domingo, janeiro 11, 2009

"quem ousaria pensar que ao século xx se seguiria de imediato o século xi?"

Só quem ama pode converter-se num traidor. A traição não é o reverso do amor; é uma das suas opções. Traidor, julgo, é quem muda aos olhos daqueles que não podem mudar e não mudarão, daqueles que detestam mudar e não podem conceber a mudança, apesar de quererem sempre mudar os outros. Por outras palavras, traidor, aos olhos do fanático, é qualquer um que muda. É difícil a escolha entre converter-se num fanático ou converter-se num traidor. Não converter-se num fanático significa ser, até certo ponto e de alguma forma, um traidor aos olhos do fanático. Eu fiz a minha escolha (...).

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(...) com alguma frequência, os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem muitas vezes sentir do que pensar, e têm uma fascinação especial pela sua própria morte. Desprezam este mundo e estão impacientes por trocá-lo pelo "Paraíso". No entanto, o seu Paraíso é geralmente imaginado como o final de um mau filme.

(...) Um querido amigo e colega meu, o admirável romancista israelita Sammy Michael, passou uma vez pela experiência, por que todos nós passamos de vez em quando, de andar de táxi durante um bom tempo com um condutor que lhe ia dando a típica palestra sobre como é importante para nós, Judeus, matar todos os Árabes. Sammy ouvia-o e, em vez de lhe gritar, "Que homem horrível que você é! É nazi ou fascista?", decidiu ir por outro caminho e perguntou-lhe: "E quem acha que deveria matar todos os Árabes?" O taxista disse-lhe: "O que quer dizer com isso? Nós! Os Judeus Israelitas! Temos de o fazer! Não há escolha. Veja só o que nos fazem todos os dias!" "Mas quem, especificamente, é que deveria fazer o trabalho? A polícia? Ou o exército talvez? O corpo de bombeiros ou as equipas médicas? Quem deveria fazer o trabalho?" O taxista coçou a cabeça e disse: "Penso que devíamos dividi-lo em partes iguais entre cada um de nós, cada um de nós devia matar alguns." E Sammy Michael, ainda no mesmo jogo, disse: "Pois bem, suponha que a si lhe toca um determinado bloco residencial da sua cidade natal, Haifa, e que bate às portas ou toca às campainhas, e pergunta: 'Desculpe, senhor, ou desculpe, senhora. Por acaso é árabe?' E se a resposta for afirmativa, você dispara. Quando acaba o seu bloco, dispõe-se a regressar a casa, mas ao fazê-lo," continuou Sammy "ouve, algures no quarto andar do seu bloco, o choro de um bebé. Voltaria para matar o bebé? Sim ou não?" Houve um momento de silêncio e, então, o taxista disse a Sammy: "Sabe, o senhor é um homem muito cruel." Esta é uma história muito significativa, porque há algo na natureza do fanático que, essencialmente, é muito sentimental e, ao mesmo tempo, carece de imaginação. E isto, às vezes, dá-me esperança — naturalmente, muito limitada — de que injectando alguma imaginação nas pessoas, talvez as ajudemos a reduzir o fanático que trazem dentro de si e a sentirem-se incomodados. Não é um remédio rápido, não é uma cura rápida, mas pode ajudar.

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Shakespeare pode ajudar muito: todo o extremismo, toda a cruzada intransigente, toda a forma de fanatismo em Shakespeare acaba, mais tarde ou mais cedo, em tragédia ou em comédia. No final o fanático nunca está mais feliz ou mais satisfeito, ora morrendo ora convertendo-se em bobo. É uma boa injecção. E Gogol também pode ajudar: faz com que, grotescamente, os seus leitores tomem consciência do pouco que sabemos, mesmo quando estamos convencidos de ter cem por cento de razão. Gogol ensina-nos que o nosso próprio nariz pode transformar-se num inimigo terrível, num inimigo fanático até. E pode acontecer que acaemos por perseguir fanaticamente o nosso próprio nariz. Em si, não é uma má lição. Kafka é um bom educador a este respeito, se bem que tenho a certeza de que ele nunca pretendeu leccionar contra o fanatismo. Mas Kafka mostra-nos que também existe escuridão e enigma e engano quando pensamos que não fizemos absolutamente nada de mal. Isso ajuda. E William Faulkner pode ajudar. O poeta israelita Yehuda Amijai expressa tudo isto melhor do que eu poderia fazer, quando afirma: "Onde temos razão não podem crescer flores."

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Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas atrevo-me humildemente a acrescentar: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme e a outra a olhar para o oceano — uma metade ligada à família, aos amigos, à cultura, à tradição, ao país, à nação, ao sexo e à linguagem e a muitas outras coisas, e a outra metade a desejar que a deixem sozinha a contemplar o oceano. Penso que deviam deixar-nos continuar a ser penínsulas. Todo o sistema político e social que converte cada um de nós numa ilha donneana e o resto da humanidade em inimigo ou rival é uma monstruosidade. Mas ao mesmo tempo, todo o sistema ideológico, político e social que apenas nos quer transformar em moléculas do continente, também é uma monstruosidade, A condição de península é a própria condição humana. É o que somos e o que merecemos continuar a ser.

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Amos Oz,
Da natureza do fanatismo — conferência de 23 de Janeiro de 2002


[para o Fernando, com um beijo peninsular]

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