sexta-feira, novembro 28, 2008

da técnica, da essência, dos sentidos, de tudo, do todo, do nada — ou muito simplesmente, bom dia de chuva!

Plainsong - The Cure

"Bom, parece-me que o mais difícil já passou" —disse eu um dia ao mestre, quando ele nos anunciava que iríamos começar com novos exercícios. "Aqui temos o costume de aconselhar a quem tem de caminhar cem milhas, que considere as noventa como sendo a metade —respondeu ele. Mas o objectivo desta nova etapa é o atirar ao alvo."

[...]

"As suas setas não atingem o alvo —observou o mestre— porque o seu alcance espiritual é limitado. Deve comportar-se como se o alvo estivesse a uma distância infinita. É um facto conhecido e comprovado pela experiência quotidiana entre nós, mestres arqueiros, que um bom arqueiro munido de um arco de resistência média, atira mais longe que um arqueiro munido do arco mais forte, mas carente de espiritualidade. Logo, o resultado não depende do arco, mas da presença de espírito, vivacidade e atenção com que ele é manejado. Mas para que esse estado de vigília espiritual atinja a tensão máxima, terá de executar a cerimónia de maneira um pouco diferente; mais ou menos como o verdadeiro dançarino executa a sua dança. Se assim o fizer, os movimentos dos seus membros nascerão daquele centro onde dá a respiração correcta. Assim a cerimónia, em vez de se desenrolar como algo aprendido de cor, parecerá criada segundo a inspiração do momento, de tal forma que dança e dançarino sejam um só. (...) Os meus tiros já não eram tão curtos, no entanto ainda não me permitiam atingir o alvo. Isto levou-me a perguntar ao mestre por que razão não nos ensinara ainda a apontar. Deveria existir, supunha eu, uma relação entre o alvo e a ponta da flecha, e com isto um meio comprovado de fazer pontaria, de modo a atingir o alvo.

"Claro que existe —retorquiu o mestre— e poderá facilmente descobrir por si mesmo qual a posição ideal. Porém, se a maioria dos tiros acertar no alvo, não passará de um artista que se pode exibir em público. Para o ambicioso que apenas colecciona tiros certeiros, o alvo não passa de um pobre pedaço de papel que ele desfaz com as suas setas. A Doutrina Magna do tiro com arco considera este procedimento como algo perfeitamente diabólico. Ela ignora o alvo que está colocado a uma determinada distância do arqueiro. Reconhece apenas a meta, que de maneira nenhuma se deixa alcançar através da técnica (...).

(...) Primeiro, não me preocupei com o destino das minhas setas. Mesmo as vezes em que acertava ocasionalmente não me excitavam, pois sabia-as fruto do acaso. Mas com o tempo eu já não suportava este disparar às cegas e caí outra vez na tentação de reflectir sobre o assunto. (...) "O senhor preocupa-se desnecessariamente —disse o mestre, para me consolar.— Afaste de uma vez por todas do seu espírito a preocupação de acertar no alvo! Pode tornar-se um mestre arqueiro, mesmo que não acerte sempre. Os tiros certeiros não passam de provas exteriores e confirmações do grau máximo de ausência de intenção e de libertação do Ego, meditação, ou como lhe queira chamar. Há diversos graus de mestria, e só quem atingiu o último estará em condições de jamais falhar o alvo exterior. (...) O senhor está enganado (...) se pensa que a compreensão, ainda que parcial, desta obscura conexão o poderá ajudar. Trata-se de fenómenos inatingíveis para o entendimento. Não se esqueça de que há harmonias incompreensíveis na natureza, e no entanto são tão reais que nos habituamos a elas, ao ponto de já não as concebermos de outra forma. Dou-lhe um exemplo sobre o qual reflecti muitas vezes: a aranha "dança" a sua teia sem saber que as moscas se prenderão nela. A mosca, dançando despreocupadamente num raio de sol, ignorando o que a aguarda, enreda-se na teia. Mas 'algo' dança através delas, e nesta dança interior e exterior se fundem. Do mesmo modo o arqueiro atinge o alvo, sem ter feito pontaria — e melhor não lhe posso explicar."

[...]

Como se eu, por magia, me tivesse transformado durante a noite, não tornei a cair na tentação de me preocupar com as minhas flechas e o seu destino. O mestre incentivava-me ainda mais nesta atitude, pois constatei que ele nunca observava o alvo, apenas o arqueiro, como se fosse o meio mais seguro de fazer uma leitura do resultado do tiro. Confrontado com a pergunta, admitiu-o sem reservas, e pude mais tarde confirmar como a precisão com que avaliava os tiros não ficava atrás da segurança das suas flechas. Transmitia assim, profundamente concentrado, o espírito da sua arte aos discípulos, e não hesito em afirmar, por experiência própria (da qual duvidei durante bastante tempo) que a tão falada comunicação directa não é uma simples forma retórica, mas sim um fenómeno de realidade tangível. [...]

Um dia, no momento em que o meu tiro se desprendia, o mestre exclamou: "Aí está! Incline-se!" Quando mais tarde olhei para o alvo —infelizmente, não o pude evitar— constatei que a seta apenas roçara a borda. "Este foi um tiro verdadeiro —afirmou o mestre— e é assim que deve começar. Mas por hoje basta, porque senão vai empenhar-se demasiado no próximo tiro e deitar a perder este bom começo." Com o decorrer do tempo foram acontecendo, de vez em quando, mais alguns tiros que atingiam o alvo, embora acompanhados de muitos tiros falhados. Mas ao menor sinal de vaidade, logo o mestre me repreendia com particular rudeza e explodia: "Mas o que é que se passa consigo? Sabe perfeitamente que não se deve incomodar com os tiros falhados. Do mesmo modo, deve abster-se de se alegrar com os tiros bem-sucedidos. Tem de se libertar desse oscilar entre o prazer e o desprazer. Precisa de aprender a manter-se em serena indiferença, e alegrar-se como se tivesse sido outro, que não o senhor, a executar um bom tiro. Não calcula como isto é importante."

Durante estas semanas e meses fiz a escola mais dura da minha vida. E nem sempre me era fácil adaptar-me, aprendi com o tempo o quanto lhe devo. Ela eliminou as minhas últimas veleidades da necessidade de ocupar-me de mim mesmo e das flutuações do meu estado de espírito. "Compreende agora —perguntou-me certo dia o mestre, depois de um tiro particularmente feliz— o que quer dizer:
algo atira, algo acerta?"

"Receio bem já não entender rigorosamente mais nada —respondi—, até o mais simples se torna confuso. Sou eu quem estira o arco, ou é o arco que me leva à tensão máxima? Sou eu quem acerta no alvo, ou é o alvo que acerta em mim? Esse
algo é espiritual aos olhos do corpo, ou corporal aos olhos do espírito, ambas as coisas, ou nenhuma? Todas estas coisas, arco, seta, alvo e Eu enredam-se de tal maneira que já não os consigo separar. Até o desejo de o fazer desapareceu, pois assim que agarro o arco e disparo, tudo fica tão claro, tão inequívoco, tão ridiculamente simples..."

O mestre interrompeu-me e disse: "Neste preciso momento a corda do arco acaba de o atravessar."

Eugen Herrigel, Zen e a Arte do Tiro com Arco

2 comentários:

rf disse...

Precioso!
Bom de reler e lembrar.
Oxalá pudéssemos chegar ao limiar desse estado, de um certo estado, nomeadamente no ofício das artes. Menos artifício e mais produção de sentido, embora esta ideia não se encaixe bem na cultura destes ensinamentos...
No entanto, para nós ocidentais, é difícil de encaixar - e estará mesmo nos antípodas do nosso entendimento - uma arte em que se elimine o "prazer e o desprazer", em que o envolvimento seja de "serena indiferença", uma vez que a arte é um veículo da emoção (não da emoção fácil e chã), expressão, pensamento e acção sobre a Vida.
Um bom guia para a 'acção pura'.
Embora, na minha maneira de me posicionar sobre o mundo, não valorize nem deseje a suspensão do pensamento e da reflexão.
...

Manel disse...

É sempre uma questão de perspectiva. E, na minha perspectiva :op, de equilíbrio. São o pensamento e a reflexão tijolos, ou antes binóculos? Ou devem ser ambas as coisas? Saber quando agir, saber quando observar, saber deixar o alvo acertar. A arte sem artifício... não é sempre essa a que mais nos transporta? :)