quinta-feira, fevereiro 28, 2008

the fourth revelation

Em menos de três horas, tudo o que o cinema pode ser. Teatro, literatura, pintura, ópera, disco conceptual, fotografia, psicologia, sociologia, política. De vez em quando há um filme que me recorda essa veia essencial: o cinema pode ser o que quiser, sem ser nunca um mero shaker de referências, pode ser uma experiência visual, auditiva, táctil, filosófica, mental, arrasadora, perturbante, negra e reveladora. Haverá sangue é tudo isto, é cinema. Desde os longos minutos iniciais despojados de palavras, fazendo, entre as montanhas e a solitária mina, um círculo completo em abertura de ópera onde as cordas chiam desarmoniosamente como sirenes de usina e os temas nos são apresentados pelo sopro, pelas mãos, pelo corpo de Daniel Day-Lewis. Não será por acaso que as primeiras palavras que ouvimos são as da venda da banha da cobra, a consistência espessa do dinheiro fácil apresentado como poesia, como os bíblicos manás. Correcção, a primeira palavra que ouvimos é o "no!" de Plainview, a negativa que nos assegura que o filme não acabará antes de começar porque tal personagem nunca permitiria que assim fosse. A figura de Plainview é o seu próprio nome, imune a qualquer contradição por essa mesma limpidez, por essa clareza. Todos os mistérios da sua história estão escondidos nas palavras rudes, no queixo tenso e malicioso, nos olhos que se negam à transparência (nota de groupie: quem viu aquele príncipe que recebeu o óscar na segunda-feira, quem vê este portento de violência e desumana humanidade, ai...). Os fios dos seus mistérios parecem surgir aqui e ali, mas depressa se revelam fios soltos, que só por estarem soltos nos são concedidos. O resto do elenco é magnífico, a começar por Paul Dano (este é outro daqueles irritantes, sempre gostava de saber o que põem a estes miúdos na sopa). A música abre espaços, constrói paredes, divide actos, é cenário e luz. A família é uma fraude, e no entanto o pathos familiar percorre tudo. A fé constrói-se a empréstimos com juros. A meio do filme as lágrimas começaram a sair silenciosamente, tal era a bolha que se me tinha formado entretanto no peito. Já mais para diante, tive de pigarrear um bocadinho graças à secura gentilmente cedida pelo ar condicionado da sala, e juro que me surpreendi por a minha tosse não ter ecoado nos salões marmoreados da xanadú finalmente alcançada (sim, anda por aqui o fantasma de Charles Foster Kane, parece-me). E no maravilhoso final, tive de me conter no riso, não fossem os meus silenciosos companheiros de sala achar que tinham uma psicopata entre eles, mas dêem -me um slapstick destes, à antiga, e não se espantem que reaja quase como se estivesse a ver os Marx a espetarem tartes na cara uns dos outros, blood or no blood. Paul Thomas Anderson tem cinco filmes até agora. Para mim, que não vi Hard Eight, There will be blood ficará registado como A Quarta Revelação. Aguardo a próxima, de mãos postas. E espero os anos que for preciso.


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