domingo, abril 27, 2008

o livro

Na última semana ouvi umas quantas vozes do norte suspirarem pela luz de Lisboa, o que até achei algo descortês para os céus que os agora tardios crepúsculos do Porto nos têm oferecido. Mas sorrio à descortesia. Basta chegar ao Ribatejo, e esta transparência impudica começa a insinuar-se calma. Quente mesmo quando é fria. Nesta altura apresenta-se primeiro o porteiro de farda vermelha e libré, pequenas margaridas entrelaçando o seu amarelo vivo nas papoilas que berram vermelho ao longo do corredor do Tejo. Calam-se as papoilas quando o Stephen Merritt começa o seu círculo de leitura ao meu ouvido...

The book of love is long and boring
No one can lift the damn thing
It's full of charts and facts and figures
And instructions for dancing but

I...
I love it when you read to me


Chegar ao oriente tem para mim o sabor de uma antecâmara. Não é ainda a minha Lisboa, mas é ela que se anuncia. O comboio fica praticamente vazio e eu posso sussurrar a música que me trespassa sem me importar com olhares de estranheza. Bom, sobrou um casal de turistas, mas a malta gosta sempre de apanhar uns freaks indígenas, ou não fossem também assim feitas as memórias das viagens...

The book of love has music in it
In fact that's where music comes from
Some of it is just transcendental
Some of it is just really dumb but

I...
I love it when you sing to me


No cais, enquanto não avançamos para a terminal Apolónia, um casal aproxima-se do elevador. Ele é baixo e ligeiramente barrigudo, os braços curtos abandonados no ar, como que cheios de indecisões por tomar, o cabelo grisalho e ralo na nuca. Mais abaixo, ela, não porque seja mais baixa, mas porque por alguma razão se desloca sentada, sobre rodas. O cabelo grisalho é nela farto. Pressionam o botão e esperam. E o Merritt canta...

The book of love is long and boring
And written very long ago
It's full of flowers and heart-shaped boxes
And things we're all too young to know but

I...
I love it when you give me things and
You...
You ought to give me wedding rings


Dão as mãos. A tempo, no downbeat da canção. Não vi se tinham nos dedos os tais anéis que cantava o meu crooner pessoal, mas as mãos, essas, descansaram uma na outra. O elevador chegou. E o comboio partiu, mastigando o último pedaço da viagem.

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