terça-feira, maio 16, 2006

As mãos


Paula Rego, Nursery Rhymes
Rock-a-bye, Baby
, 1994


Em Lisboa, sem carro, que ficou no Porto em descanso do trânsito da Constituição. Ensaio em Alcântara e eu de volta ao novo velho 56 que há onze anos me levava à faculdade ainda antes do sol nascer. Para quem vive nos prédios que substituíram o barracame do Casal Ventoso, o 56 é o transporte local, de casa para a tasca ou para o supermercado. No banco à minha frente sentam-se uma avó e um neto. A avó tem, à primeira vista, um aspecto quase grotesco, os dentes tortos e afastados, as feições grosseiras, o corpo descuidado, as mãos inchadas. O neto é, enquanto acabo a chamada para o meu desterrado intoxicado [onde é que já se viu, digerir mal o sushi?!...], apenas um reguila de boné que fala demasiado alto. Desligo. A conversa vai animada. Lápis de cor, papéis e borrachas, o delicioso mundo da papelaria infantil que me enchia de brilho os olhos quando tinha aquela idade. O puto afinal é giro que se farta, inteligente, encara os adultos, inquiridor, fala que se desunha e observa constantemente tudo o que o rodeia. A avó dá-lhe uma palmadinha na mão quando ele mete o dedo no nariz, Tira a mão daí, já te disse, porque é que estás com o dedo no nariz? Porque estou a tirar um macaco, anuncia o petiz, alto e bom som, com tom de quem acha a pergunta ridícula e a resposta óbvia. Enquanto procura na mala os lenços de papel, a avó estala numa gargalhada luminosa que lhe enche o rosto da beleza feliz do amor, e logo o transforma, num ápice. E um feio boneco de uma fraca revista dá lugar a uma deslumbrante gravura de Paula Rego. Limpa-lhe o nariz, sempre com o rosto claro de riso, e logo os braços se sobrepõem, na sua maravilhosa desproporção, e os dedos se entrelaçam, naturalmente, sem um olhar, sem uma hesitação. Mão de avó e mão de neto, naquele autocarro aquelas duas jovens mãos sapudas marcaram a raios de sol a minha tarde de quase verão.

10 comentários:

K. disse...

Coisas que se tornam visíveis a olhos atentos e a corações despertos. Beijo.

Anónimo disse...

Que maravilha...é preciso saber ver para lá do óbvio! E ainda bem que tu sabes!

Anónimo disse...

Qué lindo, che...

Anónimo disse...

o kuotidiano tem destas pérolas; xaber olhar o banal e descortinar o espexial é xaber ver a poesia nas coixas mas simples da vida...

Tens alma de poeta Manel.

Anónimo disse...

Kat, o teu novo avatar é do caraças! ;)

Manel disse...

É só estilo... ;):)

Gui disse...

o 56 nao conheço, mas aqui o 502 que vai para o bolhão também tem assim umas personagens curiosas :)

Truta Laranja disse...

linda...
;)

K. disse...

Boa fotógrafa, apenas...

Nic disse...

"estala numa gargalhada luminosa que lhe enche o rosto da beleza feliz do amor"

momento tao bem descrito que deu para ver daqui - tambem marcaste a raiso de sol esta manha de apos tufao.

parabens e obrigado... pelo blue!
:)