domingo, agosto 05, 2007

O livro da semana - XI

A porta que dava para a sala estava aberta, e eu podia ouvir o som do arpeggio e das suas vozes. Conseguia ouvi-los, mas não distinguia o que diziam. Percebia-se que as notas do piano apenas tinham o objectivo de abafar a conversa... e talvez os seus beijos. Meu Deus! A fera que existia em mim enfurecia-se cada vez mais! E a minha mente imaginava as coisas mais terríveis. Ainda agora fico horrorizado só de pensar na fúria que se apossou de mim nessa altura.
O meu coração contraíu-se, parou e, de repente, bateu contra o meu peito como se fosse um martelo a bater na bigorna. Mas o sentimento que predominava a toda a raiva e a todo o ódio era a pena que eu sentia de mim próprio.
[...]
"Só me resta entrar", -disse de novo para comigo, e abri a porta de rompante. Ele estava sentado ao piano a praticar o
arpeggio com os seus dedos muito compridos e brancos voltados para cima; ela estava de pé numa das extremidades do piano, com algumas partituras espalhadas em cima deste. Foi ela que me viu ou me ouviu em primeiro lugar, e olhou-me. Será que estava assustada e a sua aparência exterior apenas simulava estar calma, ou a sua calma seria real? Não sei; o que é certo que ela não se mexeu, não fez qualquer movimento quando entrei; apenas corou; e mesmo isso só aconteceu mais tarde.
- Fico muito contente por teres vindo; ainda não nos decidimos sobre o que havemos de tocar no próximo sábado. [...] Toda a situação parecia muito simples e natural e, por isso, não fui capaz de argumentar o que quer que fosse, mas ao mesmo tempo estava plenamente convencido de que tudo aquilo não era verdade, e que tinham estado a concentrar os seus esforços para me enganar.

Lev Tolstoi, Ensaio sobre o ciúme [A sonata Kreutzer], 1891, trad. Isabel Risques

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