Edward Hopper, Rooms by the sea, 1951
- Fazes mal - disse o rato. - Ainda estou novo, e até este momento tenho sido bem alimentado.
- Eu cá também ando bem alimentado - disse o gato - e isso não faz com que eu sinta vontade de me suicidar. Estás portanto a ver por que é que eu acho essa coisa anormal.
- É porque não o viste a ele - disse o rato.
- O que é que ele fez? - perguntou o gato.
Não tinha grande vontade de sabê-lo. Sentia calor e todos os seus pelos muito elásticos.
- Está à beira da água - disse o rato -; está à espera, e no momento exacto anda e pára no meio da prancha. Fica a ver uma coisa qualquer.
- Não pode ver grande coisa - disse o gato. - Só se for um nenúfar.
- Sim - disse o rato. - E espera que ele suba para o matar.
- É idiota - disse o gato. - É uma coisa sem interesse.
- Depois de esse momento passar - continuou o rato -, volta para a margem e olha para a fotografia.
- Nunca come? - perguntou o gato.
- Nunca - disse o rato. - Está a ficar muito fraco, e não consigo suportá-lo. Um dia destes ainda vai dar um passo em falso quando passar na prancha.
- E o que tens tu a ver com isso? - perguntou o gato. - Ele sente-se, por acaso, infeliz?...
- Não se sente infeliz - respondeu o rato -, sofre. É o que eu não consigo suportar. E depois vai acabar por cair na água, por se debruçar de mais.
- Sendo assim - disse o gato -, quero prestar-te o serviço; mas não sei porque digo "sendo assim", uma vez que não compreendo nada.
- És formidável - disse o rato.
- Mete a cabeça na minha boca e espera - disse o gato.
- Vai demorar muito tempo? - perguntou o rato.
- O tempo de alguém me pisar o rabo - disse o gato. - Tenho de ter reflexos rápidos. Mas vou deixá-lo bem estendido, não tenhas medo.
O rato afastou as mandíbulas do gato e meteu a cabeça entre os seus dentes afiados. Logo a seguir retirou-a.
-Diz-me cá - perguntou -, hoje de manhã comeste tubarão?
- Ouve, disse o gato -, se não te agrada podes pôr-te a mexer. Esses truques não me impressionam. Desenrasca-te sozinho.
Parecia aborrecido.
- Não te zangues - disse o rato.
Fechou os pequenos olhos pretos e pôs a cabeça em posição. Cauteloso, o gato encostou os caninos acerados ao pescoço cinzento e delicado. Os bigodes pretos do rato misturaram-se com os seus. Desenrolou a cauda felpuda e deixou-a estender-se no passeio.
Aproximavam-se, a cantar, onze rapariguinhas cegas do Orfanato Júlio o Apostólico.
Boris Vian, A espuma dos dias, trad.: Aníbal Fernandes, Frenesi
4 comentários:
:)
Um dos meus autores favoritos de todos os tempos. Um misto de jazz, loucura non-sense, filosofia. Adoro o título, mais ainda em francês. Um livro a ler quando precisamos de uma boa dose de surrealismo e imaginaçao.
O que eu adoro esse livro, pá...
L'écume des jours... :) Sim, e um título ainda mais onirico em francês, as palavras são as mesmas, mas o som é outro.
O mais curtido de voltar às pedras preciosas da nossa vida, é nelas encontrar pedaços que esquecera e lê-los pela primeira vez sabendo que o não é. E de repente dás de caras com uma fábula onde lês o que precisas de ler. E percebes que tudo no surrealismo pode, em dados momentos, fazer um sentido mais concreto que qualquer equação matemática. :)
Bem diz o Escrevedor do Vargas Llosa: a vida é uma tempestade de merda, e quando a merda começa a cair o teu melhor guarda-chuva é a arte.
Laranjinha: ainda me lembrava de que este era um dos teus livros preferidos, e há anos que não falamos dele. ;)
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