sábado, junho 28, 2008

hoje vi morrer um homem

O corpo estava estendido no chão e duas mãos jovens massajavam-lhe o peito. O INEM levou vinte minutos a chegar, o meu espelho não embaciava frente à boca entreaberta e enrugada, a pele ganhava gradualmente leves tons de roxo. Para algumas pessoas a ajuda tinha sido pedida há uma hora, não era verdade, mas o tempo é a relatividade por excelência, e para aquele corpo em despedida da vida sob o calor da Rua da Rosa, vinte minutos foram a eternidade necessária para desistir. Ao lado está o Hospital de St.Louis. A recepcionista, a quem mais do que uma pessoa acorre em busca de ajuda, nem pega no telefone, de acordo com todos os relatos, e a resposta é sempre a mesma "isto é uma clínica privada, os médicos que vêm ao fim-de-semana vêm para operar, não podemos fazer nada". A terceira pessoa que a ela se dirige diz que a única coisa que a viu fazer foi chamar o 112. Que já tinha sido chamado, havia um quarto de hora.

Chega o carro de socorro, chega o soro e a máquina de reanimação, mas é tarde demais, nem um sinal vital, apenas as pálpebras abrem por um momento, era capaz de jurar que aqueles são os olhos de um vivo, mas não, é projecção dos meus próprios olhos. A mulher entretanto avisada, velha e frágil, bebendo água com açúcar apoiada numa ombreira de pedra, a filha sem derramar uma lágrima, pergunta aos paramédicos se não conseguem mesmo fazer mais nada, os olhos parados face à resposta negativa, a boca repetindo sozinha num ciclo, o meu pai, o meu pai, o meu pai. O saco branco recebe finalmente o corpo. Ainda há quem tente que a polícia registe a ocorrência da omissão de auxílio, não me vou embora, pode ser que seja preciso testemunhar alguma coisa, mas as respostas são sempre as mesmas, é uma clínica particular não podemos fazer nada, não podemos fazer nada. Vejo dispersar, e lá me vou em direcção ao Príncipe Real, ainda sem pensar nada do nó que me enche o peito. Mas não é crime, a omissão de auxílio? Ou só é crime se não formos médicos, se não formos uma clínica particular? Mas que país é este? Mas que gente merece ser chamada de humana?

13 comentários:

Anonyma disse...

Um país que acredita no capitalismo selvagem. Em parecer em vez de ser. Que a saúde e a educação são um negócio que tem que dar lucro e não saúde ou educação...
Por aqui, neste pedaço de chão a que chamam Portugal, dá-me vontade de rir quando se fala da responsabilidade social das organizações...para não chorar...

Manel disse...

... para não chorar.

Anónimo disse...

...ou para chorar muito de raiva, dessa morte que começa no instante em que a recepcionista não faz nada...nessa atitude "correta" legitimada, que não deixa marcas na consciencia....a primeira a morrer foi ela como pessoa, como profissional...sinto pena....há medida que neste lugar da "modernidade", do crescimento económico, do colombo, dos seres burocratizáveis, deixamos de distinguir coisas/pessoas e nos tornamos assustadoramente desumanos...quando me deitar, hoje vou segredar na almofada, resiste!!

Manel disse...

Quem és tu, anónimo?

Anónimo disse...

Isto anda ai uma onda mesmo marada! Ainda na outra noite em tua casa a falar «do que tem de ser» e nós apanhamos aquele acidente e tu vês isto! No teu caso a ajuda que não chega e que deixa toda a gente impotente face à cena que assiste, no nosso, sermos as únicas testemunhas de um carro que desaparece engolido pelo viaduto... e a vida, tão única, tão frágil e tão só em ambos. Um beijo grande

Manel disse...

Não tinhas uma chamada perdida às quatro e meia de sábado? De que é que achas que te queria falar?... Foi um mês estranho, este. Beijo.

Anónimo disse...

é omissão de auxílio, pois claro. E é crime, sem dúvida!!

Manel disse...

E o que é que se faz quando ninguém, entre a equipa do INEM e os agentes da PSP, faz outra coisa senão encolher os ombros quando toda a gente relata essa omissão de auxílio?

Foda-se... é que nem consigo dizer mais nada.

Rodrigues disse...

Caramba.

Que crime.

MPR disse...

Dá voltas ao estômago... boa maneira de começar a semana...

Anónimo disse...

"E o que é que se faz quando ninguém, entre a equipa do INEM e os agentes da PSP, faz outra coisa senão encolher os ombros quando toda a gente relata essa omissão de auxílio?"

Faz-se uma participação ao Ministério Público.

Manel disse...

Max, continuamos esta conversa por e-mail? Preciso que me expliques como é que isso se faz. O homem está morto. Mas o dito hospital parece disposto a deixar morrer outros quantos à sua porta. O hospital ou a recepcionista.

Max Spencer-Dohner disse...

Claro!

dev.desintericos@gmail.com

MSN : spencerdohner@hotmail.com

bjos :)