domingo, maio 04, 2008

il neige dans mon coeur

Começa subtil, desvelando-se muito lentamente num humor cansado, cortante e inocente em simultâneo; numa câmara sossegadinha, tocando ao de leve cada retalho a coser, cada rosto a oferecer. Neva lá fora, e neva cá dentro, os únicos malabarismos estão nas orgânicas sobreposições que em algumas sequências fazem a neve parecer tombar dos tectos das divisões. Praticamente não vemos o exterior, mas as personagens estão sempre a entrar em algum lado, ou a sair da rua, e há neve nos casacos, nos gorros, nos cabelos. E no exterior filmado a partir do interior, com um vidro de permeio, o corpo não permanece o suficiente para que haja neve nos seus ombros quando a neve realmente lhe cai em cima. Mas depois da suave abertura, começam as surpresas, como se até ali estivéssemos apenas a receber uma preparação breve para a viagem. A partir do primeiro plano picado —tectos que desaparecem, apartamentos em obras que se tornam casas de bonecas vistas de cima por nós, gigantes abelhudos— percebemos que há qualquer coisa que muda, que flui e lentamente transforma a realidade. Sem sobressaltos, a câmara solta-se progressivamente e dança com as cenas, na exacta medida em que as vidas se cruzam na neve, antes de por fim se esboroarem novamente e voltarem ao ponto em que estavam ou quase. Há um quarto de doente do qual só se vê os pés da cama, excepto quando fica vazio e se nos apresenta magnificamente em verdadeira sequência de slides. Há o rosto de palhaço alegremente triste de Sabine Azéma, entre o fogo e o gelo, a beatice e a quase inocente perversão, há os olhos melancólicos de Pierre Arditi, há a beleza escura e rica de Laura Morante. Há um olho cheio de amor e outro cheio de sarcasmo. E planos de uma beleza estrondosa. Quando menos espero, surge a imagem que traduz tudo o que estou a sentir. Por um fugidio instante, duas mãos na neve cortando o ambiente de uma infinita frieza azul a que rapidamente se regressa. E o coração dá um pulo e os olhos respondem húmidos, certos de que, mesmo no meio de tanta beleza, aquele momento quase fantasma valeria um filme inteiro.


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