quinta-feira, maio 15, 2008

curta

Tem uns dez, onze anos e aquele ar enfiado típico da aldeia que se constrói em redor da praça. Chove miudinho, e ele, enfiado num garruço verde, está só, sobre a pista escorregadia que estende a entrada do teatro. Na mão esquerda, um saco transparente cheio de pão, aquele pão de plástico, esbranquiçado arremedo de papo-seco, que se esfarela só de existir. A mão direita chove migalhas para o chão, para os pombos que começam a agrupar-se à volta, e que ele observa um por um. Enquadrado no rectângulo sob a varanda do teatro, o momento é enorme, silencioso, a praça barulhenta evaporada nas minhas costas. Deixo-me estar um pouco, ainda tenho tempo, acendo um cigarro, sorrio. Ele sente-se subitamente observado, e além disso acabaram-se as migalhas. Deixa os pombos no seu banquete e afasta-se, encerrando a cena com o número inesperado de tão típico. Estende a mão direita, foca os olhos sob o toldo do capuz e dispara silenciosamente. Reconhece a minha presença uma última vez e vai acabar o seu recado. Da melancolia urbana ao riso da memória, lembro-me imediatamente daquela redacção de primária que li uma vez: "eu gosto muito da primavera, de ver os passarinhos a cantarem e a voarem; eu gosto muito da primavera e gosto muito de passarinhos fritos."

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