sexta-feira, agosto 03, 2007

O livro da semana - III

A galinha, por exemplo, não receia que possa haver ou não comida para o seu pinto; não tem a mínima noção das doenças que podem ser fatais; nem dos meios que podem salvar as suas crias dessas maleitas ou da morte; assim, os seus pintos não são fonte de aflições. Ela faz por eles o que a sua natureza lhe manda, e por isso eles constituem uma alegria na sua vida. E quando um pinto adoece, os seus deveres são muito claros: só tem que o alimentar e aquecer, pois ao agir assim está a fazer tudo o que é necessário. Se este morre apesar dos seus cuidados, ela não se pergunta porquê; apenas carcareja por algum tempo e pouco depois continua a sua vida como de costume.
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Durante anos e anos afligiu-se, irritou-se ou tremeu de medo, só de pensar que a vida dos seus filhos (a quem estava ligada com toda a força do seu ser, tal como uma fêmea e as suas crias) dependia dos ensinamentos do doutor Ivan Zakharievitch e do que este tinha a dizer sobre esses assuntos. Mas, na realidade, ninguém sabia qual a opinião de Ivan Zakharievitch sobre esses assuntos, e ele então muito menos, porque estava ciente da sua ignorância; assim, tudo o que fazia era usar os melhores subterfúgios para que todos continuassem a acreditar que ele era uma sumidade na matéria.
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A sua posição era muito complicada: ela era responsável pelas mais frágeis das criaturas, que se encontravam expostas a inúmeras vicissitudes. Sentia-se atraída pelos filhos com uma afeição verdadeiramente animal. Além disso, estes seres tinham sido confiados ao seu cuidado, só que os meios para os proteger tinham-lhe sido ocultados e, em vez disso, tinham sido revelados a homens (seres que lhe eram completamente estranhos) cujos serviços e conselhos ela só conseguia obter pagando quantias consideráveis e, mesmo assim, nem sempre. O que podia fazer então, para além de torturar-se?

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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