“Ricardo II” é um texto de Shakespeare. Chamam-lhe o bardo isabelino, mas qualquer cérebro que assim o reduza só pode andar coxo. E os coxos correm pouco. Até podem ter um bom pé direito, mas é preciso correr bem, e não só apontar bem, para fazer três horas de jogo duro com arbitragem viciada. E Nuno Cardoso, já eu o sabia, está longe de ser coxo. Na Sala Garrett do Dona Maria II isso está bem demonstrado, e assim o estará até dia 8 de Julho.
Tenho um fraquinho por sacrílegos, confesso. Dêem-me um sacrílego desavergonhado, demasiado focado nos riscos que assume para pedir desculpa por fazê-lo, e têm a minha atenção desarmada. Coloquem-me um sacrilégio como este “Ricardo II” sobre um palco sacro como o daquele mausoléu, paredes-meias com o Largo de São Domingos onde os narizes apurados ainda conseguem cheirar a carne queimada, e seria natural que a conquista fosse quase imediata. Mas não foi. Talvez porque nada do que vale a pena fazer na vida seja fácil.
Começo pelo negativo, que fica já despachado. Não gosto do prólogo, aliás, acho que o prólogo não devia existir, ponto final. É um argumento mal-cheiroso de velho, este que vou usar, mas não posso fazer nada: se Shakespeare quisesse que a peça começasse com a morte de Gloucester, o texto começaria com a morte de Gloucester. A morte em questão, a morte falada na disputa da primeira cena, é de facto o acontecimento que espoleta tudo o resto. E no entanto… não é. Porque Henrique de Bolingbroke apenas precisa dela como cavilha, que a granada está armada e pronta a ser lançada. Se não fora esta morte, outra seria. Isto no plano do símbolo. Porque no que toca à percepção do espectáculo, penso que chega a ser contraproducente. Ou se ignora o show de Flávia Gusmão na abertura – irrepreensível, não é por aí que o gato vai às filhozes – ou se tenta fazer a ligação entre a simbologia desse momento e o intrincado discurso da primeira cena em que tudo se explica. Ora, num texto de tal calibre e filigrana, é na primeira cena que ao público é permitido, e pedido, que se deixe envolver e integrar numa linguagem que lhe não é natural, em que os neurónios de qualquer mortal, mesmo um mortal que conheça minimamente as palavras [que era o meu caso] andam à velocidade da luz para perder o menos possível. Não seria possível, a não ser talvez ao próprio Shakespeare se estivesse no público, perceber o discurso, perceber a intriga e ainda fazer a ligação simbólica a um prólogo perfeitamente dispensável. E o que é dispensável, a meu ver, está a mais. E pronto. Daqui para a frente, foi sempre a subir. Comme il faut.
Colocar a intriga de poder num campo de futebol, é de fanático. E é de risco. E durante toda a primeira parte tive sérias dúvidas de que a concretização do conceito valesse. Os jogos de poder que alagaram de sangue a história de Inglaterra, sangues universais para histórias miseravelmente universais, estão mesmo a pedir para ser reduzidos a machos dominantes e a futebóis; os tronos reais, a cadeiras de praia tão pouco dignas como a espreguiçadeira de onde tombou Salazar; as cortes de altos pares que decidem destinos enquanto trincham a carne, a pátios de meninos que se entretêm em batotas no jogo de bola. Mas um conceito não é um espectáculo. E eu não percebia se entrava se saía, se era denso, se era inócuo. Até que ao fim de duas horas, o perverso encenador me dá o golpe de misericórdia, com a distribuição que faz para a cena do jardineiro e dos seus ajudantes. Daquelas “coisinhas” que na minha cartilha pessoal me fazem cheirar a palavra “génio”, palavra difícil e traiçoeira, mas seja: é que não é qualquer um que toma uma decisão impensável, mas que se mostra óbvia e incontornável depois de ter sido tomada. E saí para o intervalo, qual funâmbulo sorridente, pensando “pois claro, mas a que outros actores poderiam aqueles discursos ter sido entregues?”. Vem o gongo. IV acto.
O IV e o V actos resolveram-me todos os sentidos, joeiraram-me todos os escolhos, e eu rendi-me. São belíssimos, são belíssimo teatro. O Ricardo de João Ricardo [bom, não encontro maneira menos cacofónica de escrever isto] termina o seu percurso de humanização de forma pungente, um trabalho de actor verdadeiramente emocionante, próximo, simples, belo, grande. Fosse o texto servido com maior rigor e seria perfeito. Não posso deixar de dizer que o Bolingroke de Gonçalo Amorim me pareceu incompleto, impossível que é, desde o primeiro momento, qualquer empatia com a personagem, o que é mortal para a dualidade que ela pede [como o pede o Marco António do “Júlio César”, e curiosamente, a mesma falta achei na produção da Cornuncópia no São Luiz, uma dualidade falhada, embora estes dois espectáculos, e os dois actores em questão, tenham caminhos bem diversos]. Será justo falar noutros nomes, João Pedro Vaz, Luís Araújo, Marta Gorgulho, Cátia Pinheiro, por exemplo. Será justo falar ainda da parcimónia com que a rima surge no discurso, momentos brilhantes escolhidos a dedo no labirinto de uma brilhante tradução. Mas no fim o que fica é bom teatro, mesmo muito bom teatro. E a diferença nula entre promíscuos e salvadores da pátria, a perpetuação das mesmas-outras traições, os mesmos-outros jogos abjectos, os mesmos-outros corpos massacrados. O germe da guerra das Rosas não é diverso do de outras guerras, as cadeiras de praia confundem-se, as primeiras ceias e os tapetes relvados também.
segunda-feira, junho 18, 2007
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1 comentário:
mas que bem que me soube esta crítica. eu, que ando meio desiludida com o Nacional, fiquei com vontade de passar por lá a espreitar o Ricardo do Ricardo ;)
bem rematada e nada coxa, esta tua argumentação :))
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