quarta-feira, outubro 24, 2007

as certezas de Catarina

Ontem não sabias onde dormirias hoje. Ontem, quando choraste no escuro da cela depois de regressares da festa de emoções do ensaio, não sabias ainda o que deliberara a juíza que te olhara nessa mesma manhã, a manhã de ontem. Ontem, quando choraste, já o teu destino de hoje estava traçado, escrito em documentos, apenas ausente ainda de ti. Sabias que ias estrear, esta noite, e mais nada.

Hoje, estreia consumada e o homem em casa, esperando-te, não havia travão para tanto brilho. "Estou feliz, não choro mais!" e os teus olhos pontuavam a afirmação com um glorioso e saboreado "PORRA!". Engoliam tudo enquanto antecipavam o reencontro, "o meu namorado já se deve estar a passar, então mas a gaja não chega? Mas quem esperou dois anos..." E ali estavas tu, rindo, ainda de figurino vestido, o figurino da actriz que esta noite interpretou uma reclusa, com uma flûte do champanhe de estreia na mão, não querendo acabar com a expectativa da noite esperada que te merecia. Quase a última a sair. E uma estrada entre Matosinhos e a Feira, ali posta para te permitir gozar mais um pouco essa quase vontade de nunca abrir o presente, para que dure sempre o inquieto deslumbre de tão magnífico embrulho. "Dá muitos beijos e muita força a todas lá na ala, está bem? Eu esta noite vou dar uma por todas! E são umas trezentas!"

Nas três presenças desengaioladas vimos a vida. Paula, Marta e Catarina, da cela para o palco, de olhos abertos, de palavras vibrantes nascidas desse terreno pantanoso que em fronteiras voláteis se indefine, no percurso entre a tripa e o coração. Sem véus, sem artifícios, mas não sem arte. Eu sabia que uma delas saíra esta tarde, não sabia qual, não sabia quem saíra da cela para o palco para do palco finalmente regressar ao seu próprio quarto. Mas o sorriso que nos agradecimentos iluminava os olhos da Catarina não deixava qualquer margem para a dúvida.

5 comentários:

Anónimo disse...

Que texto comovente! Fez-me pensar no que a Filipa Francisco também falou quando do seu espectáculo com reclusas no Teatro Camões, esse sentimento do valor da liberdade (de que às vezes nos esquecemos de sempre presente). E que tal se portou a nossa Mikas?! Deve ter sido um espectáculo do caraças... gostava muito de ver!

polegar disse...

que bonito. o texto, o teu trabalho, e a forma como vês e sentes as coisas.

Manel disse...

A Micas é uma actriz do caraças, ao contrário do espectáculo, que não é do caraças. Mas a experiência foi do caraças. E a Marta, a Paula e a Catarina são do caraças. :)

Anónimo disse...

Caraças, gostaste mesmo! Quem bom! ;)

LuisElMau disse...

Que belo texto, belo de verdade.