seja aí que se distingue o bom funâmbulo, assim como o bom actor: pelo tempo que passam na rede.

logística

A escola anda na fase de compra de material para o tão esperado primeiro ano que se avizinha. Eu voto neste amplificador, que nos foi posto à consideração pelo visionário coordenador do curso. As vozes hão-de precisar, suponho, de um sm-58 e 1/2. Temos de andar a par das novidades tecnológicas e é preciso fazer frente a este tão à frente eleven. A qualquer momento podes ter de levar um grunhido half a step further... fico-me pelo meio, que eu sou uma gaja simples e continuo a acreditar mais na força da técnica do que na técnica da força, como diria o Gabriel Alves.

sete



Críamo-la morta, querendo-a viva. Recolheu-se por um ano e de mansinho nos chamou com sete possibilidades, sete projectos de branca floração, sabêmo-las brancas de antemão e ainda assim não passam de um talvez. Sete talvez. Sete, talvez.

Lisboa, 20 do Sete de 2008

quarta-feira, julho 16, 2008

a pensar morreu um actor — adenda

Falar sobre música é como dançar sobre arquitectura.
Keith Jarrett


...pois. E então? Não será possível dançar sobre arquitectura?

a pensar morreu um actor

Por mais que nós, gente do teatro, gostemos de nos ver como intelectuais, não o somos. A nossa profissão não é uma profissão intelectual. O saber literário inteiro do mundo, as «ideias» todas, não vão capacitar ninguém a fazer Hedda Gabler, e toda a conversa sobre o «arco da personagem» e «baseei a minha personagem nisto…» é tudo babugem. Não há nenhum arco da personagem; e é tão inútil basear uma personagem numa ideia como é basear uma relação amorosa numa ideia. Essas frases não passam de talismãs do actor, que lhe permitem, a ele ou a ela, espantar o mal, e o mal que tentam espantar é o terrível imprevisto.

Essas frases e rituais mágicos são esconjuros para diminuir o terror de sair à frente de corpo nu. Mas é assim que o actor sai à frente, queira ou não queira."



O terrível imprevisto é o chão da contracena.

Pensar o terrível imprevisto é uma actividade condenada à contradição. O livro de Mamet nega ali a sua própria razão de ser, e ao mesmo tempo é certo que um livro sobre o teatro assim faça. O pensamento do teatro é um desertor do palco, e tem de viver com essa condição. Mas, queira Mamet ou não, tem de viver.

Tem de viver, por exemplo, para que um workshop sobre Hamlet suba acima de algumas inquietações caseiras, como aquela a que um amigo assistiu no ano passado: «Se o meu tio matasse o meu pai e casasse com a minha mãe, eu também ficava chateado. Não é?»

Não. Não é. Para chegares à «chatice» de Hamlet precisas de mais que da tua mãe.


Fernando Villas-Boas, no Drama Pessoal


Bom... o "amigo" que assistiu à dita pergunta, vinda, salvo-o-erro, da boca de um aluno de um curso de interpretação, sou eu. O Fernando foi um querido e deixou-me, nas suas próprias palavras, "anónima em nome e em género". Mas eu gosto pouco de anonimatos, embora ainda goste menos de fogo de artifício. O equilíbrio, ai o equilíbrio.

E é precisamente pelo equilíbrio, só possível na contradição, que aqui posto este trecho da prosa do Fernando, lançada pela de David Mamet. Não é um curso de filosofia, de literatura ou de psicologia que vai habilitar uma actriz a ser Hedda Gabbler, mas também para se sair à frente de corpo nu é preciso inteligência. E esta ginastica-se, como qualquer outra capacidade humana. As possibilidades de exercício é que são inúmeras e não se esgotam na dissertação, mas cheira-me que também não estão na existência amorfa. Aliás, se há coisa que me chateia é um actor burro. Os que se fazem de burros, então, ainda são mais enervantes. Mas nada bate os que se fazem de espertos. Ainda há pouco tempo fui apelidada de "cerebral", numa depreciação disfarçada de cortesia. Era rótulo que servia o propósito. Mas é a esperteza que é cerebral. A inteligência, perdoem-me a imodéstia, é algo bem mais global e carregado de variáveis. Atrevo-me a atalhar, querido Fernando, que, ao contrário do que diz Mamet, entre nós há demasiadas vezes uma resistência absurda à palavra "intelectual", tanta vez arremessada como insulto comezinho. E é pena.

terça-feira, julho 15, 2008

ele há putos com sorte

O meu, por exemplo, anda às voltas com as West Side Story-Symphonic Dances para atacar o início da temporada sob a batuta desse urso maravilhoso chamado Michael Zilm [ai... saudades]. E eu, que ainda me lembro das entradas, dos passos, das loucuras, do puro gozo, do puro corpo, da pura tripa, aliado à maior classe e à mente a fervilhar, não consigo calar-me nem consigo resistir a re-re-re-rever elevado ao infinito. O espírito de Officer Krupke e de America, a raiva e a tensão numa pirueta no Prólogo ou nessa absoluta maravilha que é Cool. Breeze it, buzz it, easy does it...









É muito génio por película quadrada. Na música, no texto, no movimento, na realização. Quatro autores. E a prova de que os artistas não têm de ser caranguejos, cada um a puxar o companheiro para baixo. Há muito mais para descobrir lá em cima, e à canelada é pouco provável. Ainda há dias, observando o gozo sem muros do Laginha e do Sassetti, pensava nisto mesmo. E pensava que há cestos de caranguejos nos quais é uma felicidade não caber.

segunda-feira, julho 14, 2008

aprende-se muito com o grande teatro... [ou Volto sempre a Elsinor]

A igreja de Sta.Maria de Belém, onde espero a Raquel, tem a mais bela das rosáceas. Nada de mais, é simples. Só que é amarela. E isso é tudo, se se quer receber uma luz de claridade solar e não de mistério vestido de roxo-senhor-dos-passos. Sim, é uma rosácea quase pagã, eu diria. Sinto-me bem, aqui. Já cá cantei várias vezes. Assisti aqui à única missa do galo do meu currículo, aliás, foi uma das últimas vezes, precisamente, em que vi cantar a Raquel, é uma pescadinha de rabo-na-boca, esta vida. Sento-me. Penso. Meditação em banco de madeira, pois, também se faz. Não sou de orações, recordo sempre as palavras do índio, "estás em comunicação com o grande espírito, o princípio e o fim de todas as coisas, e és tu que estás a falar?..." Respiro. Curiosa herança do meu pai comunista, esta predilecção por igrejas, e por templos em geral, mesmo que ao olhar os tectos de oiro de Salamanca ainda lhe oiça a voz pedagógica lembrando todos os que morriam à fome enquanto a ecuménica seita se enfeitava milionariamente. Adiante. A Raquel deve estar a chegar. Saco de uma onça por encetar e ponho-me a enrolar um cigarro. Os avisos à pobre vítima das tabaqueiras são sempre uma incógnita, como rifas, nunca sabemos bem o que nos vai sair, embora saibamos que entre o urso de peluche e a garrafa de porto, alguma coisa vai ser. Vá, uma bicicleta pasteleira, na melhor das hipóteses. Não estava a reparar nele, mas a vista foca-se de repente: OS FUMADORES MORREM PREMATURAMENTE. Rio com desdém. Onça agoirenta, dana-me o pulmão, mas não hás-de danar-me a alma, que por alguma razão enrolei este cigarro sentada na nave central, encarando o sAntíssimo.

adeus, poesia!




Finalmente, porra, finalmente! Estava ela nas Mónicas [onde, diz-me a Mónica, o espaço da plateia era dentro dela] estava eu no Porto; estava ela no Porto, estava eu nas imediações das Mónicas. E ontem cruzámo-nos, finalmente, eu e esta mãe que está, dolorosa, esperando o rosto do seu filho preso, um filho que é uma cabeça, até o padre o diz, até a irmã Cherubina, até o pai João que não o reconheceu nunca, pois que certezas podemos ter, aí por baixo é um vai-vem e se ela não tem vinhos e petiscos escrito na testa, também ele se recusa a ter tinta fresca e a ser menos macho, tenho lá uma mulher séria, se reconheço o filho estrago o jardim que é a minha casa, esse jardim embelezado por aquela pipa de chulé que lhe aumenta quinze quilos por ano, mas entretanto, Maria, deixa-me dar uma volta nas mamas, deixas?, e se eu lhe disse às dez era às dez, que eu tenho um Omega, isso posso dizer!

É estranha, a adaptação ao palco do São Luiz, só a esquerda, um recanto da esquerda baixa em uso, o resto é chão, espaço vazio, é nada. Mas à esquerda fiquei eu também, a poucos metros do turbilhão de técnica, energia e emoção que é Maria João Luís. O texto é magnífico, mas ela, stabat mater dolorosa, é incomparável. A velocidade estonteante. O peso dos silêncios súbitos. A mulher do povo, forte, resiliente, bêbeda, cheia de amor e de raiva, cheia de marcas, de cicatrizes, de cruzes, nenhuma tão dura como ver a cruz do seu filho, o seu filho, que é uma cabeça, às mãos da autoridade e do doutor Pôncio, que ora lava uma mão ora lava as duas. O desespero de não saber o que fazer ao amor que tem, à informação, à inteligência, porque também esta mulher é uma cabeça, nunca lho disseram o padre, nem a irmã Cherubina, nem a Trabucco, mas é, e a inteligência, sabe ela bem, são trabalhos a dobrar. Também por isso é tão dolorosa. Vê, no meio da névoa, todos os caminhos que traz dentro de si, mas não os encontra, não os consegue encontrar no exterior, um palmo de estrada limpa para pôr o pé, alguém que lhe diga: —segue, estás certa, é por aí. Uma cabeça, esta mulher. Uma cabeça perdida, mas nunca desistindo de se encontrar. "Isto com o mundo, não se faz farinha! Foi o mundo que pendurou o cristo, e se tens consciência pendura-te a ti também."

Despedi-me de um projecto do qual não quero fazer parte nem por todo o chá da China, e não tenho palco previsto até ao fim do ano. Até sentir esta mulher no meu centro, no meu riso, no meu espanto, nas minhas lágrimas, achava que estava tranquila com isso. Mas, bendita sejas, Maria João Luís, uma actriz é uma actriz. E uma actriz deste tamanho é uma dádiva.

domingo, julho 13, 2008

a música é uma escada sem corrimão

Uma semana depois, reabre-se-me a noite com aquele Redondo Vocábulo que tanto me enlaçara a leste, hoje com com curvas diferentes a oeste, claro, é de Laginha e Sassetti que se fala, espera-se tudo, monotonia não. O palco do grande auditório do CCB, que eu tão bem conheço, é gigantesco para dois pianos e um fadista, mas no aconchego da luz e do veludo coçado da voz de Camané todo o espaço se concentra dentro dos meus olhos, dentro de mim. Aos arcos da voz ainda se junta, por uns momentos, o misterioso e claro arco do contrabaixo de Carlos Bica. E assim se faz uma noite. Assim se viajam mais de duas horas e como, se cada carícia, cada estocada da voz de Camané ainda nos abre espaços para receber mais? Mais fado, ou mais palavras, ou mais voz, ou mais gozo, ou mais calor ou mais frio, ou mais cordas, percutidas ou friccionadas ou dedilhadas, ou mais dor, ou mais esperança, ou mais memórias, ou mais jazz, ou... e o quê? Que importa o nome? Que importa o rótulo, se a própria mentira tem por vezes o sabor da verdade? E a minha boca, até quando...?


Ciúmes da saudade - Camané


... e assim, por cinco euros, se cura e sublima o desgosto de ter deixado o Dylan passar por quarenta e cinco. Há preços demasiado altos, maior que seja o amor.

sábado, julho 12, 2008

a frase do dia, por muitas, muitas razões

There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.

quinta-feira, julho 10, 2008

a poesia esteve na Baixa — adenda

Só para avisar que a nossa Polegar escreveu um texto lindo lindo lindo de morrer. Como a hora mágica de ontem. Passem por lá e oiçam de dentro a flash-mob. Ah... e claro, eu apareço no vídeo dela! De costas, mas apareço. Livres mas cívicos, tudo ali à espera que o semáforo fique verde...

a poesia esteve na Baixa

Coisas estranhas aconteceram hoje. Estavam ligados pela luz de Lisboa e pela emissão da Antena 2. Apeteceu-me andar só de mirone, já que sou palhaço o ano inteiro. Alguém impregnado do que achava ser o espírito do PREC, ainda reclamou que não tinha isto nada a ver com liberdade, "isto é liberdade condicionada!". Fica pois a interrogação no ar. O que é a liberdade? Porque ninguém correu de igual modo, ninguém foi policiado ou obrigado a comer a flor, ora será que só há liberdade sem ordem? Liberdade não é sinónimo de anarquia. Ou será? Liberdade é sinónimo de ausência total de ordem? Ou isso é caos, coisa que traz outras limitações à liberdade? Ou é, no fim de contas, a liberdade um conceito nosso, só nosso, que lhe sentimos a ausência e o aroma, a urgência e a impossibilidade?

Coisas estranhas aconteceram hoje na Baixa:

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... e eu comovi-me ao fim de cinquenta metros, ainda com o cornetto de chocolate na mão. Parar.

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Andar só no preto.

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Encontros bons e imprevistos [depois de tantos meses, esta semana tem sido tirar a barriga de misérias, hã Bifaninha?]

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Comer flores, ver a cidade do chão.

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Trocas e saudações.

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Ouvir o chão.

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E comunicar com ele.

o povo disperso jamais sera vencido - Alda J.Moura

[acenando para a câmara, a nossa Polegar, em plena performance]

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Dançar na praça, cheia da luz que rasgara o percurso.

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O povo disperso jamais será vencido!

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terça-feira, julho 08, 2008

a fina flor ou grandes séries têm grandes deixas

Em Rome anuncia-se o funeral de Júlio César. Adoro, ai, adoro, quando se assumem milenares discriminações que se mantêm mais ou menos latentes —nada que me tire o sono, ainda há uns dias comentava com um amigo—companheiro—homem-da-vida, que as putas nunca me repugnaram muito, agora os chulos... Já os comerciantes, depende... Ora César terá todas as honras. Discursarão o Pretor Marco Júnio Bruto e o Cônsul Marco António. E por último...

... No prostitutes, actors, or unclean tradesmen may attend!


Dixit.

in vespa [para o David]

Os braços abertos na marginal. A areia do Guincho espetando-se nos pés nús. O azul escuro-cromado entre as rochas. A Joni Mitchell nos ouvidos. Os jerry lewis de luxo do passeio Diana Spencer, um avião ruivo e gordo em patins, um outro par de patins ajudado por dois bastões de ski numa superfície plana, as gargalhadas. As viagens alternadas a Marte, eh, desce à Terra, vamos por onde agora? Os caracóis em malga e a imperial, os cães e os gatos, os velhos de pernas ao léu sobre as rochas, partilhando o mar e a escrita, o avô e o neto encostados à guarda de pedra, partilhando o mar e gelados. O vento. O sal no ar. A estrada. A luz. Os recantos. Os buracos partilhados, os silêncios e as dores, os olhos que falam. Os jogos de palavras, o riso. Não há Sentido, porque há todos e o infinito é o zero, é duro sabê-lo, mas não será melhor? No fim de tudo, continuamos a ver cabelos de anjo e desfiladeiros de penas quando olhamos para as nuvens, ao mesmo tempo que lhe conhecemos os dois lados, e sim, no fim de tudo gostamos que assim seja. Não há sentidos, mano, mas há dias assim, em que não se faz planos e de repente só há sentidos e o mundo cabe todo numa vespa azul-escuro, como o mar cromado. E ainda por cima faz cócegas... há lá melhor?


Both Sides Now - Joni Mitchell

segunda-feira, julho 07, 2008

divergências significantes: a legalidade

George W Bush lamentou as eleições fraudulentas do Zimbabwe. Aposto que ficou verdadeiramente sentido, e eu bem que o compreendo. Estes putos invejosos, pá, não podem ver nada...

and I live by the river

Estou a ver as reportagens-centopeia no incêndio nos Restauradores. Ponto um, sim, fico com o coração apertado, mas talvez nem agora se perceba de uma vez por todas que os prédios devolutos, o entulho, o desleixo que ainda definem a Baixa são acidentes à beira de acontecer; acabou de acontecer um; e até nem temos tido azar. Ponto dois, gosto de pensar que, como eu, mais pessoas ficaram com o coração apertado e estão preocupadas com a sua cidade; mas se já me espantei com os quinze moradores alojados no São Jorge —quinze pessoas só em dois ou três números da Avenida... boa!, afinal sempre vive lá gente—, agora estou perplexa com a quantidade de gente em redor dos cordões de segurança numa madrugada de segunda-feira. Where did they come from? Afinal vive imensa gente na Avenida. Para além dos quinze que já estavam no São Jorge... boooolas...


...

Um bombeiro tenta rebuscar um bocadinho o discurso para o microfone da televisão, mas desiste rapidamente e acaba por resumir: —Vamos lá ver se a gente consegue manter aquilo de pé. Delicioso. É toda a tragicomédia olisiponense numa frase.

domingo, julho 06, 2008

divergências significantes: o perdão

Há uma coisa que desde miúda tenho dificuldade em integrar. Isso a que vulgarmente se chama "capacidade de perdoar". Não tenho. Creio que lamento, mas constato sempre, regularmente, que não tenho. Tenho uma capacidade grande de não guardar rancores, uma capacidade que acarinho como um tesouro, mas que ainda assim me parece sempre insuficiente, sempre necessitada de alimento. Mas será isso o perdão? A mera ausência de rancor? É que tanto no conceito me parece absurdo. O perdão é algo que transfigura imediatamente quem o dá e quem o recebe, estabelece uma relação de poder, em maior ou menor grau, maior ou menor seja o perdão. Encontrei esse incómodo nas palavras de Petra Von Kant, perdoas o que não compreendes, se compreendes não precisas de perdoar. E ali está. Se não compreendes não há compaixão, com-paixão, partilha de uma paixão, de uma dor. Há antes uma indulgência, um papel passado, carimbado, com ou sem validade notarial, declaro que a pessoa em questão foi perdoada por mim, assinado e etecétera. Não sei fazer isso. Não quero aprender. Não sou ninguém, não tenho poder sobre ninguém, não tenho de perdoar absolutamente ninguém. Se não compreendo e se não posso combater, retiro-me. Se compreendo, talvez lute. Talvez não. E de repente lá cruzas em fantasma o meu caminho, uma inesperada peça do puzzle me é entregue docemente na mão, e a luz acende e eu compreendo. E compreendo que aquilo que de repente surge desenhado a meus olhos, tu não tens capacidade de olhar, é para ti um monstro predador e vociferante como a culpa, e tu não podes olhar por cima do ombro, ele está nas tuas costas só à espera que dês parte fraca. Pensas tu. Não é um monstro, é uma janela que talvez pressintas a tempo. Eu espero que sim, desejo por tudo que um dia consigas pôr a cabeça de fora e respirar. E nunca te perdoei. Não foi preciso.

sábado, julho 05, 2008

vilas morenas com braços de prata

 Era Um Redondo Vocábulo - José Afonso

O som perfeito. A noite quente. E aqueles dois duendes do piano sempre vogando, mergulhando, empastando-se de som e de gozo. Como os vejo sempre. Há músicos especiais, e se há cerca de dez anos foi precisamente com eles que o Jazz em Agosto tomou conta do Grande Auditório, hoje o seu prazer cresce, a sua música enche, a sua estrada sente-se. E o que mais me fascina na cumplicidade entre os pianos de Bernardo Sassetti e de Mário Laginha é a espontaneidade de relógio onde nem um olhar se troca, outro canal é o canal aberto. Que Venham Mais Cinco fosse um blues, já era curva suficiente, mas que dizer do Alban Berg que tão naturalmente nasce do Redondo Vocábulo? Ou da interioridade minimal e profunda da Grândola? Obrigada. Que foi a única coisa que consegui dizer ao Mário, quando me despedi de fugida. O Bernardo, esse, já devia ter embarcado no ovni que o havia de levar de volta ao seu planeta. Que, continuo a dizer, não é este. Ainda bem para ele, mas sobretudo para nós.

sexta-feira, julho 04, 2008

moosbrugger

Ontem li o capítulo de literatura mais extraordinário que alguma vez me encheu os olhos, e ainda só vou na página 118 de um primeiro volume com um total de 843. Seria capaz de copiar o trecho todo para aqui, as suas mais de dez páginas de génio, de filosofia, de psicologia, de cinematografia, de fino humor, de criação, de jogo de palavras e imagens, de sub-textos que conduzem a subterrâneos ainda mais profundos e que num alçapão inesperado nos trazem de volta à luz, de volta à porta por onde entrámos. Estou esmagada. E por isso mesmo, aqui fica uma única frase, sem literatices, sem ornamentos, aparentemente sem cantos recônditos, escorreito eixo de uma colagem absurdamente lúcida. 


O mundo pode ser inseguro, mesmo quando não estamos embriagados.

Robert Musil, in O homem sem qualidades, 18."Moosbrugger", trad. de João Barrento, ed.Dom Quixote

lamento antigónico em 35mm

eras
somente eras
pequenino
e somente eras
fechado
nesse círculo feminino
hoje és salão vítreo
demasiado amplo para tão pequena alma
assustada
espaço obscuro e vitoriano
segregando monstros pelas paredes
a eles te juntas julgando-te comensal
a eles te ofereces cordeiro
alagado em pesadelos
assim esperas salvar-te
assim pensas vingar-te
desse círculo original
que não te atreves
a odiar.


Agnus Dei - JS Bach

[há palavras que não sei bem de onde vêm; mas se a origem é obscura, a música que as segue como lastro é por vezes claríssima...]

quinta-feira, julho 03, 2008

espelho de feira

Não é que deforme. Sublinha. Esta característica, aquela. E não posso deixar de rir da diferença entre a naturalidade captada pela VT e o ar de "tirem-me deste filme" na gala. Sou transparente, mais vale resignar-me. Cá em casa foi a risota pegada. Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor, Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora... foi ter com a Etelvina, vacinada e mal-criada.

quarta-feira, julho 02, 2008

céu limpo



Convosco, a mulher mais linda do mundo, no Harlem Festival, em 1969. I've got my arms, my hands, got my fingers, got my legs, got my liver... got my blood.

terça-feira, julho 01, 2008

céu da cama

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Lisboa, Junho de 2008

1h07. Uma e sete. Bom minuto para escrever: —ainda bem que é dia 1. Finalmente, acaba um semestre que só posso classificar de marado. Marado. Sim, sem dúvida, não encontro melhor palavra. Aconteceram-me coisas muito boas, muito bonitas, encontros, reencontros, nós que se desfizeram, outros que se revelaram. Dois espectáculos que me ficaram no sangue, sobretudo o segundo, tão rápido e tão forte. E o cinema, finalmente, uma chuva de tsurus caída de uma nuvem transparente conduzida pelas minhas mãos, as pazes feitas com a câmara, o conforto, vamos acabar sós, meu amor. E muitos abraços, muitos afagos, belos olhos cálidos, claras almas abertas. E muito riso. E muitas lágrimas, reno dakota I'm reaching my quota of tears for the year. E porrada. Muita porradinha. Um thriller romântico que se revelou fraca e banal comédia de costumes. Umas quantas máscaras no chão. Crescer mais um bocadinho. Cada vez dói menos, cada vez se encara melhor no espelho. É uma e sete. Tenho uma amiga, próxima pela força dos laços indirectos, em coma. Vi morrer um homem. Amanhã corto a última ponta solta deste mês. É uma e sete e Junho acabou. Recordá-lo-ei assim, com a luz do crepúsculo morrendo no lampião amarelo.