quinta-feira, agosto 09, 2007

O livro da semana - XXVI

Não havia vestígios da sua beleza anterior e, em seu lugar, senti algo que me repugnou. Parei no umbral da porta.
- Aproxima-te dela... aproxima-te dela! -exclamou a irmã.
"Sim, provavelmente quer dizer-me que está arrependida", pensei. "Devo perdoá-la? Sim, como está às portas da morte, acho que devo perdoá-la", decidi interiormente, esforçando-me para ser magnânimo. Então aproximei-me da cabeceira da cama. Com dificuldade ergueu os olhos na minha direcção, um deles estava mesmo muito ferido, e balbuciando e gaguejando por entre as palavras, disse: -Conseguiste o que querias! Mataste-me.
[...]
Olhei as crianças e a sua cara magoada cheia de equimoses; e pela primeira vez esqueci-me de mim, dos meus direitos, do meu orgulho; pela primeira vez consegui vê-la como um ser humano, e tudo me pareceu tão frívolo e mesquinho que me feriu profundamente; até o meu ciúme e o acto que tinha cometido me parecim tão graves, tão odiosos, que me sentia pronto a prostar-me a seus pés, pegar-lhe na mão e exclamar, "Perdoa-me!", mas não tinha coragem para tal. Ela fechou os olhos e permaneceu em silêncio, era evidente que estava demasiado fraca para falar. De repente a sua cara disforme estremeceu, o seu olhar tornou-se subitamente carregado, e afastou-me dela suavemente.
- Porque é que tudo isto aconteceu? Oh, porquê?
- Desculpa-me! -exclamei. -Perdão. Isto é tudo um disparate.
- Oh, se eu não morresse! -proferiu, tentando erguer-se um pouco, olhando-me nos olhos fixamente; o seu olhar brilhava febrilmente. -Fizeste tudo à tua maneira. Odeio-te! [...] Mata-me agora, mata-me agora; já não tenho medo.


Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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