Quem és tu? O que fazes aqui?
Sérgio Tréfaut agarrou numa câmara e percorreu a cidade paralela que vive no estrangeiro. Com a sua câmara, Sérgio produziu um olhar singular sobre essa(s) cidade(s) no coração de Lisboa, não uma peça jornalística, mas uma clara, aberta e inteligente visão sobre gente, lugares, presença e ausência, nuvens e raízes.
Lisboetas é um precioso documentário sobre o mundo que desaguou em Lisboa na última década, e que vive as origens e o desenraízamento, a saudade e a esperança, os bloqueios burocráticos e o sol, o todo o mundo e o nenhures que passam a defini-los na sua condição de imigrantes.
O filme constrói-se com respiração pausada, com tempo para olhar - e integrar que, como já se disse a propósito, ali os estrangeiros somos nós. As mais diversas comunidades, desde os tão presentes brasileiros aos discretos sikhs, do ex-soviético, ou seja, ucraniano, russo, lituano, moldavo e tudo o mais, ao paquistanês que à beira-rio assegura que Paquistão ou Marrocos, é tudo a mesma coisa. As cenas instalam-se e revelam-se calmamente, complementando-se num fresco. O SEF, burocrático e frio, onde os olhares perdidos se multiplicam, como que de crianças pequenas ouvindo o palavrear ininteligível dos adultos, face a funcionários que teimam em ignorar as, por vezes graves, dificuldades na compreensão do português, ainda mais o burocrático; a imigrante de leste que louva ao telefone a vida que conseguiu em Portugal, enquanto deplora o estado da educação, "muito fraca, um verdadeiro problema..."; a enfermeira dos Médicos do Mundo que pergunta ao ucraniano "Há quanto tempo está em Angola?"; o indiano que envia todo o dinheiro para a família, que é ignorado em peso pelas esplanadas das Portas de Santo Antão, oferecendo as suas rosas a cada uma das mesas excepto àquela onde está um casal de homens; o destino do imigrante nigeriano, sempre a trabalhar por mais sete anos e sempre perdendo a sua prometida Raquel, louvado seja o sEnhor; a aula de português onde se conjugam verbos de praticidade imediata, eu fui aldrabado, a minha mulher foi aldrabada, os portugueses são aldrabados, e às vezes aldrabões. Um não acabar de vida difícil mas bela alagando o écran. Uma longa cena, a meio do filme, pontua a epopeia poética em movimento, uma loira e imigrante mãe, no banco da cauda do eléctrico, com o seu bebé adormecido nos braços, o rosto parecendo querer esconder uma felicidade que é só dela e que naquele momento se revela à criança portuguesa que a encara e sorri, o longo silêncio abraçando a sala de cinema naquela viagem e naquele regaço, um longo e parado plano,
e pur, si muove, movimenta-se de tanta vida que ali vai sobre os carris.
Lisboetas é um filme que nos convida a entrar no mundo, ainda que o mundo já esteja cá dentro.
Quem sou eu, mãe?; -Saberás a resposta quando regressares a casa.