segunda-feira, maio 22, 2006

Quem és tu? O que fazes aqui?



Sérgio Tréfaut agarrou numa câmara e percorreu a cidade paralela que vive no estrangeiro. Com a sua câmara, Sérgio produziu um olhar singular sobre essa(s) cidade(s) no coração de Lisboa, não uma peça jornalística, mas uma clara, aberta e inteligente visão sobre gente, lugares, presença e ausência, nuvens e raízes. Lisboetas é um precioso documentário sobre o mundo que desaguou em Lisboa na última década, e que vive as origens e o desenraízamento, a saudade e a esperança, os bloqueios burocráticos e o sol, o todo o mundo e o nenhures que passam a defini-los na sua condição de imigrantes.

O filme constrói-se com respiração pausada, com tempo para olhar - e integrar que, como já se disse a propósito, ali os estrangeiros somos nós. As mais diversas comunidades, desde os tão presentes brasileiros aos discretos sikhs, do ex-soviético, ou seja, ucraniano, russo, lituano, moldavo e tudo o mais, ao paquistanês que à beira-rio assegura que Paquistão ou Marrocos, é tudo a mesma coisa. As cenas instalam-se e revelam-se calmamente, complementando-se num fresco. O SEF, burocrático e frio, onde os olhares perdidos se multiplicam, como que de crianças pequenas ouvindo o palavrear ininteligível dos adultos, face a funcionários que teimam em ignorar as, por vezes graves, dificuldades na compreensão do português, ainda mais o burocrático; a imigrante de leste que louva ao telefone a vida que conseguiu em Portugal, enquanto deplora o estado da educação, "muito fraca, um verdadeiro problema..."; a enfermeira dos Médicos do Mundo que pergunta ao ucraniano "Há quanto tempo está em Angola?"; o indiano que envia todo o dinheiro para a família, que é ignorado em peso pelas esplanadas das Portas de Santo Antão, oferecendo as suas rosas a cada uma das mesas excepto àquela onde está um casal de homens; o destino do imigrante nigeriano, sempre a trabalhar por mais sete anos e sempre perdendo a sua prometida Raquel, louvado seja o sEnhor; a aula de português onde se conjugam verbos de praticidade imediata, eu fui aldrabado, a minha mulher foi aldrabada, os portugueses são aldrabados, e às vezes aldrabões. Um não acabar de vida difícil mas bela alagando o écran. Uma longa cena, a meio do filme, pontua a epopeia poética em movimento, uma loira e imigrante mãe, no banco da cauda do eléctrico, com o seu bebé adormecido nos braços, o rosto parecendo querer esconder uma felicidade que é só dela e que naquele momento se revela à criança portuguesa que a encara e sorri, o longo silêncio abraçando a sala de cinema naquela viagem e naquele regaço, um longo e parado plano, e pur, si muove, movimenta-se de tanta vida que ali vai sobre os carris.

Lisboetas é um filme que nos convida a entrar no mundo, ainda que o mundo já esteja cá dentro. Quem sou eu, mãe?; -Saberás a resposta quando regressares a casa.

6 comentários:

violeta13 disse...

que tamanha emoção que tenho ao ler estas tuas linhas e que infâme me sinto por não ter visto esta película ainda. é que tudo me diz respeito, tu sabes que lidei de perto e em privado com esta realidade estrangeira dentro de casa, da minha casa, da minha pele, e sei bem, apesar da desilusão, o quanto lhe custou a ele ser recebido e sentir-se como tal. os desafios da lei, a resistência da língua, o ser cidadão do mundo e sentir-se defraldado, a lonjura da pátria, da língua, do coração, da família... bendito seja Sérgio Tréfaut e bendita sejas tu, por nos alertarem para a solidão de irmãos de outras terras...

Vítor I. disse...

Um filme que nos revela aquilo que teimamos em não querer ver.
Uma visão crua e simultaneamente poética sobre a condição dos "outros" lisboetas.
Um excelente post sobre um excelente filme.
Um autor que devia de levar um puxão de orelhas por começar um novo blogue sem aviso prévio!

Manel disse...

:) Puxão aceite. Mas sabes, Vítor, o sítio onde vou fazendo ioga quando estou em Lisboa não faz publicidade; quem vai lá ter é porque... vai lá ter, pronto. Eu resolvi experimentar isso com este blog. E estava a ver que nunca mais chegavas. ;)

Nic disse...

Identifico-me a 100% com a forma de olhar o mundo de Sergio, atrevez duma optica humana. O teu texto tambem revela isso em ti (mas isso ja o sabia). Com a linda fotografia que escolheste e as palavras que escreveste, espreitar o link tornou-se irresistivel. E irresistivel tambem foi a sua leitura ate' ao fim.
Sergio mostrou-nos um lado bonito, de sensibilidade humana, que tambem anda por ai'...
Muito Obrigado pela excelente e bem merecida apresentacao e divulgacao de uma obra que ira' decerto sensibilizar tao necessarias mudancas de mentalidades!

:)

Anónimo disse...

Está lá bem explícito nas Trutas, Vítor! ;)

Um filme que está nas minhas prioridades, quando tiver um fim-de-semana...

Manel disse...

Esperemos que sim, Nic, esperemos que sim.