quinta-feira, janeiro 17, 2013

da falta e da espera (e do privilégio de ler e poder sentir o que se sente ao ler certos livros)

A DAMA DAS NEVES


Era uma vez um grande demónio que vivia no mais alto pico da mais alta serrania da terra toda. Morava ele num castelo de penedo branco mesmo no bojo das grandes virações da neve, lá onde não trepam brejos nem agulhas de pinheiral. O vento andava-lhe de roda aos uivos, não havia em muitas léguas ao derredor nem casario ou ermida benta. E as nuvens de gelo bailavam em virações sem fim fazendo tinir endoidado o catavento de prata da barbacã mais soberba. Dentro do castelo que estava todo aparelhado de bons madeiros arruçados e panos de fina lã com traça de batidas a gamos javardos, com céus de anil e prados da papoila e da bonina mais subtil, havia dispostas por todos os cómodos fornalhas ardentes de cobre e oiro fino, lares sempre acesos todo o dia e toda a noite. O demónio, que era da altura de três carros de milho, luzia voz de trovão e barba ruça que lhe descia às partes, passava os dias em roncos de penar de boca de fogo para boca de fogo, só se aventurando ao ermo para caçar as águias alvas e os ursos de felpa pálida. Tal se dava somente na calmaria dos tufões de nevão. Vivia pois ensombrado de se ver assim sem mais companhia que a dos mais altos penhascos e abaladores ventos, mau grado as suas lareiras de oiro e as suas camas de minério de prata e pedras preciosas e peles de urso curtidas nesses sempiternos fogos e os manjares de boas carnes que é o que os demónios recebem de ração à mesa dos seus paços retirados. Seu maior entretém era o de vaiar as grandes águias brancas que vogavam no mau tempo até aos seus anchos balcões e mirantes de jade, sabendo-se defesas aos homens e aos diabos. Um dia que se achou mais repeso de tão grande penar, abriu de par em par um dos janelos de cristal de rocha do seu castelo de penedo alvo e bradou bem alto aos céus turvados de neve para que o deus das neves o ouvira, Grande Amo e Senhor das coisas brancas, até quando a minha penada solidão? Dá-me ao menos uma filha para que possa acompanhar-me neste tempo sem termo, nesta morada de fogo no coração dos sítios mais ermos e mais altos e mais frios de toda a terra.

MADALENA (aflita) — Ele morre, tia, ele morre?
ELISA — Não, minha querida, os demónios nunca morrem, coitados.
SIMÃO — E depois, e depois, tia?

E depois, ouviu-se então o fragor de uma grande quebra de gelos como se sete dos mil altos cabeços à volta houvessem desabado à vez e uma voz que esbravejava ainda mais de rijo que o reboar dos montes esfarelados, Que assim seja, ó Filho da Neve, que se faça em ti segundo a tua vontade. Nessa mesma noite, o Demónio das Neves adormeceu na sua cama de oiro e pau vermelho e peles brancas. Acordou pelo meio da noite com um ardor pequeno no meio dos peitos e viu, à luz dos imensos archotes e fogo aceso, que lhe estava a nascer na pele por debaixo dos pêlos ruços, sobre o sítio do coração, uma mancha de um branco a puxar ao azul, tal qual um cristal de neve, assim a modos de flor. Pelos dias que vieram, a mancha foi-se tornando em bolha fina e dura, fria aos dedos como o cristal da rocha e talqualmente transparente. Dentro dela estava uma menina que ia crescendo. Tinha as mãos postas e nelas um nardo mindinho, a cara muito desfalecida e de fina traça, os olhos de fenda rasgados alto fechados. Luzia um toucado de prata lavrada e uma véstia toda de seda branca bordada a migalhas de nácar e aljôfar, tão comprida que só se viam os pezinhos nus muito delgados ainda translúcidos e azulados. Ao fim de três dias, quando a menina já ia pelo menos em três mãos de altura e a bolha chegava à cinta e à raiz da gorja da barba do demónio, ele atreveu-se a tocar-lhe com a polpa de três dedos. O cristal estalou em mil pedaços muito airosos que foram esvoaçando para o chão e a menina abriu os olhos que eram da cor das sombras na neve e muito lisos e fundos e disse na palma das mãos do seu pai, Bom dia, Senhor Pai, dê-me a sua bênção.


Maria Velho da Costa, CASAS PARDAS, "A TERÇA CASA"