sábado, agosto 04, 2007

O livro da semana - VI

Sim, e tal como acontece aos bêbados depois de uma ressaca, parecia que os seus sentidos tinham agora despertado para esse mundo glorioso, que parecia já ter esquecido e onde não tinha sabido viver. "Tenho de fazer um esforço e agarrar esta oportunidade. O tempo voa, e depois será tarde demais." Isto era o que eu penso que lhe passava pela mente, ou o que sentia; e de que outro modo podia reagir? Até essa altura só lhe tinham ensinado que o único valor na vida era o amor. Era verdade que tinha casado e conhecido o que chamam de amor; mas estava muito aquém do que tinha esperado e desejado para si. E o casamento tinha-lhe causado muitos sofrimentos e desilusões, entre eles uma tortura com que nunca sonhara... os filhos. Este tipo de sofrimento tinha-a levado a um grande estado de exaustão; a partir de então os médicos informaram-na de como devia esquivar-se aos deveres da maternidade. Depois de ter usado "os métodos dos médicos", foi invadida pela felicidade e sentiu-se reviver e respirar tendo como único objectivo... o amor. Mas não estava a pensar no amor do marido... um amor ciumento envolto no ódio, e começou a imaginar outro tipo de amor, um amor puro... um novo amor... pelo menos, era o que eu imaginava quando a observava e lhe via no olhar vago uma esperança de alguém que espera algo.
[...]
No meu julgamento, todos os factos foram apresentados como se o motivo do meu crime tivesse sido o ciúme. Mas não foi o que se passou; pelo menos tiveram de ser alterados até que eu os aceitasse como verdadeiros. É indiscutível que o tribunal considerou que a minha mulher tinha pecado contra mim e, como resultado, eu a tinha morto para limpar a minha honra... foi pelo menos o que lhe chamaram... e a isso se deve o facto de eu ter sido ilibado. Durante o meu julgamento fiz todos os esforços para apresentar os factos como realmente tinham acontecido, só que o meu empenho foi interpretado como o desejo de reabilitar o bom nome da minha mulher. Mas a verdade é que, independentemente do tipo de relação que ela possa ter tido com o músico, esta teve muito pouca importância para mim e para os meus filhos. O que realmente pesou em tudo isto foi o que já lhe contei. A origem esteve no enorme abismo que existia entre nós, devido ao ódio terrível que nutríamos um pelo outro, e assim o menor toque, o menor impulso, eram suficientes para provocar uma crise.
[...]
Se o violinista não tivesse aparecido em cena, o seu lugar teria sido substituído indubitavelmente por outra pessoa. Se o pretexto do ciúme não tivesse surgido, outro teria sido encontrado. O que eu quero dizer é que todos os maridos que levavam o mesmo tipo de vida que eu, mais cedo ou mais tarde deixavam de ser indulgentes e acabavam por se separar das mulheres, ou acabavam por matá-las, tal como eu fiz, ou se suicidavam. Se há pessoas que nunca sentiram a necessidade de optar por alguma destas hipóteses, então digo-lhe que devem ser verdadeiras excepções. Antes de ter feito o que fiz, pensei muitas vezes em suicidar-me e, por seu lado, a minha mulher já tinha tentado envenenar-se.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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