sexta-feira, janeiro 09, 2009

três vezes


Janelas Verdes, hoje de Janeiro de 2009



Acima de tudo não nos é possível deixar de viver no presente. Bendito entre todos os mortais o que não perde um momento de vida presente a relembrar o passado. A nossa filosofia está atrasada, excepto quando ouve o galo cantar em todos os quintais que há no raio do horizonte. Em geral, esse canto recorda-me que estamos cada vez mais obsoletos no que fazemos, e nas rotinas do pensamento. A sua filosofia chega a uma época mais recente do que a nossa. Algo possui que sugere um mais novo testamento — o evangelho segundo o momento actual. Não foi ultrapassado; cedo se levantou e ficou desperto para estar onde lhe for possível acompanhar as estações, na guarda avançada do tempo. É uma expressão da saúde e do perfeito estado da Natureza, uma jactância dirigida ao mundo inteiro — uma salubridade que é como um jorro a brotar de uma nascente, uma nova fonte das Musas para celebrar este último ponto do tempo. Onde ele vive não se promulgam leis sobre escravos. Quem já não traíu muitas vezes o seu senhor depois de ter ouvido esta nota pela derradeira vez?

O mérito desta melodia de ave está em mostrar-se alheia a qualquer queixume. O cantor pode levar-nos facilmente às lágrimas ou ao riso. Mas onde está aquele que é capaz de provocar-nos uma alegria puramente matinal? Pesado de humor, quando sinto o terrível silêncio dominical das sendas da nossa floresta, ou, porventura, o velório numa casa mortuária cortado por um galo que, perto ou longe, entoa a a sua vitória, digo a mim próprio: "Ao menos há um dos nossos que está de bem com a vida" — e, com um inesperado frémito, recupero o ânimo.


Henry David Thoreau, in
Caminhar, trad. António Moura

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