terça-feira, julho 31, 2007

La notte

Michelangelo Antonioni, 1912-2007

Há épocas em que caem como tordos, ou como folhas secas. Não é verão, é outono.

segunda-feira, julho 30, 2007

Selo final, o sétimo

Ainda na noite passada discorríamos a [meu] propósito sobre os socos no estômago que são as Cenas da Vida Conjugal e a sua sequela Sarabande... e hoje acordo com a notícia da morte de mestre Bergman. Seja qual for o percurso, afogados em certezas ou respirando dúvida, tudo tem um fim, todos temos um fim. Quando se está à flor da pele, todo o mundo parece pedir para ser lido de novo, interpretado de novo. E lá diz o povo, o que arde, cura.

domingo, julho 29, 2007

O sabor dos elementos



Apeteceu-me. Talvez porque o dia em que dei voz a este spot e respectivos teasers foi um dos dias mais difíceis que já vivi e este trabalho provou-me que a beleza pode aparecer até num pacote de feijões de soja. Não vou discorrer sobre as fronteiras entre arte e publicidade, mas esta campanha toca-me e estou contente por ser parte dela.

sábado, julho 28, 2007

O estado da blogueira ou Quem dera às vezes que a epiderme fosse estanque, que fosse inteira, que fosse de cobra

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Para o generoso André; que me perdoe as inconsistências recorrentes e não desista de cá passar de quando em vez. E para todos vocês que me deixaram mensagens de alento, mensagens que nunca chegam mas que são sempre paradoxalmente suficientes. Obrigada.

Interlúdio

Mudei de casa. E como se não bastasse ter nas traseiras um papagaio que assobia repetidamente a primeira frase do hino do sporting [entremeada com toques telefónicos diversos], acabo agora de me cruzar aqui no bairro com a grande Maria José Valério passeando a sua franja verde. Tudo isto deve querer dizer alguma coisa. Considerando que sou benfiquista desde os tempos do Néné, parece-me que o verde cosmos tenta avisar-me de que isto de ser fiel aos meus princípios - e sofrer por eles - já deu o que tinha a dar.

segunda-feira, julho 23, 2007

P. de perda

Theodore Gericault, A jangada do Medusa


Tudo em ti foi naufrágio.
P. de paulada. N. de Neruda e de Nada.

sábado, julho 21, 2007

Ela uma vez














vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos

se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante
mesmo com a voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
preparem minha filha para a vida

se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras.
Ana Luísa Amaral



Ela uma vez estas e outras palavras no sopro de uma actriz. Sábado 21 e Domingo 22, às 22h, na Comuna, à Praça de Espanha. De e com Cláudia Andrade.

quarta-feira, julho 11, 2007

O bibelô de boca



agradecimentos à shyznogud

O bibelô e o bacalhau com natas

Bacalhau com natas num cafezito ao pé de casa. Ocupo a única mesa posta, duas mesas juntas, com lugares para quatro. Felizmente já estou bem adiantada quando um destes típicos quase ex-vizinhos, sessentão, de fato escuro e brazão, para quem o Campo Pequeno é "a praça de touros" e com ar de quem não caga, passa rasando o meu braço esquerdo apoiado na mesa, pára, observa, volta a olhar a sala e pergunta se pode ocupar a outra metade da mesa. Com certeza, respondo-lhe, esteja à vontade. A empregada vem perguntar se quero que afaste um pouco as mesas. Respondo-lhe que me é indiferente, se ao cavalheiro também for, escusa de ter trabalho. O cavalheiro responde altivo, os cantos da boca descaídos dando forma a um piropo doijeinhum, piropo e afirmação de poder a um tempo, novidade absoluta nas drogarias, ai não, vira o rótulo, vira, não se pode ver o prazo de validade do tempo do noé!

- Não me importo. Se fosse um homem, sobretudo se fosse um homem feio, não ia gostar. Mas como é uma rapariga bonita, não me importo. Uma rapariga bonita até acho agradável.

Eu, a jarra de flores, faço um sorriso amarelo, tentando não ser demasiado antipática. Não digo uma palavra, e só de relance tiro os olhos do jornal estendido à frente do meu prato. Chega um amigo. Ou um súbdito, não percebi bem, que só o ouvi dizer que sim, que sim senhor, sim sim. O lorde conta a extraordinária história.

- A empregada queria separar a as mesas, mas eu disse que não me importava [eu, por outro lado, não disse nada, não tinha nada que me importar ou não e no fim de contas as jarras nem falam]. Se fosse um homem, importava-me, mas com uma rapariga bonita...

E repete.

E repete.

Nem levanto os olhos do jornal. Não estou p'ra fretes, nem estou para me chatear com o que não vale a pena. Um vidro imaginário separa-me daquelas duas figuras. Perdão. Concreto. O que me separa deles é muito concreto. E só posso, muito honestamente e o mais generosamente que me é possível no meu pequenino espírito humano, lamentá-los. Sim, mais coloquialmente, ter pena deles. E das jarras que devem ter em casa, há muito sem flores, certamente.

O bibelô

Mais uma rav'ormance no São Luiz, ainda com o alaúde do Khalil nos ouvidos. Numa danceteria, dança-se. De quando em quando lá se faz um esforço para trocar umas quantas palavras. Às vezes dá jeito, se permite que nos alapemos a um pescoço apetitoso com a desculpa certeira da necessidade de falar junto ao ouvido. O problema é que nem sempre dá jeito aos dois lados da conversa. Estou eu a acabar de cumprimentar um simpático e talentoso trombonista, aparece um cromo de polo azul-cueca e garina a tiracolo, que vem dizer olá à mesma pessoa. Dizem-me mais tarde que é um pseudo-compositor. Eu diria mais que é pseudo-gente, mas passemos ao discurso directo, que é mais simples.
- Então, estás bom, pá? E quem é esta mulher linda que está aqui ao teu lado? Olá, estás boa? [começa a avançar género bulldozer] Tens um aspecto muita giro, [os braços, seguríssimos de serem bem-vindos, aproveitam a proximidade obrigatória para rodearem a minha cintura e subirem pelas costas e fazerem festinhas e etc e etc],como é que te chamas?
[entretanto estou boquiaberta com tanto abuso, e respondo enquanto me liberto]
- Estás a falar comigo?
[as mãos não descolam, estás aqui estás a levar um soco, ai se a festa não fosse de um amigo, cabrão...]
- Sim, estou, és muita gira, sabias? Temos de ir jantar uma noite destas, o que é que achas?
- Eu acho que não.
- Porquê?
- Porque não me conheces de parte nenhuma e estás armado em galifão a amassar-me toda e eu não gosto disso.
[o braço esquerdo circunda-me os ombros]
- Não fiques nervosa, não é preciso ficares nervosa.
[o indicador direito brinca com a ponta do meu nariz... e uma dentada? uma cabeçada? uma galheta bem dada? não, controla-te, e maldita a hora em que começaste a fazer ioga e decidiste que a violência é inútil]
- Vai beber mais uma imperial, vai...
[e a lapa não deslapa]
- Olha que já bebi bastantes.
[liberto-me quase violentamente e ele finalmente recua; desta vez sou eu que o sigo e lhe chego ao ouvido]
- Acredito, mas ainda não estás em coma, ainda não bebeste o suficiente.

A garina a tiracolo? Ficou a assistir de camarote, nem percebi com que expressão. O macacóide não sei se ficou a perceber a diferença entre uma mulher e uma boneca de pipo com uma auto-estima tão merdosa que se derrete para o primeiro bêbedo que lhe diz que ela tem um aspecto muita giro. Eu é que para bibelô já dei.

terça-feira, julho 10, 2007

A falta de vergonha

Júdice convidado pelo Governo para gerir frente ribeirinha

E aos pedidos de esclarecimento, António Costa responde, sorridente, que é preciso é concentrarmo-nos nos problemas dos lisboetas. E realmente, que raio terão os lisboetas a ver com a bonacheirona distribuição de uns quintalecos ali do lado de lá da linha e ao longo de todo o seu rio? Mania que esta gente tem de se meter onde não é chamada... Deixem os homens trabalhar, porra!

Mas porquê?...

Uma coligaçãozita é que me tinha resolvido aqui o dilema, carago... Fernandes-Roseta, e pronto, escusava eu de andar nesta angústia militante até domingo.

É que nem é uma angústia particularmente saborosa...

segunda-feira, julho 09, 2007

Tudo contra Lisboa, nada por Lisboa

Estou a adorar conhecer estes pequenos pormenores do famoso plano Baixa-Chiado que tanta água fez correr debaixo da ponte podre que não havia maneira de cair. O parque de estacionamento nos subterrâneos do Terreiro do Paço é uma ideia genial, deveras. Como se viu pela celeridade da obra do metropolitano no mesmo local [já temos metro em Santa Apolónia, não já?], e como qualquer patego pode deduzir se pensar que aquela merda toda está assente em estacas e a tendência ambiental não augura um relacionamento especialmente harmonioso com as águas, é óbvio que aquilo de que Lisboa precisa é de um parque subterrâneo no Terreiro do Paço.

Também precisa, diz-nos a experiência que aconselha muita e ceguinha confiança nos salvadores do município, de um túnel rodoviário chamado, comovei-vos, ó cidade de poetas, Via das Colinas, oram digam lá que não é lindo. Eu, como já por alturas das armas do Saddam me revelei uma verdadeira Cassandra, passo directamente ao fim do filme: hélas, as obras no subsolo do Jardim da Estrela destruíram as raízes centenárias, e uma árvore de raízes podres é um perigo público, quem duvidar que olhe para os Paços do Concelho. A solução é simples: abate-se. Pois se na primavera andamos todos de nariz vermelho graças aos pólens, nem se perde muito. E ganha-se ali um espaço precioso para fazer um precioso conomínio de luxo, Jardins da Estrela, que tal?

Ali entre a Basílica e o metro do Rato, nem brinquem, vai render um dinheirão. Não sei a quem. Mas vai.

domingo, julho 08, 2007

Para recordar: o último dia.



Teatro Camões, 31 de Julho de 2005
o palco seguinte foi a rua, até que o sol se pôs definitivamente

Encore II

E ao chegar a casa, a melhor das surpresas das mãos de um precioso amigo. Rever a Cantata de Mauro Bigonzetti em gravação conseguida semi-clandestinamente, o Ballet Gulbenkian vivo por meia hora na minha sala, as quatro vozes e o acordeão no palco, os corpos plenos de beleza e perturbação, as lágrimas a custo contidas. O bailado da minha vida, sei-o.

E a interrogação ainda viva, dois anos depois, duzentos, dois mil, dez mil anos depois: como conseguiram, como conseguem os carrascos dormir à noite?

Encore

Matinée shakespeareana para sondar o efeito da repetição. Em boa hora. As arestas que o tempo de palco lima. A conquista já feita que permite a mais simples e infantil fruição, a caça ao pormenor, o recostar nos olhos dos actores. O puro gozo teatral. Booooom, muito bom. Até o prólogo quase que me convenceu, eheheh... quase.

sábado, julho 07, 2007

Viagem II - a partir de Sines





Não, amigos, apesar de tudo estamos longe de ser um país onde nada acontece. Temos é o nefasto hábito de olhar as luzes fajutas mais do que sentir a terra debaixo dos pés e o odor do ar salgado.

Viagem

"A música começa onde o egoísmo pára" [R.Abou-Khalil]

ou
O árabe fado globalizado


Num estrado muito simplesmente centrado, frente a um ciclorama ou a uma instalação de projectores, um oud libanês, uma bateria norte-americana, um tuba francesa, um acordeão italiano, duas vozes portuguesas. E a casa da Mariquinhas reconstruída com este bizarro adobe revestido a azulejo. Assim se desfiou uma noite de música complexa e orgânica, em que se abrem portas e mais portas sem se derrubar paredes - para usar a certeira imagem do próprio compositor. Um noite de encanto e terra e pedras da calçada.

Ricardo Ribeiro, fadista de definição, músico de generosidade, passeia o seu vozeirão por regiões inexploradas, sussurra e arranca com alma e humor. Um cantor enorme, que me comove e surpreende a cada encontro, que transborda segurança e risco, inteligência e felicidade. Tânia Oleiro, mais jovem e mais verde, menos à vontade com a linguagem, mas com uma voz belíssima e um grande coração fadista pespegado nela. Tenho a sensação de que foi literalmente atirada aos leões, mas não perdeu nem um dedo no embate. Três belíssimos instrumentistas. E o verdadeiro marco pólo que é Rabih Abou-Khalil, alaudista brilhante que toca e compõe como vive e fala, que com a sua música, que não é tradicional nem oriental nem ocidental nem jazz nem nada e tudo, alaga as palavras lisboetas de Jacinto Lucas Pires e de Silva Tavares. Em Lisboa, lamento, já era - ontem foi a última noite no São Luiz. Mas os felizardos que estiverem no Porto no próximo fim-de-semana podem entrar na viagem através da porta do Teatro Nacional de São João. Sim, a turbina que faz girar estas águas chama-se, novamente, Ricardo Pais. E apetece perguntar, pois claro, quem mais?

E porque o Rivoli continua ali, a quem se pergunta "para que serve um teatro municipal?" eu responderei muito simplesmente que serve, por exemplo, para isto.


Rabih Abou-Khalil Group com Ricardo Ribeiro e Tânia Oleiro
música: Rabih Abou-Khalil
letras: Jacinto Lucas Pires
Rabih Abou-Khalil oud Jarrod Cagwin percussão Luciano Biondini acordeão Michel Godard baixo eléctrico; tuba; serpentão
13 e 14 de Julho Teatro Nacional de São João
sexta e sábado às 21h30
co-produção São Luiz Teatro Municipal, Festival de Almada, TNSJ



imagem retirada daqui

sexta-feira, julho 06, 2007

Bom, ahm, vamos lá ver...

Ainda não percebi o que faz Francisco Assis nos debates da RTP1 sobre o estado da nação. O processo das respostas é sempre o mesmo, seja qual for o tema. Há pouco, aquilo a que se tem chamado o excesso de zelo da nomenklatura do PS, que castiga por piadolas; que destitui pessoas competentes por falta de chá - ou pelo sentido de humor, depende da perspectiva; que quer relações de nomes e exige fotografias dos participantes numa vaia monumental. Não tarda vem um documentozito como aquele do Salazar que a Leonor Pinhão mostrou há pouco tempo: os subordinados têm de mostrar respeitinho, que é muito lindo, de cumprir sem questionar, de saudar a fotografia do líder, de engraxar as botas ao patrão com a língua [nem vai ser preciso, o medo é verdugo poderoso, mesmo que seja apenas o medo do desemprego]. Francisco Assis indigna-se, -mas não pensam realmente que o governo tem alguma coisa a ver com estas acções individuais que devem ser desencorajadas! Responde António Filipe que as declarações do governo no que toca a estes casos é apenas um empertigado "o PS não recebe lições de democracia de ninguém!", o que por outras palavras diz "o PS considera que está tudo bem!". Francisco Assis, como em tantas noites anteriores, deixa tudo em pratos limpos, bom, ahm, vamos lá ver, não é essa a minha posição. E pronto.

Está no programa em nome próprio? Não. Reconhece a contradição em termos que é este governo auto-intitulado de socialista que alegremente nos conduz de volta à exploração selvagem de pessoas e da mentalidade capachista nacional? Também não. Poder é cego e vê, não sei porquêêêê, lara lararari larararaaaaaaa...

terça-feira, julho 03, 2007

O quê, já passou o fim-de-semana?!

Duas óperas criadas para O Estado do Mundo, na Gulbenkian, uma saturada de informação, a outra saturada de adjectivos, adjectivos até ao vómito, iac [felizmente a primeira foi a segunda, e compensou a primeira metade da noite a retorcer-me no lugar e a aguentar o pessoal técnico do Grande Auditório a falar alto como se a sala não tivesse público - e eu só pergunto, senhores, para que raio se fazem ensaios gerais?!]. Uma viagem para o Porto, uma francesinha, um Molière/Vieira Mendes no São João, uma jóia de recital e o gosto de ver um grupo de amigos muito queridos de garganta solta e teatro a ressoar. Um copo mais ou menos nobre já muito tardio, algumas saudades levemente aplacadas e outras ali à mão de aplacar sem que eu o soubesse. Três rodadas de shots no Guincho da ribeira de Gaia, vários copos partidos com gosto, uns quantos por partir por excesso de confiança na fragilidade da transparência. Uma garagem gótica no Campo 24 de Agosto onde uma colombiana voluptuosa dança salsa ao som de Dream Theatre, e uma cápsula do tempo, braços cruzados no ar p'ra ti, maria, e o Murphy, e os Mão Morta em Budapeste, o Sit Down dos James e a seca da Sétima Legião que só tem graça por nos fazer ter 17 anos outra vez, o Iggy Pop a chamar pela Candy, até o solo azeiteiro do Sweet child o'mine e o Sunday Bloody Sunday que sempre me recusei a dançar no seu tempo, por ser tão claramente não dançável. E deixar para trás uma pista cheia de melenas e rendas pretas para deparar em choque com a luz da manhã já instalada, o cinza já claramente diurno do céu do Porto, os pássaros já calados após a sinfonia da aurora que nós perdemos. Outra viagem de comboio, directamente de volta a Lisboa, profundamente adormecida, absolutamente retorcida.

Balanço do fim-de-semana: a barriguinha cheia, de desafios, de reflexões, de curtições, de abrações; uma ressaca; e uma puta duma dôr de pescoço que me recorda que um esternocleidomastoideu de aço é condição sine qua non para quem quer que se dedique à nobre arte de abanar o capacete.

Pelas rugas da amargura


Que outro dito pode vir à ideia quando nos cruzamos com uma tiazona esticada dos pés às orelhas, toda contente a passear o seu shar-pei? Bom... toda contente, é como quem diz. O cão estava nitidamente tranquilo, mas ela bem que me podia estar a rosnar, que a facies seria bem a mesma.









imagem surripiada daqui