quarta-feira, julho 16, 2008

a pensar morreu um actor

Por mais que nós, gente do teatro, gostemos de nos ver como intelectuais, não o somos. A nossa profissão não é uma profissão intelectual. O saber literário inteiro do mundo, as «ideias» todas, não vão capacitar ninguém a fazer Hedda Gabler, e toda a conversa sobre o «arco da personagem» e «baseei a minha personagem nisto…» é tudo babugem. Não há nenhum arco da personagem; e é tão inútil basear uma personagem numa ideia como é basear uma relação amorosa numa ideia. Essas frases não passam de talismãs do actor, que lhe permitem, a ele ou a ela, espantar o mal, e o mal que tentam espantar é o terrível imprevisto.

Essas frases e rituais mágicos são esconjuros para diminuir o terror de sair à frente de corpo nu. Mas é assim que o actor sai à frente, queira ou não queira."



O terrível imprevisto é o chão da contracena.

Pensar o terrível imprevisto é uma actividade condenada à contradição. O livro de Mamet nega ali a sua própria razão de ser, e ao mesmo tempo é certo que um livro sobre o teatro assim faça. O pensamento do teatro é um desertor do palco, e tem de viver com essa condição. Mas, queira Mamet ou não, tem de viver.

Tem de viver, por exemplo, para que um workshop sobre Hamlet suba acima de algumas inquietações caseiras, como aquela a que um amigo assistiu no ano passado: «Se o meu tio matasse o meu pai e casasse com a minha mãe, eu também ficava chateado. Não é?»

Não. Não é. Para chegares à «chatice» de Hamlet precisas de mais que da tua mãe.


Fernando Villas-Boas, no Drama Pessoal


Bom... o "amigo" que assistiu à dita pergunta, vinda, salvo-o-erro, da boca de um aluno de um curso de interpretação, sou eu. O Fernando foi um querido e deixou-me, nas suas próprias palavras, "anónima em nome e em género". Mas eu gosto pouco de anonimatos, embora ainda goste menos de fogo de artifício. O equilíbrio, ai o equilíbrio.

E é precisamente pelo equilíbrio, só possível na contradição, que aqui posto este trecho da prosa do Fernando, lançada pela de David Mamet. Não é um curso de filosofia, de literatura ou de psicologia que vai habilitar uma actriz a ser Hedda Gabbler, mas também para se sair à frente de corpo nu é preciso inteligência. E esta ginastica-se, como qualquer outra capacidade humana. As possibilidades de exercício é que são inúmeras e não se esgotam na dissertação, mas cheira-me que também não estão na existência amorfa. Aliás, se há coisa que me chateia é um actor burro. Os que se fazem de burros, então, ainda são mais enervantes. Mas nada bate os que se fazem de espertos. Ainda há pouco tempo fui apelidada de "cerebral", numa depreciação disfarçada de cortesia. Era rótulo que servia o propósito. Mas é a esperteza que é cerebral. A inteligência, perdoem-me a imodéstia, é algo bem mais global e carregado de variáveis. Atrevo-me a atalhar, querido Fernando, que, ao contrário do que diz Mamet, entre nós há demasiadas vezes uma resistência absurda à palavra "intelectual", tanta vez arremessada como insulto comezinho. E é pena.

4 comentários:

Anonyma disse...

Às vezes, acho isso sim...
Somos esta argamassa bruta atirada assim neste canto de mundo...
Pequeninos, pequeninos que não tem fim!
Ainda me espanto.
Afinal...
De que tem medo esta gente?

Manel disse...

Boa pergunta, minha cara, boa pergunta... também gostava de saber.

MPR disse...

Um actor sem inteligência, não existe. É um boneco, um papagaio que repete frases, um macaco que copia gestos e expressões forçadas. Achar que inteligência é equivalente a estudo académico é redutor. Um actor não precisa necessáriamente de um curso de letras ou filosofia, mas precisa de treino, de palco, de pensamento, de ideias, de emoções. De conhecer-se a si próprio, ao seu personagem, de perceber o texto, de entender o encenador e interiorizar aquilo que ele pretende, de ler a cena, de viver a contracena ajustando-se ao que acontece, de sentir o ritmo da peça e alterá-lo, de saber jogar com emoções, sentimentos, palavras, gestos, entender que uma pausa pode abalar o mundo. São exemplos mas há muito muito muito mais.
Nada disto se consegue sem inteligência. O que não significa intelectualização ou cerebralização. Mas sim um actor tem que pensar, muito, procurar em si, no texto e nos outros. Inteligência? Muita. Como não?

polegar disse...

se estivesse ao pé de ti, dava-te dois grandes beijos! ah, mulher, isso é que é falar.