a Gustave Flaubert
Nohant, 14 de Setembro, 1871
Mas que queres, que eu deixe de amar? Queres que diga que me enganei toda a vida, que a humanidade é desprezível, odiosa, que assim o foi sempre e sempre será assim? E censuras a minha dor como uma fraqueza, como o pueril remorso de uma ilusão perdida? Afirmas que o povo sempre foi feroz, o padre sempre hipócrita, o burguês sempre indolente, o soldado sempre salteador, o camponês sempre estúpido? Dizes sabê-lo desde a tua juventude e rejubilas de nunca de tal teres duvidado, porque assim a idade madura não te trouxe qualquer decepção: nunca foste jovem, portanto. Ah! Distinguimo-nos bem, pois eu nunca deixei de o ser, se ser jovem não é mais que amar sempre!
Como propões tu, então, que me isole dos meus semelhantes, dos meus compatriotas, da minha raça, da grande família no seio da qual a minha família particular mais não é que uma espiga na seara terrestre? E se (…), como tu dizes, pudéssemos viver para alguns seres privilegiados, abstraindo-nos de todos os outros! - Mas é impossível e a tua sólida razão acomoda-se à mais irrealizável das utopias. Em que Éden, em que fantástico El Dorado esconderás tu a tua família, o teu pequeno grupo de amigos, a tua íntima felicidade (…)? Se queres ser feliz por apenas alguns, é preciso que esses alguns, os favoritos dos teu coração, sejam felizes por eles mesmos. Poderão eles sê-lo? Podes tu assegurar-lhes a mínima segurança?
[…]
No entanto, viver feliz em família, apesar de tudo, é sem dúvida um bem relativo, a única consolação que podemos e queremos experimentar. Mas mesmo supondo que o mal exterior não penetre em nossas casas, o que não é de todo possível, sabe-lo bem, eu não saberia admitir que pudéssemos tomar partido de quem pratica o mal público.
Tudo isto era previsível… Sim, certamente, previ-o tão bem como quem quer que seja! Vi crescer a tempestade, assisti, como todos aqueles que não vivem sem reflexões, aos sensíveis avanços do cataclismo. Será uma consolação ver contorcer-se em sofrimento o doente de cuja doença conhecemos a fundo as origens? (…)
Não, não, não nos isolemos, não rompamos as ligações do sangue, não mal-digamos, não desprezemos a própria espécie. A humanidade não é uma palavra vã. A nossa vida é feita de amor e deixar de amar é deixar de viver.
O povo, dizes tu! O povo és tu e eu, defender-nos-íamos em vão. Não existem duas raças, a distinção entre classes não estabelece mais do que desigualdades relativas e o mais do tempo ilusórias. (…) Os primeiros homens foram caçadores e pastores, depois lavradores e soldados. A pilhagem de sucesso coroada fez nascer as primeiras distinções sociais. Não existe, talvez, um único título que não tenha sido criado sobre sangue humano. (…) O povo sempre feroz, dizes tu; eu digo: A nobreza sempre selvagem!
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Mas eu quero seguir-te e perguntar-te sobre o quê se constrói esta distinção. É na maior ou menor educação? O limite não é aferível. Se vês letrados e sábios no topo da burguesia; se vês selvagens e brutos no mais baixo do proletariado, não serás menos representado pela multidão dos intermédios, aqui proletários inteligentes e sábios, ali burgueses que não são nem sábios nem inteligentes. A maior parte dos cidadãos civilizados data de ontem e muitos dos que sabem ler e escrever têm ainda pai e mãe que penosamente assinam o próprio nome.
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Os homens não estão por cima ou debaixo uns dos outros senão pelo que possuem de razão e de moralidade. A instrução que apenas desenvolve a sensualidade egoísta não vale a ignorância do proletariado honesto por instinto e por hábito. Esta instrução obrigatória que desejamos todos por respeito pelo direito humano não é, portanto, uma panaceia da qual deva exagerar-se os milagres. (…) Ela será, como todas as coisas de que os homens abusam, o veneno e o antídoto. Encontrar um remédio infalível para os nossos males é ilusório. É preciso que todos busquemos, dia-a-dia, por todos os meios.
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Que importam tal ou tal grupos de homens, tal nome próprio tornado bandeira, tais personalidades tornadas propaganda? Apenas conheço sábios e tolos, inocentes ou culpados. Não me pergunto onde estão os meus amigos e os meus inimigos. Estão para onde a tormenta os atirou. Aqueles que merecem que eu os ame e que não vêem pelos meus olhos não me são menos caros. A repreensão irreflectida daqueles que me abandonam não me faz considerá-los como inimigos. Toda a amizade injustamente retirada repousa intacta no coração que não mereceu o ultraje. Esse coração é superior ao amor-próprio, sabe aguardar o despertar da justiça e da afeição.
[…]
As grandezas passadas não têm lugar a tomar na história dos homens. São feitas apenas de reis que exploravam os povos, são feitas apenas de povos explorados que consentiram na sua própria humilhação.
Eis a razão pela qual estamos doentes e a minha alma se quebra.
[…]
A igualdade é algo que não se impõe, é uma livre planta que apenas cresce sobre os terrenos férteis no ar salubre. Ela não cria raízes sobre as barricadas, sabemo-lo agora! Ela é imediatamente esmagada aos pés do vencedor, qualquer que ele seja. Tenhamos o ensejo de estabelecê-la nos nossos usos, a vontade de a consagrar nas nossas ideias. (…)
[…]
E tu, amigo, tu queres que eu veja estas coisas com uma estóica indiferença! Queres que diga: O homem é assim feito; o crime é a sua expressão, a infâmia a sua natureza?
Não, cem vezes não. A humanidade indigna-se em mim e comigo. Esta indignação que é uma das formas mais apaixonadas do amor, não é de dissimular nem de tentar esconder.
George Sand, [carta publicada, sem indicação de destinatário, no Le Temps de 3 de Outubro de 1871, sob o título "Lettre a un ami"]
Para a leitura integral da carta - e críticas à tradução - ver aqui.
Para a leitura integral da carta - e críticas à tradução - ver aqui.
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