sexta-feira, agosto 03, 2007

O livro da semana - IV

Depois de quatro anos de casamento ambos concluímos que já não era possível entendermo-nos e, por essa razão, cessámos todas e quaisquer tentativas de reconciliação. Cada um de nós mantinha as suas opiniões sobre este ou aquele assunto... por exemplo, no que dizia respeito às crianças. Os pontos de vista que eu defendia não eram assim tão importantes para mim, de modo a que eu não pudesse abdicar deles; só que as suas ideias eram exactamente contrárias às minhas; se lhes renunciasse, então cedia à sua vontade, e isso eu não podia permitir de modo algum.
[...]
Qualquer palavra proferida para além destes temas de conversa era suficiente para provocar novas hostilidades. E seguiam-se discussões e expressões de ódio por causa do café, da toalha de mesa, da carruagem, da carta escolhida durante o jogo... resumindo, por incidentes ou coisas que não tinham a menor importância para nós. Posso falar em meu nome: eu odiava-a como jamais se pode odiar alguém. Eu olhava-a a servir o chá, balançando o pé de um lado para o outro, e a levar a colher à boca sorvendo o líquido com os lábios; e odiava cada um desses gestos, como se a sua conduta fosse reprovável. Nesse tempo não me dei conta de que estes períodos de hostilidade ocorriam regularmente, correspondendo invariavelmente aos períodos a que chamávamos de "amor".
Os períodos de tempo e os níveis de sentimentos correspondiam a que depois de um período de amor seguia-se um período de ódio; depois de um período de amor intenso vinha um longo período de ódio; a um curto período de ódio sucedia-se uma fraca manifestação amorosa. Não nos tínhamos apercebido de que este amor e ódio eram os pólos opostos do mesmo sentimento.
Se ao menos tivéssemos entendido qual era a nossa posição e como era terrível a vida que levávamos; só que não nos apercebemos. A salvação e o castigo dos homens que levam vidas desregradas reside no facto de poderem "tapar o sol com a peneira", o que os impede de ver a situação real em que se encontram. Nós agíamos de igual modo. [...] Estávamos sempre ocupados; e ambos sentíamos que quanto maior fosse essa ocupação, maior era também a nossa capacidade de hostilidade e vingança recíproca.
[...]
Éramos dois prisioneiros agrilhoados um ao outro e que se odiavam mutuamente. Envenenávamos as nossas vidas e depois tapávamos os olhos ao que tínhamos feito. Nessa época não sabia que noventa e nove por cento dos casais viviam neste inferno. Nem tão pouco estava consciente de que me encontrava mergulhado num inferno, por isso não podia imaginar como viviam as outras pessoas.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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