domingo, março 30, 2008

e falando em pesca...

Hoje no ensaio deu-me para entregar um discurso amoroso como se fosse uma arenga política, berrada e agressiva quanto baste. Relações de poder, enfim, e não é possível esquecer completamente o peso nazi quando se mergulha em Fassbinder. Foi uma escala importante, parece-me. Mas rebentei com a voz toda. Primeiro fiquei um bocado deprimida. Bem sei, por experiência, que a técnica não é o que mais nos preocupa no acto da improvisação, mas caramba, estava com a voz impecável no momento anterior e ando eu para aqui a dar aulas disto, que fraude...

Mas rapidamente me apercebi do fenómeno que me embalou. O meu corpo reconheceu imediatamente a situação e colocou o centro onde o sinto em grande parte dos discursos políticos aparentemente veementes: fora. Fora do corpo, fora da carne, fora da verdade. E ou muito me engano, ou não foi por isso que perdeu um pingo da convicção.

rei pescador 4.0 (ou Ciao, Kitty!)

To me, every film, every project, is an experiment. How do you translate this idea? How do you translate it so that it goes from an idea to a film or a chair? You've got this idea, and you can see it and hear it and feel it and know it. Now, let's say you start cutting a piece of wood and it's just not exactly right. That makes you think more, so you can take off from that. You're now acting and reacting. So it's a kind of an experiment to get it all to feel correct. When you meditate, that flow increases. Action and reaction go faster. You'll get an idea here, then you'll go there, and then there. It's kind of like an improvisational dance. You'll just be zipping along; you'll be banging on all eight cylinders. And it's not a pretend thing; it's not a feel-good program, where they tell you, 'Stop and smell the roses, and your life will get better.' It comes from within. It has to start from deep within, and grow and grow and grow. Then things really change. So transcend, experience the Self - pure consciousness - and watch what happens.

David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007




(é que nem tentem tirar sentido da ligação entre as palavras e a imagem, porque fará sempre tanto sentido como algumas sequências do David Lynch, salvaguardadas as distâncias estéticas; mas faz sentido para mim e para uma certa pessoa; é que este excerto fez-me imediatamente pensar em lianas e mais lianas; e não poucas vezes, este livro faz-me pensar em ti; aliás, na margem escrevi, imediatamente e quase sem pensar, "as lianas da Raquel")

rei pescador 3.0 (ou Rosebud)


"Eraserhead" is my most spiritual movie. No one understands when I say that, but it is. "Eraserhead" was growing in a certain way, and I didn't know what it meant. I was looking for a key to unlock what these sequences were saying. Of course, I understood some of it; but I didn't know the thing that just pulled it all together. And it was a struggle. So I got out my Bible and I started reading. And one day, I read a sentence. And I closed the Bible, because that was it; that was it. And then I saw the thing as a whole. And it fulfilled this vision for me, 100 percent.

I don't think I'll ever say what that sentence was.


David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

rei pescador 2.0

So I was a painter. I painted and I went to art school. I had no interest in film. I would go to a film sometimes, but I really just wanted to paint. One day I was sitting in a big studio room at the Pennsylvania Academy of the Fine Arts. The room was divided into little cubicles. I was in my cubicle; it was about three o'clock in the afternoon. And I had a painting going, which was of a garden at night. It had a lot of black, with green plants emerging out of the darkness. All of a sudden, these plants started to move, and I heard a wind. I wasn't taking drugs! I thought, 'Oh, how fantastic this is!' And I began to wonder if film could be a way to make paintings move.













David Lynch, Memory of a head

















(...)

Cinema is a language. It can say things - big, abstract things. And I love that about it. I'm not always good with words. Some people are poets and have a beautiful way of saying things with words. But cinema is its own language. And with it you can say so many things, because you've got time and sequences. You've got dialogue. You've got music. You've got sound effects. You have so many tools. And so you can express a feeling and a thought that can't be conveyed any other way. It's a magical medium. For me, it's so beautiful to think about these pictures and sounds flowing together in time and in sequence, making something that can be done only through cinema. It's not just words or music - it's a whole range of elements coming together and making something that didn't exist before. It's telling stories. It's devising a world, an experience, that people cannot have unless they see that film.

David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

sexta-feira, março 28, 2008

rei pescador

Desire for an idea is like bait. When you're fishing, you have to have patience. You bait your hook, and then you wait. The desire is the bait that pulls those fish in - those ideas. The beautiful thing is that when you catch one fish that you love, even if it´s a little fish - a fragment of an idea - that fish will draw in other fish, and they'll hook onto it. Then you're on your way. Soon there are more and more and more fragments, and the whole thing emerges. But it starts with desire.

David Lynch, Catching the big fish, Jeremy P.Tarcher/Penguin, 2007

quinta-feira, março 27, 2008

ainda vim a tempo...

Pois diz que hoje é o Dia Mundial do Teatro. Como no meu mundo esse dia é quando um homem quiser, mais precisamente o "patrão", jejeje, e porque aqui pela invicta as comemorações mais parecem uma boda cigana, quase que me perdia. E era uma vergonha, enfim. Feliz Meia-Hora Mundial do Teatro, pessoal.



é dia mundial, gente, esperavam o quê, o choro e o riso gregos do costume?; não faltava mai'nada...

Kojyo - a máscara do velho, teatro Nô, Japão
imagem retirada daqui

(post fantasma

... raios partam o caçador de alces mais a sua carabina caprichosa. conseguiu acertar em tudo, menos na puta da bola de espelhos.)

e quando for grande quero tocar contrabacia!




... a isto chamo um fim de noite em grande. Espreitem-nos aqui e aqui. Que importa que, vindos direitinhos de Almada, costumem ter à frente o cú do Cristo-Rei, vulgo saca-rolhas? Aposto que até até aquele cú de pedra abana, não há calhau que resista a tanta pica, à alegria de viver, à contrabacia, à guitarra portuguesa com arco e ao violino dedilhado. E à Miranda.

os reféns do momento

O texto tem momentos brilhantes, embora peque assiduamente por excesso de literaturice, é a minha modesta opinião. A elocução por vezes trapalhona dos actores também não no-lo entrega sempre da melhor forma. Mas não me canso de repetir, ver actores é um prazer inigualável, e aqui os temos inteiros, reflectindo sobre si mesmos e sobre o absurdo que é esta esquizofrenia feita profissão. Mário Santos e Luciano Amarelo, em particular, são uma delícia, assim como o crooner Rui Lima. O olhar inteligente e sensível de Ana Luena e a luz de Nuno Meira fazem o resto. A partir de amanhã (ou seja, hoje), no TeCA, vale bem a pena apanhar a boleia para Nenhures.

terça-feira, março 25, 2008

via sacra

Vou ter de penar por ti, eu sei. Mesmo assim assumo que te quero tomar a pele, pese embora o caminho que vais obrigar-me a calcorrear. Pesei-te as luzes e as sombras, sei que me pertences mesmo que não te ganhe, mesmo que me esteja reservado o segundo plano e te possa tomar para mim apenas nos espaços deixados livres por outro corpo. Não importa. Foste ponto de foco, de viragem, de fuga, há anos que o és, e nunca te perdi as palavras e os humores. Instalaste-te no meu sub-consciente, conduziste-o, desafiaste-o,"o que é que queres fazer da vida, afinal, minha menina?", teatro, Sally, quero fazer teatro; a resposta continua a mesma, dez anos depois de nos cruzarmos em mim, dez anos depois da primeira cadeira no palco, da primeira profissão de fé, apenas o início de encontros sucessivos. Teatro, Sally, apenas teatro. Sabes bem que when I go, I'm going like Elsie. Pareces-me agora, que te percorro as páginas novamente, ainda mais humana, ainda mais bela, ainda mais trágica. Conheço-te bem há dez anos. E continuas a fazer-me chorar.

desculpe?...

Ratos para meter em blogs? Alguém fez uma pesquisa no Google com a expressão "ratos para meter em blogs"? E veio cá parar?...


Que é feito daquelas tradicionais "mulheres distraídas nuas"? Uma pessoa pensa que já viu de tudo, e afinal...

segunda-feira, março 24, 2008

calçada


Almirante Reis, Lisboa, Março de 2008


Pedra a pedra, uma duas cinquenta e três noventa e uma, desta vez passei as cem antes que o tacão se prendesse numa falha da calçada e me desfiasse a elegância pelo caminhar abaixo. Aquele gajo continua no mesmo sítio, há três dias que o vejo deitado no mesmo intervalo, pacote de vinho branco em cima da manta imunda, as mãos em riste e a voz afiada contra o vazio. Nem reparou que nestes três dias passei por ele repetidamente e o olhei, ele só vê o vazio, no meu vazio ainda o consigo ver a ele. Anda uma rapariga desde os doze anos a aprender a equilibrar-se nestas merdas e depois qualquer buraco lhe rouba a panache, nem o top de lantejoulas me salva. Cento e treze e pumba, o tornozelo torcido e a dignidade esmagada. Li não sei onde que os saltos são uma afirmação do poder feminino. Ficamos mais altas, e mais instáveis, mais perto do céu uns míseros centímetros, mais distantes do chão os mesmos longuíssimos imensos perígosíssimos mílimetros. Tenho um metro e sessenta e nove, ainda não tenho trinta anos, não me sinto maior, mas doem-me as pernas. Os perigos destas ruas são-no pouco para mim, não os temo por dez centímetros menos. Os outros, os que me assustam mesmo, os que sei que não posso enfrentar, não se intimidam com um tacão. Rosnam. Grunhem. E na avenida plana como a savana, só me resta correr e os saltos são empecilhos, como hastes de gamo na floresta. O bêbado ressona sob a sua manta de vinha d'alhos. Preciso do chão, preciso de estar pronta a correr. O meu poder é poder fugir.

domingo, março 23, 2008

post empacotado

estou tão farta de fazer e desfazer malas...

peça de câmara para cinco actores



A memória, o instinto, a água, o desejo, o amor. Som e luz abrindo espaços concretos e mentais. Maldições e rendições, subúrbios cinematográficos e haréns das mil-e-uma-noites. E o imenso prazer de ver actores. Até 27 de Abril, no Teatro da Politécnica.


A Noite Árabe, de Roland Schimmelpfennig
tradução e encenação Paulo Filipe
cenografia e figurinos Vera Castro
banda sonora Nuno Rebelo
desenho de luz José Carlos Nascimento

com Dinarte Branco, João Grosso, Sara Carinhas, Teresa Sobral, Victor Gonçalves

co-produção TNDMII/Paulo Filipe

sábado, março 22, 2008

sexta-feira, março 21, 2008

it might as well be spring

Príncipe Real


Santa Catarina



Não sei se já vos tinha dito, mas estava cheia de saudades de casa... Boa primavera, pardalecos!

written on the walls 4.0

















Bica

written on the walls 3.0






















rua dos Sapateiros

written on the walls 2.0

















Martim Moniz

written on the walls





















rua Vítor Cordon

quinta-feira, março 20, 2008

"O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela forma como trata os seus animais."

Tão simplesmente exposto por Ghandi, tão difícil de entender pelos tecnocratas da pseudo-segurança. E é por isso que hoje se faz uma vigília frente ao Ministério da Agricultura, na Praça do Comércio, entre as 17h e as 22h, contra o despacho que pretende "acabar com os cães potencialmente perigosos", sem que nada tenha sido feito para os proteger de donos criminosos. Pede-se roupa preta e que se deixe os animais em casa. Esta é uma luta por eles, mas mais ainda por nós...

... porque o animal mais perigoso é o Homem, que formata os seus cães como máquinas de agressão e violência.


Informações e petição AQUI.

quarta-feira, março 19, 2008

youtube video awards 2007

Em princípio, não seria coisa que me desse para vos chamar a atenção. Só que há a divulgação mediática que o vídeo vencedor pode ganhar. E entre todos os nomeados, está este:




Pronto. Acho que não preciso de dizer mais, a Avaaz fala por si. Se concordarem comigo, podem votar Aqui (secção Politics, Stop the clash of civilizations). Se não concordarem... bom, pensem lá melhor, vá. Press play, over and over again. Têm 24 horas, ainda não para o apocalipse, mas para votar. Um pequeno gesto para ajudar a que os nossos medos não sejam terríficas marionetas nas mãos dos podres poderes.

terça-feira, março 18, 2008

post palmatória (ou o que me irritam as manias dos locutores/apresentadores)

Senhores, pensem comigo e vamos lá ver se conseguimos perceber a fonética da nossa língua, não é assim tão complicada: se é ONU, a tónica está no "u" final; ou então passamos a escrevê-lo como vosselências o lêem - ONO, Organização das Nações Onidas, e assim sim, ler-se-ia Óno, como o nome daquele senhor dos óculos de mosca.

E já agora, estamos em cena, no palco, não em palco, como não estamos em sala ou em quarto; o palco é um lugar físico, concreto, a cena é um conceito abstracto. Vá, repitam comigo (é infindável o poder dos mantras) ónú, ónú, ónú; no palco, no palco, no palco. E escusam de agradecer...

E agora vou desligar o rádio para ir à minha vida. Tenho muito que fazer em rua.

segunda-feira, março 17, 2008

os tapa-furos por decreto

Estava segura de ele tinha inventado a história, só para termos uma discussãozita acalorada ao almoço, daquelas em que, nos dias bons, acabamos a rir porque sabemos que nenhum dos dois vai mudar de perspectiva, mas entretanto o ringue dá-nos um gozo do caraças. Ó pai, estás a brincar comigo, e ele de sorriso matreiro, não filha, a sério, não se pode fazer na língua, nos genitais e em qualquer zona com vasos, nervos ou músculos. Tive de conter a minha preocupação cinéfila, ora na língua?!, lá se vão as mamadas especializadas da Arquette no Pulp Fiction; mas acabei por me rir mais do que debater, e em duas ou três tacadas marquei os pontos de que precisava, que o velhote também já não tem a resistência que tinha e, pensei eu, um disparate destes não merece grande empenho na discussão. 

Mas afinal não era isco, é mesmo verdade. Há um projecto-lei para disciplinar os piercings!!!!!??!!?! E como pergunta o Cenas no post que me matou as dúvidas, vai passar a ser permitido fazer piercings apenas nas unhas, que deve ser o único ponto do corpo sem músculos, nervos ou vasos? Bom, há também o cabelo. E o cérebro da alminha que se lembrou desta.

Há multas, com certeza, "de € 2490 a € 3490 e de € 24940 a € 44890, consoante o infractor seja pessoa singular ou pessoa colectiva". E quem as aplica é a ASAE, claro, a novíssima e omnipotente polícia de costumes deste novo estado pseudo-socialístico-socrático. Estamos mergulhados numa tragicomédia, e vá, estes números vão dando para rir. De facto, o nacional e premente desígnio pode, deve, tem de ser o fiscalizar dos furos que cada um decide fazer na sua própria chicha, chiça, que se eu não vivesse cá era capaz de conseguir ver melhor este anexozito da UE como a anedota que parece não querer deixar de ser.

Aqui fica, com os devidos agradecimentos ao Cenas Obscenas, o trecho tarantinesco de apologia do furo. Metam-se na vossa vida, senhores. Fiscalizem as condições de higiene das casas de tatuagens e piercings, que é para isso que serve uma autoridade, e deixem os nossos corpinhos em paz, pode ser? Bem sei que 1984 não passava de 1948 ao contrário, mas se continuamos nesta onda, não será preciso esperar até 8002 para receber uma visita cinzenta a mandar-nos mostrar as amígdalas, o umbigo, a intimar-nos a baixar as calcinhas em nome da saúde pública.

TRUDI: You know how they use that gun to pierce your ears? They don't use that when they pierce your nipples, do they?

JODY: Forget that gun. That gun goes against the entire idea behind piercing. All of my piercings, sixteen places on my body, all of them done with a needle. Five in each ear, one through the nipple on my left breast, one through my right nostril, one through my left eyebrow, one in my lip, one in my clit... and I wear a stud in my tongue.

VINCENT: Excuse me, but I was just wondering... why do you wear a stud in your tongue?

JODY: It's a sex thing. It helps fellatio.

LANCE: Don Vincenzo. Step into my office?

domingo, março 16, 2008

post biológico 2.0

E aí vem um novo rebento para a família "manos da figueirinha". E vai ser fresc@, a avaliar pela limpeza com que passou despercebid@ durante três meses. A primeira partida, já a pregou aos pais, portanto, e ainda nem está cá fora. Vai ser bonito, ó mano, vai vai...

post biológico

Hoje comi  morangos. Pequeninos, engelhados, feios feios feios. Sabiam a morango.

bom dia!



If the children don't grow up,
our bodies get bigger but our hearts get torn up.
We're just a million little gods causin' rain storms turnin' every good thing to
rust.

I guess we'll just have to adjust.

With my lightnin' bolts a glowin'
I can see where I am goin' to be
when the reaper he reaches and touches my hand.

sábado, março 15, 2008

marca de água

Largar a casa pela casa. Ficar. E che sera, sera. Já nada tarda, Lisboa, e serei de novo tua.

elogio da predação (ou que bela é a misoginia na boca de uma mulher)

- Então e é assim, estás mesmo interessada num gajo e vais para a cama com ele, assim, sem mais? À primeira?
- À primeira, à segunda, quando se proporcionar, sei lá. Então e... o que é que me está a escapar, se não estivesse interessada é que deveria ir para a cama?
- Se não estiveres interessada é indiferente, mas se estiveres tens de te fazer difícil.
- Ah, percebo, portares-te como se tivesses quinze anos apesar de teres o dobro... faz sentido, de facto.
- Tem de se perceber se ele merece...
- Claro, o meu corpo é uma oferenda ao herói, ele tem de provar o seu mérito, com certeza.
- Estás a desconversar, caramba. Não me digas que não percebes as diferenças.
- Percebo, percebo. Eles fodem, nós entregamo-nos.

sexta-feira, março 14, 2008

bola de cristal carvão-carvão

Presente de feiticeira, dá-me as respostas que sei e não vejo. Ou alimenta-me de ambrósia as doces dúvidas.


I do not know much about gods; but I think that the river
Is a strong brown god
T. S. Eliot, Four Quartets
Era de noite. A chuva sem doçura. A estrada
tão diferente das estradas
a sul deste outro rio.
A saudade parada durante muito tempo,
nas noites sem doçura, como a chuva.
Era de noite e eu não sabia nada


Entre as duas paisagens, entre os dois rios
mais físicos que tudo, partiram, as gaivotas, eu
perdi-me. Sem pertencer jamais a uma paisagem
própria. Mas o olhar que fala, fala de um ponto outro.
E sabe perspectivas de tempos
menos planos, tem sempre cores diversas,
muitos fios, basta Odisseu para as
desconjuntar


Era depois mais tarde. O cheiro da cidade
na viagem, antecipando o sul,
o outro rio. Chegar de noite. Os cheiros da
cidade. E aportar depois na doçura
das coisas. Assim me parecia


Se me sento a jusante, as outras margens
soam-me mais caras, de maior arvoredo
do que aquelas que piso: e o mesmo quando
troco de visão: mais bela a outra margem
aquela onde não estou


Era depois dentro de uma outra noite.
Irresolvido olhar, inteira a mágoa. Desejar uma luz
reconstruindo os rios. As duas rochas: quase igual
beleza, as duas margens: de uma sombra igual.
E assim, ao estar em espaço de entre-
-margens, entrever outro tempo,
outro lugar.


Só quando o coração percebe, em
sobressalto, que é possível amar entre
dois rios, amar ambos os rios, esses que vão.
E ficam. Quando a chegada pode ser a mesma,
simultânea e idêntica. É quando estar na noite pode ser
saber estas verdades


Podia terminar, dizer agora:
não usava Odisseu fotografia
para lembrar a face recordada.
Ao viver entre as noites da memória,
saber que saber tudo: igual a saber nada,
que o fim igual à génese de tudo.
De calcário ou granito enfeitar coração.
E ficar entre amar -----

Ana Luísa Amaral, Entre dois rios e muitas noites

ou

ficar ou partir. a casa ou o exílio. o granito ou o calcário. esperar no ponto combinado que os atalhos ganhem lama ou seguir a estrada deixando o marco quilométrico para trás. ensinar ou partilhar. insistir ou saber calar. agir ou reagir. desenhar o puzzle ou espreitar pelo canto do olho o desenho acabado. ajudar a abrir ou deixar fechado. reciclar ou deitar fora ou doar ou esquecer. construir ou desconstruir sem destruir sem agredir. o rio ou o mar. a anca ou o peito. os olhos ou as mãos. pensar ou sentir. querer ou descrer. partir ou ficar.

quarta-feira, março 12, 2008

a minha casa

É o café de saco pela manhã, e a bombilla de mate. É a pronúncia da mouraria, desafiando o meu cantar da batalha. É esta luz generosa desenhando mosaicos sobre os telhados. É o Tejo espreitando em surpresas familiares no fundo de uma ruela que uma esquina descerra. É um pitbull de orelhas inteiras correndo pelo miradouro com os mesmos olhos do puto que o desafia a perseguir a bola. É o repicar imponente no topo da igreja da Graça. É ter a Raquel à distância de um telefonema e a Rita à distância da marginal e cruzar o adamastor com a certeza de encontrar o Miguel. É o 28. É mandar calar o Billy que devorou a comida num ápice e agora quer mais e está a ficar um badocha. É ter a Frika e o Sombra a ronronar sobre o meu braço. É poder atacar o piano sem estar sempre a espreitar a ver se passa alguém pela sala. É a parada de bibes e risos infantis ao soar do último toque enquanto bebo uma caneca de Marco Polo Rouge na varanda-camarote de onde os espreito, filhos e pais. São os saris coloridos e os risos da Índia a encher o parque infantil. São as ruas à minha volta cheias de cores e línguas diferentes. É o Puto estar quase a chegar para jantar.

olhando de longe a prancha

Edward Hopper, Rooms by the sea, 1951

-De facto, não é coisa que me interesse muito - disse o gato.
- Fazes mal - disse o rato. - Ainda estou novo, e até este momento tenho sido bem alimentado.
- Eu cá também ando bem alimentado - disse o gato - e isso não faz com que eu sinta vontade de me suicidar. Estás portanto a ver por que é que eu acho essa coisa anormal.
- É porque não o viste a ele - disse o rato.
- O que é que ele fez? - perguntou o gato.
Não tinha grande vontade de sabê-lo. Sentia calor e todos os seus pelos muito elásticos.
- Está à beira da água - disse o rato -; está à espera, e no momento exacto anda e pára no meio da prancha. Fica a ver uma coisa qualquer.
- Não pode ver grande coisa - disse o gato. - Só se for um nenúfar.
- Sim - disse o rato. - E espera que ele suba para o matar.
- É idiota - disse o gato. - É uma coisa sem interesse.
- Depois de esse momento passar - continuou o rato -, volta para a margem e olha para a fotografia.
- Nunca come? - perguntou o gato.
- Nunca - disse o rato. - Está a ficar muito fraco, e não consigo suportá-lo. Um dia destes ainda vai dar um passo em falso quando passar na prancha.
- E o que tens tu a ver com isso? - perguntou o gato. - Ele sente-se, por acaso, infeliz?...
- Não se sente infeliz - respondeu o rato -, sofre. É o que eu não consigo suportar. E depois vai acabar por cair na água, por se debruçar de mais.
- Sendo assim - disse o gato -, quero prestar-te o serviço; mas não sei porque digo "sendo assim", uma vez que não compreendo nada.
- És formidável - disse o rato.
- Mete a cabeça na minha boca e espera - disse o gato.
- Vai demorar muito tempo? - perguntou o rato.
- O tempo de alguém me pisar o rabo - disse o gato. - Tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo bem estendido, não tenhas medo.
O rato afastou as mandíbulas do gato e meteu a cabeça entre os seus dentes afiados. Logo a seguir retirou-a.
-Diz-me cá - perguntou -, hoje de manhã comeste tubarão?
- Ouve, disse o gato -, se não te agrada podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinho.
Parecia aborrecido.
- Não te zangues - disse o rato.
Fechou os pequenos olhos pretos e pôs a cabeça em posição. Cauteloso, o gato encostou os caninos acerados ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos do rato misturaram-se com os seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estender-se no passeio.
Aproximavam-se, a cantar, onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio o Apostólico.



Boris Vian, A espuma dos dias, trad.: Aníbal Fernandes, Frenesi

vade retro, cambada de comunas!

Então parece que o enriquecimento excessivo é agora pecado capital. Porquê? Porque, necessariamente, gera pobreza. Onde está a fasquia em que o lucro passa a condenar as alminhas, isso é que não sei. Mas aposto que Marx e Engels estão neste momento sentados à direita do pAi, do fIlho e de John Stuart Mill, a brindar com aguardente de medronho. Olha o Ratzinger, hã? Quem diria que tinha a Teologia da Libertação na mesa de cabeceira?



Consta que já se pode começar a formar a fila à porta do Banco Ambrosiano, que a distribuição dos lucros terrenos está para começar em breve. Isto se Joseph Bento Ratzinger XVI tenciona meter mãos à obra para evitar que não tarda tenhamos a sede do Vaticano, in situ, a deixar o pobre Satã com a cabeça em água... fervida. Em banho-maria, portanto. E que seria de boa parte das fés deste mundo com um Demónio incapacitado?...

terça-feira, março 11, 2008

dance monkeys, dance! (reprise)

Já aqui o postei, mas há tanto tempo que já nem eu me lembro. De qualquer forma, se me ando a repetir, a feminina culpa desta vez é de um gajo, El Mau, o citador. Diz-se que a pensar morrem os burros, mas é a pensar que sobrevivem os macacos. Convosco, Ernest Cline, just another monkey.


in between stations

In Between Days (Acoustic Version)
In Between Days (A...
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in between trains. in between homes. in between towns. in between jobs. in between paths. in between decisions. in between feelings. in between friends. in between seasons. in between loves. in between songs. in between words. in between shadows.

in between me.

monumento ao soldado adormecido

Praça Carlos Alberto, Março de 2008

segunda-feira, março 10, 2008

quase haiku

Não sei de ti. E tu, sabes?

sábado, março 08, 2008

sing me not a ballad




Não é dia de raminhos de margaridas. Nem de caixas de bombons. Nem de canecos de pvc com ursinhos a dizer "és a melhor mulher do mundo". É efeméride simbólica, de lutas pelo direito ao voto, pela cidadania, pelo salário igual para trabalho igual. Isto falando apenas em direitos, como direi, formais, e sem entrar pelo escortanhar de mentalidades, chauvinismos, masmorras mentais e sociais, abusos e violências várias. Não é um celebrar da feminilidade, é um recusar da discriminação. E infelizmente, está longe de deixar de fazer sentido.


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processo de intoxicação, dia 5



Angst essen die Seele auf, Angst essen die Seele auf... Angst essen die Seele auf.

- Não chores... então, porque choras?
- Porque estou tão feliz, mas tenho tanto medo também.
- Medo não. O medo não é bom. O medo come a alma.

divergências significantes: a comédia

Uma noite do outro lado do palco, novamente público num texto e num espectáculo já muito conhecidos e reconhecidos. Uma comédia. Negra. Inteligente. Em que cada palavra é uma gota de ácido pronta a disparar uma gargalhada. Que a velocidade de débito e a falta de hábito generalizada em lidar com a linguagem façam com que muitas pérolas passem intocadas pelo riso da plateia, compreendo, sobretudo num texto que acumula punchlines com uma proficuidade impressionante. Que não se goste do espectáculo, também é normal, que seria do azul se ninguém gostasse do amarelo? Que a maior parte do público não reaja a uma deixa como "isto tem de ficar entre estas três paredes", é até lógico, é piada profissional. Mas confesso que, cem anos que viva, hei-de surpreender-me sempre com o potencial cómico da expressão "Estás bem fodido!", ou de qualquer outra que tenha a f word mais ou menos declarada. É que julguei que a casa vinha abaixo.

Pois, o riso é humano por definição. A subtileza, isso são outros quinhentos. Séculos.

chorriso

(a ti, que me conheces o alfabeto, nem preciso de dizer onde encontro humanidade. na comunidade que naturalmente se organiza em interdependências, mas não como as abelhas. no choro, mas não como os crocodilos. no riso, mas não como as hienas.)

sexta-feira, março 07, 2008

ah, mas a flor é linda...

Não temo olhar-te, espelho, e em ti seguir cuidadosamente os traços que me traçam. Não sou eu, sei-o, mas é o mais que poderei ver da minha máscara, o mais que poderei ver daquilo que outros vêem. Ver-me-ão melhor, sem a distorção do reflexo, ver-me-ão pior, sem o filtro que os órgão internos põem ao caminho até àquele ponto mínimo, profundo, onde eu estou dentro de mim. No meio de tudo isto se perde a realidade. E se entontece o tonto narciso, estrábico e patético. Não há narciso que o não seja. Patético. E estrábico.

quinta-feira, março 06, 2008

processo de intoxicação, dia 3




- Diga...
- Posso usar a sua casa de banho?
- A minha casa de banho? Como assim?
- É que... quero suicidar-me.
- Que engraçado.
- Existe um país muito pequenino, de seu nome Japão
de casas e praias graciosas e graciosas senhoras liliputianas
de árvores altas como rábanos em Maio
e torres de pagode altas como um ovo
colinas e montes do tamanho de anões
e seres minúsuculos que percorrem o musgo.
Apetece perguntar: mas então, o que é isto?
Na Europa é tudo tão grande, tão grande
e no Japão tudo é pequenino.

ainda Querelle

Eu bem sabia que havia uma razão plausível para ultimamente, quando me perguntam como vou levando a vida, me dar para responder, "um dia de cada vez, como os Assassinos Anónimos."

Added to the moral solitude of the murderer comes the solitude of the artist, which can only acknowledge no authority, save that of another artist.

quarta-feira, março 05, 2008

processo de intoxicação, dia 2

Ontem, "O direito do mais forte à liberdade". Hoje, o direito do mais belo, "Querelle", o tal do pacto com o diabo.




Jeanne Moreau ainda cantando, precisamente vinte anos depois e provando que o tempo não é inimigo, apenas um companheiro que nos leva ao fim da estrada. Só uma actriz como ela pode dizer um texto destes sem perder um pingo de classe e de graça, e terminar tão maravilhosamente, não naturalmente teatral:

-You know, I dreamt a lot about your prick, lately.
- Yeah? Was it nicer in your dreams?
- No. I'm very satisfied. You have a solid, heavy, massive prick. Not elegant, but strong. So different from Robert's.
- Different, how?
- Your prick is more in character.


Desta vez, vinte anos depois, Jeanne Moreau não é o centro de triângulos de amores, mas o elemento forçado a ser exterior ao amor. Mergulhados em cores de uma renascença paralela, os viris homens de "Querelle" concretizam, passo a passo, o homoerotismo sublimado pelos pistoleiros em duelo no velho oeste, pelos punhos cerrados em lutas nas docas de Nova Iorque, todo o imaginário americano tão amado pelos europeus, com ou sem declaração assumida. É a segunda vez que vejo "Querelle", mas da primeira, há uns quinze anos, recordo apenas que não percebi a ponta de um corno. Como Querelle, o marinheiro, joguei aos dados e tive a minha primeira vez. Desconcertante, é o mínimo que posso dizer.


E como se pode depreender do início desta conversa, ao ouvir cantar a Moreau, lembrei-me imediatamente do seu doce turbilhão. E dos meus, pois sim, e dos meus.

o pasquim faz 18 anos

Não dá para escapar, como tão bem se lê na Crónica Sem Dor do Rui Tavares. Na última página, sim, aquela por onde começo a leitura do jornal, já não pelo Calvin, mas pelo Rui, precisamente, cujas palavras tantas vezes subscrevo. Como hoje: um português dos últimos dezoito anos, que goste de ler imprensa, é filho deste jornal, mesmo que disso não se dê conta. Eu, como o Rui, sou-o, embora ainda me lembre bem da era a.P. (antes do Público), em que o Diário de Lisboa era rei lá em casa e custava sempre setenta e cinco escudos, sem quilos de suplementos oficialmente gratuitos mas que inflaccionam e fazem variar diariamente o preço do jornal. Que a Guidinha era uma moça económica. E os tempos eram outros.

Os tempos. O Público tem 18 anos. E eu continuo a embirrar com o director, apesar dele nunca me ter chamado "rasca". Na P2 comemorativa de hoje, devidamente orgulhosa, mas enxuta, cada crónica traz a idade do cronista há dezoito anos atrás. Doze, treze, dezassete, dezoito, vinte e nove, trinta e cinco - bendito Miguel Esteves Cardoso, que não haviam de ser os cinquenta a impedir-te de começar uma crónica de aniversário com uma dissertação sobre as delícias do sexo oral e os engulhos dos pêlos púb(l)icos. Treze anos tinha eu quando percebi que finalmente podia fechar o luto pelo fim do DL, que me deixara, a mim e ao meu pai, órfãos do mesmo sujeito. Comprámos o primeiro Público. E o segundo já era "o nosso jornal". Fiz catorze nesse ano, uns meses depois. E assim, de repente, tomo consciência de que já há uns tempos que leio regularmente a minha própria geração. Tempo apenas para uma paragem quase surpreendida, para reparar nesta árvore inconscientemente abraçada, e para deixar ecoar na mente uma das pequeninas jóias que enchem os diálogos da minha dose de Fassbinder de ontem:

- O tempo voa!
- ... disse o ancião, esquecendo-se de inspirar.
- Isso é triste.
- Depende de quem ouve.

desintoxicar é que não

... quero cá saber que esta música tenha tocado até o pessoal sangrar dos ouvidos. É mesmo esta onda toda que me apetece. Apesar da prevalência das negativas, com este balanço cada "no" é um "yeah". Pois, está-se a queimar todinha, mas enquanto dura é deliciosa. Confesso que tenho uma esperançazinha lamechas de que a leoa se consiga reequilibrar no arame, para continuar a gamar grammys às barbies.

terça-feira, março 04, 2008

processo de intoxicação, dia 1



- O que vais fazer com a tua parte?
- Vou comprar um vestido, maquilhagem, coisas dessas.
- E tu?
- Talvez compre um peluche para o meu filho. E tu?
- Eu? Eu vou ao cinema.

casa nova, saltimbanco!

Outro quarto, no outro hotel, o primeiro, depois de um dia alucinante e uma viagem nocturna. O quarto, esse, nunca é o primeiro, olhe, desculpe, eu ainda fico algum tempo, precisava de um quarto com janelas e onde pudesse abrir a mala e continuar a mexer-me, obrigadinha. Boa, último andar, farejo os cantos, descerro as cortinas, os Clérigos à espreita. Hora de silêncio e necessidades comezinhas, este secador é fixe, porra, esqueci-me da escova de dentes, onde está o saco da roupa suja?, mistério, o directório de serviços diz que "no quarto encontrará um saco, blá blá blá", algures no quarto portanto, isto começa com um peddy paper, descubra o saco da roupa suja e livre-se da roupa interior com que viajou e como é que é possível que um cochicho destes tenha tantas gavetas, carago?

Pouso. E recordo tantas conversas com o meu querido señor dos maletas... Haja a mística da classe para nos acomodar o coração a qualquer soalho e chamar-lhe casa. Hoy vuelvo a la frontera, otra vez he de atravesar, es el viento que me manda, que me empuja a la frontera y que borra el camino que detrás desaparece...

segunda-feira, março 03, 2008

e partiu...

Já estou de novo sobre carris, a caminho de mais uns meses de café veneziano, desta vez com a acidez da nata alemã. Sinto-me uma espécie de monja, que veio uma semanita a casa visitar a família antes de regressar à cela contemplativa de um hotel da Batalha. Uma cela com uma enxerga fofa, que os votos de castidade e a espondilose não são chamados para este sacerdócio. Sicut erat in principio et nunc et semper. Amen.