quarta-feira, junho 27, 2007

Bare with me

Estamos a discutir conceitos. Não estamos discutir essa coisa a que chamam competitividade, nem os custos do progresso. Do que se fala é de algo bem maior. Associado à tão falada flexi-xi, vem sempre o corte na remuneração do trabalho extra - é assim que se chama agora, que horas extraordinárias é expressão que tem o seu peso e pode acordar indesejáveis fantasmas de lutas passadas. É preciso cortar, é preciso despedir sem regra - não direi nunca livremente, que a ideia de liberdade é mal apreciada em tal contexto. É preciso, caramba, mudar essa puta dessa constituição que ainda nos pode lembrar que não somos súbditos de ninguém, que a vida é nossa e o país é nosso e nós somos o país. Porquê? Porque a riqueza não chega? Chega, chega. E todos nós podemos apreciar como chega. Mas, talvez resultado da decadência do ensino, ninguém parece ter evoluído na apredizagem das contas de dividir, aliás, diria que a desaprendizagem é claríssima. A riqueza não chega? Chega, senhores, chega. Lá porque há quem goste de ser tomado por parvo, a realidade não desaparece nas mentiras, pelo contrário, surge em alto contraste. Admira-me como é possível mentir a tanta gente por tanto tempo. O Lincoln enganou-se. Mas o Lincoln levou um tiro num camarote de um teatro. Muito apropriado.

E a amargura do Zé Mário a revolver-me a mente, a produtividade, ora aí está, quer dizer, há tanto nesta terra que ainda está por fazer. E a educação pública escaqueirada, e a porra do rio não há modo de desaguar, há sempre mais onde escaqueirar, onde destruir, onde implodir, para depois dizer, viram?, é assim, o edifício era podre, tinha maus alicerces, nunca se aguentaria, nós viemos fazer-vos o maior dos favores, agora vejam lá, não se armem em ingratos.

A equação é simples. Comprida, em cauda e em séculos, mas simples. Os corredores do poder são isso mesmo, corredores. As mãos lavam-se mutuamente, as lagostas partilham-se e os amos são para obedecer. Cá em baixo 'inda anda gente, mas é cada vez mais noite, e a massa de escravos sem saber, sem pensar, alimentados a ignorância, a medo, a fome e a sexo, é massa de tumor, que come vorazmente os focos de humanidade que se lhe atravessam no caminho para o hipermercado. Ainda não é o bastante, dizem. Ainda é preciso flexi-segurar a constituição.

Dêem-nos o supérfluo sem limites ou o mínimo assegurado, observava Georges Sand há quase duzentos anos. Mas o supérfluo sem limites não vai lá pelo equilíbrio, seria uma contradição em termos, vai lá pela acumulação, pelo roubar de um prato para colocar no outro. O que significa que não permite sequer o mínimo assegurado, nunca chega o monte, é sempre possível comer mais, degradar mais, sugar mais. Assim o era nos dois séculos antes de Sand, e antes deles. Assim o é hoje. Ámen.

6 comentários:

Vítor I. disse...

Vivà flexissegurança| Flexi para despedir sem restrições, flexi para trabalhar o número de horas que o patrão impõe, segurança para quem vai conseguir comprar mais um Ferrari para o filho (depois fecha-se a empresa deixando-se trabalhadores e fornecedores a arder).

Raquel Alão disse...

Este país deprime-me... Ando a ler a biografia da Luísa Todi e família. E não é que é possível, quantos séculos volvidos, ainda estarmos na mesma merda do mesmo lodo?! Mudam as caras, os tempos, a estilística dos ditos, afirmações e feitos... E tudo na mesma...

Há pouco tempo recebi um email de uma amiga minha que já se encontra "lá fora", no "estrangeiro", há uns anos... Em resposta ao meu candido "Tu deixa-te ficar por aí", recebi um "Portugal é mal-amado pelos portugueses, nem tudo está bem, mas sofre de um caso de desamor". Concerteza... Trocamos de posto?

MPR disse...

Há 100 anos, quando rompe pelo mundo o bicho do Socialismo, o Capital (vamos lá chamar as coisas pelos nomes) tem uma ideia brilhante e inventa a classe média. Vamos lá acabar com o fosso entre classes e enchê-lo com a massa informe de gente, damos-lhe novelas e férias em Agosto, carros a prestações e futebol, enchê-los de tal maneira que nem consigam olhar por cima do monte de merda e perceber que tudo, no fundo, está na mesma. Agora os iluminados acham que essa massa informe está estupidificada ao ponto de poder ser sugada de novo, empurrada para de onde veio. Podem ter razão. Ou pode ser que seja preciso sair para a rua mais cedo do que se pensa...

Siona disse...

Isso devia ser "Bear with me".
"Bare with me" pode ser interpretado como "desnuda-te comigo". ;)

Manel disse...

A intenção é o duplo sentido. ;) Mas obrigada na mesma, Siona.

Unknown disse...

«vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada, milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!»

:)*