Um motorista italiano foi entrevistado por um jornalista português. Já não sei qual o jornal que publicou a entrevista porque isto se passou há largos anos. O que nunca mais esqueci foi uma pergunta que saltou dessa entrevista. Ao tempo, pareceu-me digna de registo. E nesta nossa actualidade tem-me ocorrido à lembrança com uma frequência lamentável.
O motorista conduzia um camião frigorífico que vinha quinzenalmente a Setúbal buscar peixe destinado às bocas italianas. Ao longo da entrevista falou com entusiasmo das muitas coisas que apreciava na vida, desde a ópera até à qualidade especial de certo tinto — tudo isso na Itália. O entrevistador fez a pergunta que se impunha: "E Portugal?"
"Não gosto", respondeu o italiano. E logo lamentou que a profissão o obrigasse a vir até nós constantemente. Para se explicar também não se fez rogado: declarou que achava os portugueses muito tristes, que a nossa via pública era um mostruário de rostos abatidos. Coisa que o inquietava tanto que lhe apetecia interpelar os transeuntes desta forma: "O que é que vos aconteceu?"
Se esta pergunta forte fosse feita agora, penso que toda a resposta a ela iria dar ao 25 de Abril. A variação seria consoante o bode expiatório político escolhido por quem respondesse. Mas a entrevista ocorreu quando Salazar gozava de saúde forte e feia.
Os democratas da perseguida oposição ao salazarismo devem ter pensado, lendo a entrevista, que a situação retrógrada originada pela ditadura era a causa exclusiva da tristeza geral que tanto perturbara o motorista italiano. Quanto aos salazaristas, esses sempre acusaram a democracia anterior ao 28 de Maio como a grande culpada do atraso português (quando ousavam confiar uns aos outros que havia atraso).
Na democracia anterior ao 28 de Maio, as acusações foram tantas e jorraram de tantos lados que é impossível resumi-las senão dizendo que os republicanos se acusaram uns aos outros e aos monárquicos, os quais, por sua vez, viam na República a fonte de todos os vícios e acusavam a Coroa de, por brandura, não ter sabido impedir a implantação da Republica. Este género de reflexão leva-nos a recordar que os monárquicos absolutistas olharam sempre para os monárquicos liberais como agentes enviados pelo demónio a fim de provocar a perdição de Portugal. Quanto aos males sobrevindos ao longo do absolutismo, eles foram explicados por vários adeptos do absolutismo como consequência de um declínio que a Restauração da Independência em 1640 não logrou deter. O leitor, neste ponto, já está a entrever (e bem) o sebastianismo resultante da derrota de Alcácer-Quibir. Mas convém lembrar que essa derrota proveio de uma expedição que Camões receitou a D.Sebastião para curar Portugal da apagada e vil tristeza diagnosticada n'Os Lusíadas.
Bem, parece que a marcha atrás na História não resulta. Dou meia volta para recordar um episódio. Verídico.
Numa noite de santo popular, houve uma disputa num arraial. De leve que começou, deu em aquecer tanta gente e de tal modo que a pancadaria grossa estava quase a rebentar. Subitamente, um homem muito alto abriu caminho ao encontrão, até alcançar o epicentro da contenda. Aí chegado ele soltou um "Alto aí" de autoridade imensa. A reforçar o berro, meteu a mão no bolso interior do casaco, enquanto fuzilava os circunstantes com um olhar de algemas. As pessoas imobilizaram-se, mesmo as mais acaloradas. E toda aquela gente aguardou, resignada, que o desconhecido exibisse um crachat da Polícia.
Mas sucedeu que a mão oculta no casaco reapareceu empunhando uma gaita de beiços, que o homem logo meteu à boca para começar a tocar o fandango. Estalou uma gargalhada geral, seguida de uma salva de palmas. E a zaragata que estava prestes a estragar tudo não se deu.
À luz deste episódio, eu responderia à pergunta do motorista italiano dizendo que nos tem faltado o homem da gaita, e que a ausência dele tem deixado por explorar a face oculta da nossa lua: a capacidade para rir e desarmar com esse riso a solenidade e dramatização que trazem a nossa vida colectiva de sobrolho carregado. E, por tabela, a nossa vida individual.
O riso a que me refiro não é o riso contra, ou o riso à custa de alguém. É o riso que salvou o arraial no episódio que narrei, e no qual a propensão para o humor puro prevaleceu sobre códigos de homens ali prestes a ditarem mais uma cena de violência inútil.
Quando me recordo dos debates parlamentares a que assisti em Londres, penso que o que mais me impressionou foi o recurso constante ao sentido de humor, que mantém respirável a atmosfera que os problemas graves e as tensões políticas carregam, inevitavelmente. O que o homem da gaita conseguiu com o seu gesto foi mostrar que a agressividade ali crescente era evitável por desnecessária. Mas tal só foi possível graças à resposta que o seu gesto obteve. Isto, que aconteceu num beco de Lisboa, não será possível no beco nacional?
Nuno Bragança, 1929-1985; o JL [não o meu João Luc, mas o Jornal de Letras] vai no número 1000 e quem ganha é quem ainda não lia quando saíu esta crónica — que se chamou A Pergunta, mas também se poderia inscrever nas conferências sobre o fanatismo publicadas por Amos Oz. Ainda vivo, porque de língua viva, este nosso ómãi qe dava pulus.
[boca direitinha para um jardim de Praga: aguardo-vos em Veneza, bem como ao ómãi qe dava pulus ;)]
quarta-feira, fevereiro 04, 2009
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