sábado, abril 05, 2008

os restos e os dias certos

É verão. Sim, sei que ainda não é, mas manga curta na praça à meia-noite só pode significar uma coisa: é verão. Mesmo que o resto do Natal ainda vá no Batalha. Já nesta prateleira procurei este livro, não há muitos dias, e não estava lá. Ainda fiz menção de o procurar, mas ele sabia que nesse dia não queria realmente encontrá-lo. Hoje é o primeiro que vejo, apesar de ser pequenino e discreto aqui está saliente, meio saído da estante, meia lombada sobre o vazio, pronto a sair para a minha mão sem que eu o procure. Encontrou-me. E em minutos estou cá fora, com a compra e a oferta, restos do dia da poesia consubstanciada em Ruy Belo. Ainda é cedo. Sento-me. E sob as copas de São Lázaro, protegida do sol, mergulho na orla marítima. E ao chegar aqui, aos ácidos e óxidos, neles me vejo como sempre, mas de súbito me surges tu desenhado na página, nova camada de cor tão díspar sobre o familiar tijolo, e só eu te vejo e dispara-se-me o coração. Fecho o livro, é preciso seguir, o dia continua e não se pode estar sem fazer nada. Abri-lo-ei mais tarde, à luz de uma vela, depois de risos e finos em manga curta à meia-noite na praça.


É uma coisa estranha este verão
E no entanto ia jurar que estive aqui
Não me dói nada, não. A tia, como está?
Claro que vale a pena, por que não?
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?
Até já soube formas de o dizer de outra maneira
Há coisas importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés alheios à entrada
e só mandarmos nós neste templo de nada
E o orgulho é a nossa verdadeira casa
Nesta altura do ano quando o vento sopra
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

Ó dias encobertos de verão no meu país perdido
mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno
estas ou outras formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes porque sei que não há mais
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada

Curriculum atestado testemunho opinião...
que importa, se o verão mesmo é uma certa estação?
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar comigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
e que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce

Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório, é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo - o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
- que ao dominar-te deixa que domines - mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto



Ruy Belo, Ácidos e óxidos

Sem comentários: