Durante o século XVIII um número crescente de pensadores foi presumindo que o caminho para o progresso era a destilação. O princípio era muito simples: pegar em tudo o que fora escrito e dito, expurgá-lo de erros, incorrecções e falsidades, e dessa massa extrair a verdade purificada. Num dos livros [proibidos] que mais venderam à época — O Ano 2440, de Louis-Sébastien Mercier — acreditava-se que assim seria possível resumir todo o direito num livrinho pequeno e preservar todo o efectivo conhecimento do mundo numa estante de livros apenas.
Muito do século seguinte viveu sob esta ideia, sempre na busca de uma lei fundamental que permitisse interpretar tudo à nossa volta. Vejamos Darwin: "Toda a evolução das espécies se dá por selecção natural." Ou Marx: "Toda a história da humanidade é a história da luta de classes." O que ambas as frases, de dois autores tão diferentes, têm em comum é este mesmo processo pelo qual se tenta destilar o todo através de uma lei fundamental. O nome que esse pensamento dava a si mesmo era "científico", com mais ou menos propriedade. No século XIX, de Comte a Zola a Seurat a Engels e Kardec, havia humanidades científicas, romances científicos, pintura científica, socialismo científico e até espiritismo científico.
Porém: a destilação não é a única forma de produzir ideias. Há a fermentação. O monoteísmo é destilação; mas o politeísmo é fermentação. Dentro do cristianismo, o protestantismo é mais destilação e o catolicismo mais fermentação. O minimalismo, evidentemente, é destilação; a arte pop é fermentação. Arrumar a mesa é destilação. Espalhar os papéis é fermentação.
Há épocas de destilação e de fermentação. O pós-guerra era destilação, com o seu mundo dividido em dois blocos e o emblema tecnocultural da "televisão para toda a família". Mas a nossa época, com o seu mundo desorganizado multipolarmente e representado pela internet, com a sua intersecção permanente de sítios, blogues e páginas, e sobretudo com as suas camadas caóticas de comentários sobre comentários e réplicas sobre tréplicas — é fermentação.
Isto deixa confundidos e mesmo irritados os intelectuais, que são naturalmente favoráveis às épocas de destilação, com o seu ambiente controlado, as suas opções reduzidas, a sua cerebralidade. As épocas de fermentação, de contornos pouco definidos, deixam-nos um pouco a nu. Na verdade, eles sabem tão pouco do que se está a passar como qualquer outra pessoa. Pior ainda: isso nota-se.
Em particular, os cronistas, os editorialistas e os políticos sentem falta de um mundo decifrável, um mundo onde fosse possível transportarem eles a chave que explicaria a realidade ao resto da humanidade. Como quem diz: viram, meu povo, como tudo se resume — ao mercado, à luta de classes, ao choque de civilizações, à globalização, etc? A ansiedade deles — a nossa ansiedade — é também uma questão de poder, porque organização é poder. Informação a mais para todos não é poder para ninguém em particular.
Há aqui, diria eu, um pouco de neurose. Diz-se que não há pior coisa para dizer a um neurótico do que "tem calma". Mas também não há coisa que ele precise mais de ouvir. Se o panorama é confuso, mais uma razão para olhar com atenção. Se ninguém nos sabe explicar o que se passa, mais interessante ainda deve ser. Se a nossa época é de fermentação, tanto melhor: aproveitem enquanto dura.
Rui Tavares, no Público de 24 de Dezembro de 2008. Nem um ponto a acrescentar. Tenciono apenas continuar a aproveitar.
sábado, dezembro 27, 2008
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