Ontem não sabias onde dormirias hoje. Ontem, quando choraste no escuro da cela depois de regressares da festa de emoções do ensaio, não sabias ainda o que deliberara a juíza que te olhara nessa mesma manhã, a manhã de ontem. Ontem, quando choraste, já o teu destino de hoje estava traçado, escrito em documentos, apenas ausente ainda de ti. Sabias que ias estrear, esta noite, e mais nada.
Hoje, estreia consumada e o homem em casa, esperando-te, não havia travão para tanto brilho. "Estou feliz, não choro mais!" e os teus olhos pontuavam a afirmação com um glorioso e saboreado "PORRA!". Engoliam tudo enquanto antecipavam o reencontro, "o meu namorado já se deve estar a passar, então mas a gaja não chega? Mas quem esperou dois anos..." E ali estavas tu, rindo, ainda de figurino vestido, o figurino da actriz que esta noite interpretou uma reclusa, com uma flûte do champanhe de estreia na mão, não querendo acabar com a expectativa da noite esperada que te merecia. Quase a última a sair. E uma estrada entre Matosinhos e a Feira, ali posta para te permitir gozar mais um pouco essa quase vontade de nunca abrir o presente, para que dure sempre o inquieto deslumbre de tão magnífico embrulho. "Dá muitos beijos e muita força a todas lá na ala, está bem? Eu esta noite vou dar uma por todas! E são umas trezentas!"
Nas três presenças desengaioladas vimos a vida. Paula, Marta e Catarina, da cela para o palco, de olhos abertos, de palavras vibrantes nascidas desse terreno pantanoso que em fronteiras voláteis se indefine, no percurso entre a tripa e o coração. Sem véus, sem artifícios, mas não sem arte. Eu sabia que uma delas saíra esta tarde, não sabia qual, não sabia quem saíra da cela para o palco para do palco finalmente regressar ao seu próprio quarto. Mas o sorriso que nos agradecimentos iluminava os olhos da Catarina não deixava qualquer margem para a dúvida.
quarta-feira, outubro 24, 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Que texto comovente! Fez-me pensar no que a Filipa Francisco também falou quando do seu espectáculo com reclusas no Teatro Camões, esse sentimento do valor da liberdade (de que às vezes nos esquecemos de sempre presente). E que tal se portou a nossa Mikas?! Deve ter sido um espectáculo do caraças... gostava muito de ver!
que bonito. o texto, o teu trabalho, e a forma como vês e sentes as coisas.
A Micas é uma actriz do caraças, ao contrário do espectáculo, que não é do caraças. Mas a experiência foi do caraças. E a Marta, a Paula e a Catarina são do caraças. :)
Caraças, gostaste mesmo! Quem bom! ;)
Que belo texto, belo de verdade.
Enviar um comentário