Li em tempos uma frase que nunca me largou a memória. Não sei precisar se é budista ou de outro universo paralelo, nem sequer se é de autor nomeado ou perdido nas letras do mundo. Sei que de lhe recorrer tantas vezes, cada vez menos preciso de ma relembrar. Cá está de como a natureza de cada um é algo bastante mais complexo e dúctil do que um amontoado de calhaus mais ou menos imutáveis, bastiões da real existência de uma qualquer identidade. Reza o seguinte, muito simplesmente, ai mandem-me calar, tanta converseta para dizer uma coisa tão simples, pois, finalmente, cá vai: guardar rancor é como tomar veneno e esperar que o outro morra.
Hoje é daquelas noites. Umas cervejas, uns deambulares pelas ruas da baixa, tantas personagens da minha vida mais e menos próxima, do Porto e de Lisboa, cruzando-se nos mesmos espaços, nos mesmos entrelaços, e pronto, chega-se a um quarto de hotel, tira-se os restos de maquilhagem do espectáculo e o que sobra para fazer? Pois, filosofar. E passar revista a alguns arquivos.
Há pessoas que perdi. Há uma pessoa em particular que perdi, ou que, no meu silêncio, expulsei, bem segura das minhas razões. Ainda as sei, as razões. E continuo a senti-las razoáveis, mas também as razões do outro lado para a sua irrazoabilidade (esta porra desta palavra nem deve existir, mas é a única que me serve aqui) me surgem hoje, sete ou oito anos depois, em diferentes cores. Continuo a lidar mal com a agressão, mas compreendo hoje que alguma dela vem de pontos que nem sabemos precisar, e que o mal é sempre o mesmo, não pensar, não pensar antes, mas também - e se calhar, sobretudo - não pensar depois do mal estar feito. O mal é a negação, não é o escuro nem o claro, é a venda que tantas vezes preferimos a ambos. Eu, e não me custa dizer isto, talvez tenha até um orgulho perverso, na dor tive sempre uma tendência grande para descarregar em mim mesma, na misantropia, na revolta e até numa semi-consciente auto-destruição, moderada, sim, mas chamemos os bois pelos nomes. Talvez por isso a agressão, em todas as suas formas, me repugne tanto. Mas em situações-limite, também eu já dei por mim transformada em bicho, quem sou eu para falar?
Mas há algo no rancor que se faz inelutável. Como fugir de uma reacção que nada mais é do que humana, quando alguém nos fere e sangra, sobretudo quando sentimos que esse alguém pode parar mas não quer? Há uma dignidade que se perde na tortura e que o rancor parece querer repôr, qual dulcamara de elixir na mão, milagre para as perdas, para as almas destruídas, para os afectos violentados, para os abcessos e para as dores de estômago. É um logro, e nem sequer é vinho do Porto, é veneno, nem por um momento deixa de ser veneno. Porque é, será sempre, uma forma de submissão. Uma forma de reconhecer o poder do agressor.
Lembro-me agora daquela história brilhante do sapo que transporta o escorpião nas costas e nunca consegue chegar à outra margem. Porque me picaste?, pergunta. Porque é a minha natureza, responde o escorpião. Também acredito nesta história, não tenho qualquer simpatia pelo senhor Skinner, que fique bem claro, nem pelo original nem pelo dos Simpsons. Mas passe a sua condição de fábula, a verdade é que somos, nós, gente, algo mais que escorpiões. O nosso cérebro tem a imensa capacidade de criar ferramentas, gruas, retro-escavadoras, o que for, para mover os toneláveis calhaus aparentemente inamovíveis. E até para perceber quantos deles são feitos do mais leve cartão, quantos deles não passam sequer de hologramas. Recusar o veneno do rancor pode ser, sim, um acto de amor. Mas pode ser também um acto de autonomia, de dignidade, de poder sobre si mesmo. E é também colocar o pé no arame, e assumir para si a responsabilidade de, sempre que necessário, conferir a regra de três simples estabelecida entre a inteligência e a hipocrisia.
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2 comentários:
aprendermos a amarmo-nos e a conhecermo-nos, para sabermos livrarmo-nos sem medo -disfarçado de remorso-, dos presentes envenenados que nos abandonam à porta de entrada.
mil beijos
outros tantos de volta. :)
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