sábado, junho 24, 2006


Praça dos Leões, 23 de Junho de 2006
Desenho de Cuba


Voltei cedo para casa...



... porque me faltava o martelo.


Rua Sá da Bandeira, Junho de 2006

Tiro o chapéu a quem quer que tenha tido esta brilhante ideia. Ópá, Sugai é genial, eheheh...

terça-feira, junho 20, 2006

Canção da noite

Eu vi um sapo, um grande sapo...

domingo, junho 18, 2006

Late again, Sam...


Praça da Batalha, Porto
Maio de 2006


Chega-se tarde a algo que já partiu ou que não se tem tempo de apreender, há sempre um angustioso atraso para a próxima paragem, pós-moderno toca-e-foge, sem objectivo que nos console o tic-tac interior. Rondamos as paragens dos guias que escolhemos, e tentamos entrar nas suas carruagens ou arrastá-los para as nossas. Por vezes parecemos conseguir, ou ficcionamos que conseguimos, outras deixam-nos à janela do desconsolo da incomunicação. Por vezes esperamos o comboio na paragem do autocarro. Por vezes a ficção irrealiza a carne e o osso e a realidade desfaz-se em perplexidades. Por vezes ansiamos por um destino que não desejamos, em vez de gozarmos bem a nossa rota. Por vezes descobrimos que já é tarde para viver e para morrer e encerramo-nos no purgatório televisivo de um hipermercado ou de um centro comercial.

Por vezes até vivemos. Mas quando isso acontece costumamos estar maravilhosamente distraídos.

domingo, junho 11, 2006

Não resisto...

Afinal, nada como uma boa anedota anti-clerical e inocente, para desatar acílios.

Uma freira repreende, de ameaçador dedo em riste, uma menina do colégio.
-As meninas que se portam mal vão para o inferno!
-E as freiras que se masturbam cheiram mal do dedo!
O que vale é que há um Chico - e um chorinho - para todos os momentos

Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita

Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
E a gente vai tomando que, também, sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu não pretendo provocar
Nem atiçar suas saudades
Mas acontece que não posso me furtar
A lhe contar as novidades

Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

É pirueta pra cavar o ganha-pão
Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu quis até telefonar
Mas a tarifa não tem graça
Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa

Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

Muita careta pra engolir a transacção
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que, também, sem um carinho
Ninguém segura esse rojão

Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco

Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol

Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta

A Marieta manda um beijo para os seus
Um beijo na família, na Cecília e nas crianças
O Francis aproveita pra também mandar lembranças
A todo o pessoal
Adeus

Chico Buarque/Francis Hyme
Anticonstitucionalissimamente
ou
Um governo quê?...


Almoço a cinco sob o sol da Cordoaria. Dois tripeiros, uma alface, dois galegos. A conversa, como as cerejas que apetece trincar só de as sentir penduradas na orelha, passeia-se entre gargalhadas e silêncios, entre o dentro e o fora, as emoções e o mundo. E no meio do tanto por que se passa quase sem se dar por ela, lá vem a pergunta/confirmação quase incrédula, "Mas aqui os homossexuais não podem casar, é?".

Reposta pronta, claro, cá deste lado: que não, que há cerca de um ano se conseguiu mudar o artigo 13 da Constituição, de forma a que a proibição da discriminação incluísse a orientação sexual e não apenas o género, mas que a lei do casamento civil continua anticonstitucionalmente discriminatória. Aliás - e para alguma coisa me deve ter servido brincar com o meu pai às palavras-centopeia - anticonstitucionalissimamente discriminatória. Oiço então a pergunta óbvia, que só os portugueses aparentemente não fazem: "Mas em Portugal não há um governo socialista?".

Pois... é a versão oficial, socialistas, dizem eles. E não sabes tu da missa o terço, meu caro amigo.

sábado, junho 10, 2006

Eu ouvi...

... um miúdo a levar uma galheta, em directo na Antena 1. O padre Acílio garante ao jornalista que não há agressões na Casa do Gaiato. Um leve gaguejar que indicia um desvio do foco de concentração, um som seco que o microfone ainda capta, e a frase continua, até que o jornalista atalhe, depois de meia dúzia de segundos de silenciosa estupefacção, "mas o senhor acabou de dar uma estalada na cara a um miúdo de seis anos, à minha frente!".

A criança, pasme-se, rondava o estaminé de máquinas e microfones onde o santo educador dava a sua entrevista. De facto, que futuro marginal e pecador esperaria este fedelho se não fosse prontamente posto no seu lugar? Que magnífico cristão se perderia, não fosse a pedagogia do senhor Acílio, por padre conhecido, e seus discípulos da obra do padre Américo, pendões da caridade dessa larga multinacional do amor que dá pelo nome de ICAR? É nestas alturas que dou graças ao sEnhor pela não legalização da adopção por casais homossexuais. É o que salva estes meninos, que crescerão bem e catolicamente, conhecerão a culpa e saberão que quem se porta mal merece castigo.

sexta-feira, junho 09, 2006

La sombra del Bandoneón



Vocês desculpem qualquer coisinha, mas provavelmente só quem já algum dia viveu no palco pode compreender até que ponto nada mais resta para dar quando um trabalho nos entra pelos poros e toma conta do coração. Este parece talhado nos céus de Buenos Aires, uma mesma jangada de loucos descendo o Río de la Plata, contra as traiçoeiras marés do tempo que parece encolher na mesma medida em que este nosso menino - de todos mas de duas pessoas em especial, João e Walter -Duende-Mor e Maestro Bandoneón-, vai crescendo e ganhando um rosto e uma forma que nos encanta a todos. É, não se pode dizer menos, uma felicidade estar aqui, no meio desta luz toda com que enchemos a sala de ensaios, tarde após tarde, duendes felizes procurando juntos a verdade que neste espectáculo nos espera.
La Sombra de María



Mi corazón cortado en quatro está -dicen- sepeliado en las quatro troneras de un billar robado. El que ahora llevo puesto se lo compré a una encorazonadora que tenía corazonería de viejo en un paisaje terraja, y vendía corazoncitos tristeros de baraja francesa y de conejo, de tatuaje de marinero con pereza, de rima de canción de cuna y de alcaucil. A mi, me puso uno que es de vista y no lastima, recortado del mandil de un bandoneonista; y con agujita de estaño y un hilo de humo castaño, me lo bordó sobre el vientre. Dijo que eso era lo que convenía para quien, como yo, soy una sombra María, y ya por sombra -solo sombra- seré sombra y seré virgen para siempre.

Lo dijo mientras cosía
y ya me lo acuerdo mal!


Horacio Ferrer

quinta-feira, junho 08, 2006


Palácio de Cristal, 6 de Junho de 2006

No ventre da minha cidade
um caminho que me relembre
um ramo que em três se reparta
um assombro que restolhe.

Um pouco de terra por maná
que não seque
que não suje;
que se entranhe nos sulcos húmidos dos dedos
nos vales das unhas
na sala primeira da pele
um cheiro de vida
um cheiro de estrume e sementeira.

Vidas secas que libertam lugar a um verde que o ocupa
um assombro que restolhe
um ramo que em três se reparta.

No ventre das minhas cidades
um caminho paralelo
um pouco de terra por maná
um trilho que me relembre
que estou inteira.

Uma terra que suja
entranha
espelho de mim
aqui
já.

terça-feira, junho 06, 2006

Chaplin


Fotografia de Rútilo

Pois é, mais um pó monte de pêlos cá de casa. A culpa é da Dalila, que tentou arrancar-lhe os olhos assim que ele entrou em casa da Truta Rodrigues. Nessa altura acabara de ser baptizado Gonçalinho e iniciava a recuperação do estado em que se encontrava quando apareceu desnorteado e aflito na Colina de São Gonçalo.


...


O ser humano sabe mesmo ser o mais reles dos macacos.

domingo, junho 04, 2006

Un bandoneón que mi tristeza tiene escrita...


Sala de ensaios, 3 de Junho de 2006
Fotografia de Manel, som de Walter H.



O que aí vem, nas sábias palavras do nosso encenador, será impróprio para cardíacos.

Porque ese niño no es niño, Jesus! Que es niña: niña ha nacido!

quarta-feira, maio 31, 2006

And the monkeys don't want to be monkeys, they want to be something else. But they're not.




Graças à Violeta, fui encontrar este vídeo maravilhoso, que resume tudo o que penso sobre nós. Certeiro. Claro. A pena de Beaumarchais pôs na boca do jardineiro do Conde Almaviva uma frase que sempre achei demasiado sábia para ser apenas produto da bebedeira: Beber sem ter sede e fazer amor todo o ano são as únicas coisas que distinguem os homens dos outros animais. Agora complementa-se, no meu melancólico espírito, com a lapidar constatação de Ernest Cline: Most monkeys hate each other. This is really what separates them from the other animals. These monkeys hate.

terça-feira, maio 30, 2006

40 anos que passam sobre coisas que teimam em não passar

Recebi esta pérola por e-mail. Não sei de onde vem [embora tenha encontrado uma pista AQUI], sei que me tocou e por isso a partilho aqui. Quino é o cartoonista mais sensível e inteligente que conheço, e esta carta faz-lhe jus. A Quino, a Mafalda e ao mundo em que vivemos.



CARTA DE MIGUELITO A MAFALDA

Lo que le escribió Miguelito a Mafalda despues de tantos años....


Querida Mafalda:

en este día tan especial me acordé de tu cumpleaños...¡ cómo pasa el tiempo! Nacimos en el corazón de un país que soñaba. ¡ cúantas utopías!
¡ cuántos deseos de crecer, de mejorar las cosas !
Nos tocó convivir con un tiempo de hombres creativos: Luther King,Che Guevara, Juan XXIII, John Kennedy;
nos tranmitieron el sentido de la justicia, el valor de los sentimientos,la maravillosa aventura de pensar con la propia cabeza....



Ayer me preguntaba por nuestra amiga Libertad, aquella pequeñita que un día encontraste en una playa, no me acuerdo si era Santa Teresita o Mar de Tuyu, me acuerdo todavía cuando la presentaste a tus padres....Era vivaracha y quemadita por el sol de febrero.

¿ dónde vive Libertad? ¿ es verdad que la mataron durante la dictadura? Dicen que la torturaron y su cuerpo despareció en el Río de la Plata.....

Me cuesta pensar que se murieron sus sueños. ¿ y si vive ? ¿estará filosofando sobre la fragilidad de las cosas y el sentido de la vida?



¿ Qué fue de Susanita? ¿ se casó?
¿ Pudo realizar su vocación de ser madre?
La imagino viviendo en alguna ciudad de provincia, paseando del brazo del marido (un hombre bajo y calvo) en una tarde de verano, contenta con sus hijos y cuidando el primer nieto, realizada como tantas comunes mujeres...



Supe de Manolito,que perdió sus ahorros durante el corralito y no soportó tanta crisis. Los últimos días lo vieron cabizbajo, nurmurando palabras incoherentes, abandonado como un mendigo en una estación de trenes, triste y abatido como tantos........



Sé que Felipe vive en La Habana, que probó con el cine, que tiene un taxi y habla a los turistas de Fidel y de la Revolución con el mismo entusiasmo que cuando vivía en Buenos Aires....



A Guille, tu hermano, lo escuché tocar, hace poco,en la Scala de Milán. Vive en Ginebra, nunca se arrepiente de haber emigrado en los últimos años de Alfonsín,me contó que es feliz con su nueva pareja.....


Y vos, querida amiga, ¿cómo estás? Hace tanto tiempo que no tengo noticias tuyas. Sé,por otros que sigues escuchando la radio, que lees los diarios del mundo, que te duele el Irak como te dolía Vietnam, sé que trabajas para la FAO por los pueblos del hambre, que estás indignada por la prepotencia de Bush.
Me llegó tu pedido de juntar medicinas para los Médicos sin Fronteras, sé que siguen las reuniones en tu casa de París,que estás confundida, inquieta y preocupada por el futuro del mundo.....

En fin, Mafalda, sé lo suficiente como para saber que seguís viva, viva en el alma, niña como siempre...




De parte mía sigo escribiendo siempre, renegando porque me falta tiempo; creyendo como siempre, en el valor de la sinceridad, perdiendo oportunidades por manifestar mis ideas. Algunos días estoy triste y deprimido, pero puede siempre más la alegría que la tristeza...

El mundo no mejoró mucho desde la época en que vivíamos juntos en nuestra patria. A veces, cundo miro el globo terráqueo, encuentro tu mirada, pienso en todos aquellos que lo miran como vos, en los ojos de los que protestan, de los que no se conforman, y de los que viven en la atmósfera del optimismo y de la justicia....

Esos ojos, junto a los míos, te desean un buen día, querida amiga, por otros cuarenta años tan intensos y jóvenes como los que has vivido.

Un beso grande de tu amigo que te quiere como siempre.

MIGUELITO


Adenda: com a ajuda da Truta Rodrigues e do Esteban, cheguei AQUI; o autor desta belíssima carta chama-se Daniel Balditarra e eu agradeço-lhe do fundo do coração cada lágrima agri-doce.

segunda-feira, maio 29, 2006

Mas afinal, o que é que faz falta?

Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão te morde a canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta

O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder a malta
O que faz falta


José Afonso
Cuidado, eles andam aí...


Cartoon de Jackie Fleming, visto n'O Feminismo...

sexta-feira, maio 26, 2006

Ser adulto, o que é?

Porque afinal, não há maioridade mais autêntica do que aquela que assume a vida com a simplicidade da infância.


Não podia concordar mais com a Ana. Não há nada mais infantilóide que os estéreis jogos dos adultos.

Um blog a descobrir, dia após dia...
Escamas de truta, corpo e alma de mulher


Truta Azul
Fotografia de Rodrigues


Sabes que bem te compreendo, por razões de "dimensão" diferente, mas compreendo-te. A facilidade com que as pessoas [des]apreciam as particularidades físicas umas das outras é das características mais repulsivas do ser humano. Se eu emagrecesse ao ritmo a que, com ar compungido, me dizem que "mas tu comes? estás cada vez mais magrinha" [o "inho" aqui é de uma importância lapidar, claro], já estava a trabalhar como recepcionista na Capela dos Ossos. Mas tooooda a gente a quem eu não dou confiança acha que tem confiança para fazer apreciações do género. Uma vez respondi na mesma moeda ["Pois, tenho perdido peso, mas já percebi que foste tu quem o encontrou"], e a pessoa em questão telefonou-me no dia seguinte a pedir desculpa, porque realmente era uma falta de educação fazer apreciações daquele género. Desde então é assim que respondo a toda a gente. Se podem apreciar o meu baixo peso [claro, fecha-se a boca face à condição física propriamente dita, aos gémeos e abdominais definidos, eheheh, à capacidade de resistência, etc, que isso não dá jeito nenhum para rebaixar uma pessoa], dizia, se me podem apreciar nesses termos eu também posso apreciar o desleixo, as barrigas, as gorduras. E olha que resulta. Por vezes não há como provar do próprio veneno e perceber que gordos, magros, pretos, amarelos, de pele limpa, com sardas ou com psoríase, somos iguais e sentimos igual. Em forma, é simples falta de educação. Em conteúdo, é falta de humanidade e de consciência. "Olhem para mim como sendo uma pessoa", dizes tu. É realmente nessa fronteira que toda a gente se perde. E não é preciso ter menos um braço ou andar de cadeira de rodas para se sentir isso. A coisificação do outro é um recurso constante das mentes mais pequenas.

Mas olha lá, tu tens psoríase?! E eu que sempre pensei que fossem os vestígios das escamas de truta, caramba. Vou ter de rever a maneira como te olho...

E sabes, é que para além da transparência e da psoríase, és linda de morrer, inteligente, divertida, talentosa, generosa. É natural que haja pessoas que quando olham para ti façam questão de ver apenas a vermelhidão nos braços. Sentem-se melhor na sua mediocridade. E é só isso, a atitude mesquinha mais velha deste mundo humano, o indicador apontado. Oh, come on, let´s see some stoning!

terça-feira, maio 23, 2006

Marca



Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem pra seguir viagem
Quando a noite vem

E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega, mas não lava
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina, salta e te ilumina
Quando a noite vem

E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta, morta de cansaço
Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas mas no fundo gostas
Quando a noite vem

Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes


Chico Buarque e Ruy Guerra


23 de Maio de 2006
Fotografias - e pé - de Manel

segunda-feira, maio 22, 2006

Quem és tu? O que fazes aqui?



Sérgio Tréfaut agarrou numa câmara e percorreu a cidade paralela que vive no estrangeiro. Com a sua câmara, Sérgio produziu um olhar singular sobre essa(s) cidade(s) no coração de Lisboa, não uma peça jornalística, mas uma clara, aberta e inteligente visão sobre gente, lugares, presença e ausência, nuvens e raízes. Lisboetas é um precioso documentário sobre o mundo que desaguou em Lisboa na última década, e que vive as origens e o desenraízamento, a saudade e a esperança, os bloqueios burocráticos e o sol, o todo o mundo e o nenhures que passam a defini-los na sua condição de imigrantes.

O filme constrói-se com respiração pausada, com tempo para olhar - e integrar que, como já se disse a propósito, ali os estrangeiros somos nós. As mais diversas comunidades, desde os tão presentes brasileiros aos discretos sikhs, do ex-soviético, ou seja, ucraniano, russo, lituano, moldavo e tudo o mais, ao paquistanês que à beira-rio assegura que Paquistão ou Marrocos, é tudo a mesma coisa. As cenas instalam-se e revelam-se calmamente, complementando-se num fresco. O SEF, burocrático e frio, onde os olhares perdidos se multiplicam, como que de crianças pequenas ouvindo o palavrear ininteligível dos adultos, face a funcionários que teimam em ignorar as, por vezes graves, dificuldades na compreensão do português, ainda mais o burocrático; a imigrante de leste que louva ao telefone a vida que conseguiu em Portugal, enquanto deplora o estado da educação, "muito fraca, um verdadeiro problema..."; a enfermeira dos Médicos do Mundo que pergunta ao ucraniano "Há quanto tempo está em Angola?"; o indiano que envia todo o dinheiro para a família, que é ignorado em peso pelas esplanadas das Portas de Santo Antão, oferecendo as suas rosas a cada uma das mesas excepto àquela onde está um casal de homens; o destino do imigrante nigeriano, sempre a trabalhar por mais sete anos e sempre perdendo a sua prometida Raquel, louvado seja o sEnhor; a aula de português onde se conjugam verbos de praticidade imediata, eu fui aldrabado, a minha mulher foi aldrabada, os portugueses são aldrabados, e às vezes aldrabões. Um não acabar de vida difícil mas bela alagando o écran. Uma longa cena, a meio do filme, pontua a epopeia poética em movimento, uma loira e imigrante mãe, no banco da cauda do eléctrico, com o seu bebé adormecido nos braços, o rosto parecendo querer esconder uma felicidade que é só dela e que naquele momento se revela à criança portuguesa que a encara e sorri, o longo silêncio abraçando a sala de cinema naquela viagem e naquele regaço, um longo e parado plano, e pur, si muove, movimenta-se de tanta vida que ali vai sobre os carris.

Lisboetas é um filme que nos convida a entrar no mundo, ainda que o mundo já esteja cá dentro. Quem sou eu, mãe?; -Saberás a resposta quando regressares a casa.

domingo, maio 21, 2006

De ouro



Os globos de teatro deste ano até parece que foram decididos por gente que percebe do assunto... A grande Luísa Cruz, João Grosso e Fernanda Lapa são os premiados, e valem bem mais que os prémios... mas é de celebrar, caramba!
O que eu gosto de gente boa que não se cala!

"Espero que este espectáculo [os globos da sic] seja a prova de que se pode reabrir um espaço cultural como este sem usar a violência contra os animais."[Heitor Lourenço, há pouco, à entrada patetico-hollywoodesca do Campo Pequeno, citado de memória-curta]

Nestes ares lamacentos em que somos todos portugueses toureiros e fadistas a caminho de Fátima, não tem preço a voz das poucas caras do sistema com uns dedos de testa e sentido de responsabilidade. Grande Heitor!
Aforismo rodoviário atrás de um autocarro no meio da rua

Um condutor cívico até de marcha atrás numa rua de sentido único pára na passadeira.

sábado, maio 20, 2006

Eu


materiais de desenho made in South Park
autoria da obra: Truta Laranja


Sempre de boca aberta, como um convite. Ou entra mosca...
E pronto, lá fizeram "a mais bela bandeira", dizem eles...

Juntaram as madrinhas todas, perdão, as mulheres que não jogam futebol, e lá foram todos contentes apoiar os homens que vão para a guerra, perdão, para o campeonato. Dir-se-ia que são todos os homens do país que vão jogar, única razão que me parece plausível para fazer uma bandeira só de garinas. Apoiemos os nossos homens com uma mão enquanto puxamos a malha das meias com a outra. Mantenhamos a boca aberta e as pernas fechadas enquanto eles andam em campanha pela pátria a dar cabo do canastro aos pretos, aos brasileiros, aos alemães, aos franceses, porque são os maiores, carago, os nossos homens. Mulher na retaguarda, mulher na televisão, mulher contentinha, olé!

Não contei as senhoras.

sexta-feira, maio 19, 2006

Sui generis

Há coisa de um ano o Chefe Hélio Loureiro preparou um jantar de imprensa para apresentação do espectáculo Ubu(s), de cujo [maravilhoso] elenco fiz parte. A partir das especialidades servidas por Dona Ubu na segunda cena da peça, foi engraçado ver desfilar pelas mesas do Hotel Porto Palácio uma ementa que constava, entre outras iguarias, de costeletas de murgalho, paté de cão ou couve-flor com merdra. Ora, este ano fomos todos convidados para voltar ao Porto Palácio para o lançamento de dois livros de cozinha do Chefe Loureiro: "Coração Saudável" e "Crianças e Jovens". O que imaginávamos ser um convívio-banquete em que íamos comer à fartazana revelou-se, afinal, uma conferência com os palradores no palco e o público sentado. Até aqui, tudo bem, uma seca, mas tudo normal. A coisa toma contornos patéticos quando começa a falar a senhora Beatriz Pacheco Pereira, que começa por afiançar que não viu os livros senão no momento em que chegou à apresentação, para depois falar na "publicidade que nos obriga a comer mal" e noutra grande razão para a má dieta dos portugueses: as mulheres que deixaram de cozinhar. Digo eu, ainda bem que não havia petiscos, ainda me saía algum acepipe pela boca fora, o que não seria bonito de se ver num hotel com tanta classe. A senhora não se desviou do caminho nem um milímetro: o livro "para as criancinhas" era, naturalmente, direccionado para as mães [mulheres à cozinha, harmonia bonitinha!]- desgraçados dos que vivem só com o pai, que morrem à fome ou de enfartamento de telepizza. E, como cereja no topo do bolo, a dita senhora confessa-nos que é uma cozinheira sui generis: é uma cozinheira que não gosta de cozinhar. Mais precisamente, e isto nas suas próprias palavras, é uma cozinheira que não cozinha. Assim uma espécie de pescador que em vez de cana tem carabina e anda às perdizes e não ao robalo. A senhora tem coragem, pensei eu, ao assumir que não é uma mulher como deve ser, já que não cozinha.

Mas depois lembrei-me da Susaninha e do Quino... é que uma coisa é ser mulher, outra coisa é ser senhora.

terça-feira, maio 16, 2006

As mãos


Paula Rego, Nursery Rhymes
Rock-a-bye, Baby
, 1994


Em Lisboa, sem carro, que ficou no Porto em descanso do trânsito da Constituição. Ensaio em Alcântara e eu de volta ao novo velho 56 que há onze anos me levava à faculdade ainda antes do sol nascer. Para quem vive nos prédios que substituíram o barracame do Casal Ventoso, o 56 é o transporte local, de casa para a tasca ou para o supermercado. No banco à minha frente sentam-se uma avó e um neto. A avó tem, à primeira vista, um aspecto quase grotesco, os dentes tortos e afastados, as feições grosseiras, o corpo descuidado, as mãos inchadas. O neto é, enquanto acabo a chamada para o meu desterrado intoxicado [onde é que já se viu, digerir mal o sushi?!...], apenas um reguila de boné que fala demasiado alto. Desligo. A conversa vai animada. Lápis de cor, papéis e borrachas, o delicioso mundo da papelaria infantil que me enchia de brilho os olhos quando tinha aquela idade. O puto afinal é giro que se farta, inteligente, encara os adultos, inquiridor, fala que se desunha e observa constantemente tudo o que o rodeia. A avó dá-lhe uma palmadinha na mão quando ele mete o dedo no nariz, Tira a mão daí, já te disse, porque é que estás com o dedo no nariz? Porque estou a tirar um macaco, anuncia o petiz, alto e bom som, com tom de quem acha a pergunta ridícula e a resposta óbvia. Enquanto procura na mala os lenços de papel, a avó estala numa gargalhada luminosa que lhe enche o rosto da beleza feliz do amor, e logo o transforma, num ápice. E um feio boneco de uma fraca revista dá lugar a uma deslumbrante gravura de Paula Rego. Limpa-lhe o nariz, sempre com o rosto claro de riso, e logo os braços se sobrepõem, na sua maravilhosa desproporção, e os dedos se entrelaçam, naturalmente, sem um olhar, sem uma hesitação. Mão de avó e mão de neto, naquele autocarro aquelas duas jovens mãos sapudas marcaram a raios de sol a minha tarde de quase verão.