domingo, agosto 05, 2007

O livro da semana - VIII

Adormeci lá pela madrugada. Quando despertei, a minha mulher ainda não tinha voltado. [...] E durante todo este tempo, e tal como antes, a minha alma assemelhava-se a uma arena onde se confrontavam o ódio (por me ter abandonado) e o medo (de que algo lhe tivesse sucedido). Às onze da manhã apareceu a irmã, como sua emissária.
- Ela está num estado lastimável; mas afinal o que se passou?
[...]
A mnha mulher apareceu por volta das três da tarde. Como não fez quaisquer comentários quando me viu, depreendi que pretendia fazer as pazes; disse-lhe que ela era responsável pelo sucedido, ao ter-me provocado com as suas recriminações. Virou-se para mim com um ar duro, que espelhava um sofrimento profundo; disse-me que não tinha vindo falar nas condições do divórcio, apenas tinha vindo buscar as crianças, pois era impossível continuarmos a viver juntos. Depois de a ter ouvido, comecei a explicar-lhe que eu não tinha culpa, ela é que me tinha conseguido enfurecer ao recriminar-me de modo tão venenoso. De novo me olhos de modo triunfante e cruel, e exclamou: -Não digas mais nada, estás arrependido. -Respondi-lhe que odiava comédias. Nessa altura ela gritou algo que não percebi, apressando-se em direcção ao seu quarto e fechando a porta à chave.
[...]
Empurrei a porta, que se abriu de imediato, visto o ferrolho não estar bem fechado, e apressei-me em direcção à cama. Estava deitada no leito, numa posição muito desconfortável, com a combinação vestida, e tinha ainda as botas calçadas. Na mesa de cabeceira encontrava-se uma garrafa de ópio agora vazia. Fizemo-la recobrar os sentidos, e aos primeiros sinais de ter recuperado a consciência, irrompeu em lágrimas e tudo acabou em reconciliação. Contudo os nossos corações nutriam o mesmo ódio de sempre um pelo outro, agora aumentado pelo sentimento de desespero provocado pela dor e o sofrimento desta última disputa, que cada um atribuía ao outro; e a vida continuou na sua rotina normal.
Mas estas discussões estavam constantemente a acontecer[...]. Numa ocasião, a situação chegou a tomar tais proporções que resolvi pedir um passaporte para sair do país. A discussão tinha durado dois dias; mas também essa acabou numa reconciliação cheia de ódios, e decidi ficar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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