Em menos de três horas, tudo o que o cinema pode ser. Teatro, literatura, pintura, ópera, disco conceptual, fotografia, psicologia, sociologia, política. De vez em quando há um filme que me recorda essa veia essencial: o cinema pode ser o que quiser, sem ser nunca um mero shaker de referências, pode ser uma experiência visual, auditiva, táctil, filosófica, mental, arrasadora, perturbante, negra e reveladora. Haverá sangue é tudo isto, é cinema. Desde os longos minutos iniciais despojados de palavras, fazendo, entre as montanhas e a solitária mina, um círculo completo em abertura de ópera onde as cordas chiam desarmoniosamente como sirenes de usina e os temas nos são apresentados pelo sopro, pelas mãos, pelo corpo de Daniel Day-Lewis. Não será por acaso que as primeiras palavras que ouvimos são as da venda da banha da cobra, a consistência espessa do dinheiro fácil apresentado como poesia, como os bíblicos manás. Correcção, a primeira palavra que ouvimos é o "no!" de Plainview, a negativa que nos assegura que o filme não acabará antes de começar porque tal personagem nunca permitiria que assim fosse. A figura de Plainview é o seu próprio nome, imune a qualquer contradição por essa mesma limpidez, por essa clareza. Todos os mistérios da sua história estão escondidos nas palavras rudes, no queixo tenso e malicioso, nos olhos que se negam à transparência (nota de groupie: quem viu aquele príncipe que recebeu o óscar na segunda-feira, quem vê este portento de violência e desumana humanidade, ai...). Os fios dos seus mistérios parecem surgir aqui e ali, mas depressa se revelam fios soltos, que só por estarem soltos nos são concedidos. O resto do elenco é magnífico, a começar por Paul Dano (este é outro daqueles irritantes, sempre gostava de saber o que põem a estes miúdos na sopa). A música abre espaços, constrói paredes, divide actos, é cenário e luz. A família é uma fraude, e no entanto o pathos familiar percorre tudo. A fé constrói-se a empréstimos com juros. A meio do filme as lágrimas começaram a sair silenciosamente, tal era a bolha que se me tinha formado entretanto no peito. Já mais para diante, tive de pigarrear um bocadinho graças à secura gentilmente cedida pelo ar condicionado da sala, e juro que me surpreendi por a minha tosse não ter ecoado nos salões marmoreados da xanadú finalmente alcançada (sim, anda por aqui o fantasma de Charles Foster Kane, parece-me). E no maravilhoso final, tive de me conter no riso, não fossem os meus silenciosos companheiros de sala achar que tinham uma psicopata entre eles, mas dêem -me um slapstick destes, à antiga, e não se espantem que reaja quase como se estivesse a ver os Marx a espetarem tartes na cara uns dos outros, blood or no blood. Paul Thomas Anderson tem cinco filmes até agora. Para mim, que não vi Hard Eight, There will be blood ficará registado como A Quarta Revelação. Aguardo a próxima, de mãos postas. E espero os anos que for preciso.
quinta-feira, fevereiro 28, 2008
segunda-feira, fevereiro 25, 2008
os amigos
Entram pela tua vida e deixam-na de pantanas. E tu agradeces. Habituei-me a ouvir, à boa maneira portuguesa, que os bons amigos se contam pelos dedos de uma mão. Habituei-me, ou antes, a criança que eu fui habituou-se a acreditar que se assim não fosse, se os dedos de uma, duas mãos, não chegassem para os contar, era porque não eram amigos realmente.
Que absoluta estupidez. Que fado tão coxo.
Não tenho mãos, nem pés que cheguem. Talvez porque em boa hora entrou na minha vida um marinheiro chamado Corto Maltese. Ensinou-me a desenhar na palma da mão a minha própria linha da vida. E ensinou-me também que os amigos, os amigos a sério, aqueles a quem a palavra amor não mete medo porque é soletrada com confiança, carinho e respeito, se fazem até no inferno. Ou sobretudo no inferno. A alguns disse hoje até amanhã, na chegada do Alfa, a outros deixei no degredo e disse até para a semana, ao meu regresso.
É boa, esta sensação de ser um freak de quem nascem todos os dias mais mãos e mais pés cheios de dedos por onde contar as pessoas que me enchem o coração. Não dedos de ar, mas dedos de carne e osso e sangue e polpa.
Que absoluta estupidez. Que fado tão coxo.
Não tenho mãos, nem pés que cheguem. Talvez porque em boa hora entrou na minha vida um marinheiro chamado Corto Maltese. Ensinou-me a desenhar na palma da mão a minha própria linha da vida. E ensinou-me também que os amigos, os amigos a sério, aqueles a quem a palavra amor não mete medo porque é soletrada com confiança, carinho e respeito, se fazem até no inferno. Ou sobretudo no inferno. A alguns disse hoje até amanhã, na chegada do Alfa, a outros deixei no degredo e disse até para a semana, ao meu regresso.
É boa, esta sensação de ser um freak de quem nascem todos os dias mais mãos e mais pés cheios de dedos por onde contar as pessoas que me enchem o coração. Não dedos de ar, mas dedos de carne e osso e sangue e polpa.
domingo, fevereiro 24, 2008
e pela tardinha, tira-se o último café...
É mais um coro que me deixará saudades. Um pequeno coro de câmara que sustenta duas horas e meia de maratona de palavras e energias. Alguns dos melhores momentos da minha vida têm passado por mim em cima de palcos, a fazer música em conjunto, ou a fazer teatro com orquestra. Até já, malta. E obrigada.
sábado, fevereiro 23, 2008
o suicida
Receava tudo, temia tudo. Ser apanhado na curva, expor-se. Magoar a sua consciência por ter magoado o outro, com um bocejo a despropósito, um olhar demasiado duro ou demasiado promissor ou demasiado indiferente. Não se pode viver assim, há que tomar controlo. Vigiou emoção por emoção, músculo por músculo, até que a repressão se fez segunda natureza, até que toda a manifestação espontânea do corpo e do rosto passou a filtrar-se e reter-se na fonte, em malhas de aço que reclamavam a sua autoridade. Um dia percebeu que o esforço era esmagador para um único raciocínio. Um colossal peso de emoções estagnadas na represa de uma solitária mente. Surpreendeu-se com o ódio por que se deixou tomar. Um ódio à razão de tudo, ao outro, que pode sofrer, ao outro, que pode julgar.
Já dizia um sábio saxão que um homicida é apenas um suicida extrovertido.
Já dizia um sábio saxão que um homicida é apenas um suicida extrovertido.
orgulho de moura
Ainda hoje comentava que já não consigo cantar a Etelvina sem encher de sotaque os discursos directos (saiba que fui bácináda, saiba que sou malcriada...) sem suspeitar que o grande troféu do dia me aguardava no bar, após o espectáculo. Um patrício, senhores, não alguém algures da região de Lisboa, mas um patrício de Oeiras, descueirado na Sebastião e Silva enquanto eu me descueirava em Paço d'Arcos, na escola sem nome que agora se chama Luís de Freitas Branco. Este patrício, recentemente imigrado na muy leal e invicta cidade, estava na dúvida se seria eu a tal que era de Oeiras, ao ouvir-me reclamar em dialecto tripeiro ao balcão pelas sandes manhosas que me esperavam. Estou orgulhosa, carago. Com as sílabas todas.
Mas é também por isto que hei-de estar sempre bem onde não estou. Aqui nunca passarei de uma principiante. E já sei que assim que chegar a Lisboa vão começar a tentar convencer-me de que as sílabas finais de uma palavra grave não são assim tão importantes, e de que há "is" que não são para ser ditos. A minha resposta será sempre a mesma: é defícil ser mai'redículo.
Mas é também por isto que hei-de estar sempre bem onde não estou. Aqui nunca passarei de uma principiante. E já sei que assim que chegar a Lisboa vão começar a tentar convencer-me de que as sílabas finais de uma palavra grave não são assim tão importantes, e de que há "is" que não são para ser ditos. A minha resposta será sempre a mesma: é defícil ser mai'redículo.
sexta-feira, fevereiro 22, 2008
bibliofagia 2.0
When he gave us our air rifles Atticus wouldn't teach us to shoot. Uncle Jack instructed us in the rudiments thereof; he said Atticus wasn't interested in guns. Atticus said to Jem one day, "I'd rather you shot at tin cans in the back yard, but I know you'll go after birds. Shoot all the bluejays you want, if you can hit'em, but remember it's a sin to kill a mockingbird."
That was the only time I ever heard Atticus say it was a sin to do something, and I asked Miss Maudie about it. "Your father's right," she said. "Mockingbirds don't do one thing but make music for us to enjoy. They don't eat up people's gardens, don't nest in corncribs, they don't do one thing but sing their hearts out for us. That's why it's a sin to kill a mockingbird."
That was the only time I ever heard Atticus say it was a sin to do something, and I asked Miss Maudie about it. "Your father's right," she said. "Mockingbirds don't do one thing but make music for us to enjoy. They don't eat up people's gardens, don't nest in corncribs, they don't do one thing but sing their hearts out for us. That's why it's a sin to kill a mockingbird."
Harper Lee, To kill a mockingbird
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bibliofagia
When Uncle Jack jumped down from the train Christmas Eve day, we had to wait for the porter to hand him two long packages. Jem and I always thought it funny when Uncle Jack pecked Atticus on the cheek; they were the only two men we ever saw kiss each other. Uncle Jack shook hands with Jem and swung me high, but not high enough: Uncle Jack was a head shorter than Atticus; the baby of the family, he was younger than Aunt Alexandra. He and Aunty looked alike, but Uncle Jack made better use of his face: we were never wary of his sharp nose and chin.
He was one of the few men of science who never terrified me, probably because he never behaved like a doctor. Whenever he performed a minor service for Jem and me, as removing a splinter from a foot, he would tell us exactly what he was going to do, give us an estimation of how much it would hurt, and explain the use of any tongs he employed. One Christmas I lurked in corners nursing a twisted splinter in my foot, permiting no one to come near me. When Uncle Jack caught me, he kept me laughing about a preacher who hated going to church so much that every day he stood at his gate in his dressing-gown, smoking a hookah and delivering five-minute sermons to any passers-by who desired spiritual confort. I interrupted to make Uncle Jack let me know when he would pull it out, but he held up a bloody splinter in a pair of tweezers and said he yanked it while I was laughing, that was what was known as relativity.
Não sei se há na vida prazer mais luminoso do que ser devorado por um romance. Há uns tempos que não me acontecia, planear o dia em redor dos momentos em que posso abrir um livro, este pequeno livro negro que me mergulha na vida de Scout e Jem Finch, em Maycomb County. E na escrita magnífica e incomparavelmente calibrada de Harper Lee, que faz poesia com a maior das simplicidades, e cinema com a melhor das literaturas.
He was one of the few men of science who never terrified me, probably because he never behaved like a doctor. Whenever he performed a minor service for Jem and me, as removing a splinter from a foot, he would tell us exactly what he was going to do, give us an estimation of how much it would hurt, and explain the use of any tongs he employed. One Christmas I lurked in corners nursing a twisted splinter in my foot, permiting no one to come near me. When Uncle Jack caught me, he kept me laughing about a preacher who hated going to church so much that every day he stood at his gate in his dressing-gown, smoking a hookah and delivering five-minute sermons to any passers-by who desired spiritual confort. I interrupted to make Uncle Jack let me know when he would pull it out, but he held up a bloody splinter in a pair of tweezers and said he yanked it while I was laughing, that was what was known as relativity.
Harper Lee, To kill a mockingbird
Não sei se há na vida prazer mais luminoso do que ser devorado por um romance. Há uns tempos que não me acontecia, planear o dia em redor dos momentos em que posso abrir um livro, este pequeno livro negro que me mergulha na vida de Scout e Jem Finch, em Maycomb County. E na escrita magnífica e incomparavelmente calibrada de Harper Lee, que faz poesia com a maior das simplicidades, e cinema com a melhor das literaturas.
de lobos e actores...
Aqui entre nós, sabêmo-lo sempre antes de erguer os olhos para o veludo azul. O vórtice acelera-se e não deixa dúvidas, é preciso tomar cuidado, muito cuidado nestes dias. Não é pelo pêlo que se denuncia, que só na venta cresce desenfreado, nem pelas garras, que já as conhecemos bem e sabemos disfarçá-las com anéis ponteagudos, nem pelos caninos onde batem as gargalhadas que ressoam em ecos que se desmultiplicam noutros ecos. Nem tão pouco pela velocidade a que vaza a garrafa de porto ferreira. É pelos olhos. Felizmente, por estes canais ninguém conhece os teus olhos como eu, ninguém os meus como tu. E nesta maravilhosa montanha-russa, cá vão os dois selenitas, prontos a agarrar com toda a força do mundo o pulso do primeiro que se desequilibrar. E sabes que mais? O Artaud era um tonto, os sentimentos não atrasam, são é muito à frente.
Vá, respiremos fundo. Ainda se quer fazer redonda, mas já começa a minguar, a puta. Auuuuuuuuuuuuuuuuu...
Vá, respiremos fundo. Ainda se quer fazer redonda, mas já começa a minguar, a puta. Auuuuuuuuuuuuuuuuu...
quarta-feira, fevereiro 20, 2008
ciclo de desova
O início do ano é a época da caça à truta. Hoje fecha-se o ciclo, com o aniversário da nossa benjamin, a nossa Truta Laranja. Vi-a nascer, posso dizê-lo, ali para os lados da Caldeira Velha, em São Miguel. E tenho umas saudades dela que me pelo. De a ver e de a ler, com a sua cabecinha tão centrada, o seu espírito livre, e os seus pés bem assentes no ar. Parabéns, minha laranjinha! E vamos lá a saber: quando é que voltamos a ter a oportunidade de saborear a tua escrita, a tua inteligência, o teu sentido de humor incisivo? Não estou a brincar, tenho mesmo saudades, carago...
Setúbal-Tróia, Agosto de 2004
recta final
... porra, ainda a semana acaba de começar e já estou com saudades.
Ó freguês, últimos dias, é a mil! De derrota em derrota, até à Vitória final. Não se admirem que eu a partir de domingo que vem declare oficialmente aberta a época da depressão pós-parto aquático.
Ó freguês, últimos dias, é a mil! De derrota em derrota, até à Vitória final. Não se admirem que eu a partir de domingo que vem declare oficialmente aberta a época da depressão pós-parto aquático.
cinefolga 2.0
E antes de se iniciar a última semana de aventura pela acqua alta veneziana, ainda tive tempo para mais duas horas e picos de deslumbramento. Com uma actriz, Marina Hands, e com um filme que respira ao ritmo da beleza, da líbido, do silêncio e do cérebro. Nunca vi sexo sem preliminares tão maravilhosamente cheio de pós-liminares, tão sublime, tão belo na sua rudeza, no seu silêncio, na sua liberdade conquistada, no seu amor por fim. Talvez não pudesse haver melhor leitor de D.H.Lawrence do que um francês. Pascal Ferran, de seu nome. Sem dúvida, o melhor amante possível para Lady Constance Chatterley.
terça-feira, fevereiro 19, 2008
cinefolga
... sempre, por mais que o reveja, me surpreendo com cada segundo destas duas horas de génio em que o curvo senhor Hulot vai subvertendo em crescendo as frias rectas da modernidade. Já perdi a conta às vezes que vi este filme. E de cada vez que o vejo de novo, de novo tenho a certeza de que não será a última vez.
domingo, fevereiro 17, 2008
the Batalha plastic gun massacre
O puto loiro de camisola azul-celeste percorre a praça. Arma de plástico automático na mão, faca de mato sem serrilha no bolso abaixo do joelho. Escolhe os seus alvos à sorte, sem grande convicção, e ora dispara ora espreita pelo cano do seu letal brinquedo. Dirige-se a mim, focando os lindos olhos de durão, o braço esticado na minha direcção, e dispara. Uma, duas, três vezes. Levo as mãos ao coração, onde ele acertou em cheio, e num último e dramático estertor caio redonda no rebordo da redonda fonte. Ele não disfarça a perplexidade face ao rigor inesperado da sua própria pontaria. Afasta-se lentamente, sempre olhando para trás para se certificar da minha dolorosa recuperação, apesar da falta de comparência dos paramédicos. Ao longo do seu caminho de caubói solitário, é interpelado pelos muitos adultos da praça que lhe conhecem o percurso dos dias. E faz mais um disparo letal, desta feita um apertado abraço ao velho sentado num dos primeiros degraus da rua obscura por onde se perde o pistoleiro.
Olha para trás uma última vez e perco de vista a camisola azul-celeste, os meus olhos de regresso à praça. Dois turistas, de ar satisfeito e bem-posto, atravessam-na com a sua vida guardada em trolleys de marca que ressaltam no basalto. Conversam animados e observam a cidade talvez nova, sem adivinharem que foi por pouco que escaparam ao terrível massacre da Praça da Batalha.
Olha para trás uma última vez e perco de vista a camisola azul-celeste, os meus olhos de regresso à praça. Dois turistas, de ar satisfeito e bem-posto, atravessam-na com a sua vida guardada em trolleys de marca que ressaltam no basalto. Conversam animados e observam a cidade talvez nova, sem adivinharem que foi por pouco que escaparam ao terrível massacre da Praça da Batalha.
sábado, fevereiro 16, 2008
só para lembrar...
... que o Bolhão ainda recebe visitas. AQUI e in situ. Para mais informações, visitem esta página e esta. Que há a dizer? Que cheia a cheia, o Rio desfigura uma cidade. E os diques somos nós. Olh'ó Bolhão, o Porto a mil vozes, aqui pelo Canto Nono, com os arranjos de José Mário Branco. Ó rico corpinho, venha aqui ver os meus enchidos!...
Olha O Bolhão.m4a |
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aforismo com arroz do mesmo
O genuíno don juan não é um fala-barato, é um esteta sentimental. Em certos momentos, pode até corar.
no arame
Li em tempos uma frase que nunca me largou a memória. Não sei precisar se é budista ou de outro universo paralelo, nem sequer se é de autor nomeado ou perdido nas letras do mundo. Sei que de lhe recorrer tantas vezes, cada vez menos preciso de ma relembrar. Cá está de como a natureza de cada um é algo bastante mais complexo e dúctil do que um amontoado de calhaus mais ou menos imutáveis, bastiões da real existência de uma qualquer identidade. Reza o seguinte, muito simplesmente, ai mandem-me calar, tanta converseta para dizer uma coisa tão simples, pois, finalmente, cá vai: guardar rancor é como tomar veneno e esperar que o outro morra.
Hoje é daquelas noites. Umas cervejas, uns deambulares pelas ruas da baixa, tantas personagens da minha vida mais e menos próxima, do Porto e de Lisboa, cruzando-se nos mesmos espaços, nos mesmos entrelaços, e pronto, chega-se a um quarto de hotel, tira-se os restos de maquilhagem do espectáculo e o que sobra para fazer? Pois, filosofar. E passar revista a alguns arquivos.
Há pessoas que perdi. Há uma pessoa em particular que perdi, ou que, no meu silêncio, expulsei, bem segura das minhas razões. Ainda as sei, as razões. E continuo a senti-las razoáveis, mas também as razões do outro lado para a sua irrazoabilidade (esta porra desta palavra nem deve existir, mas é a única que me serve aqui) me surgem hoje, sete ou oito anos depois, em diferentes cores. Continuo a lidar mal com a agressão, mas compreendo hoje que alguma dela vem de pontos que nem sabemos precisar, e que o mal é sempre o mesmo, não pensar, não pensar antes, mas também - e se calhar, sobretudo - não pensar depois do mal estar feito. O mal é a negação, não é o escuro nem o claro, é a venda que tantas vezes preferimos a ambos. Eu, e não me custa dizer isto, talvez tenha até um orgulho perverso, na dor tive sempre uma tendência grande para descarregar em mim mesma, na misantropia, na revolta e até numa semi-consciente auto-destruição, moderada, sim, mas chamemos os bois pelos nomes. Talvez por isso a agressão, em todas as suas formas, me repugne tanto. Mas em situações-limite, também eu já dei por mim transformada em bicho, quem sou eu para falar?
Mas há algo no rancor que se faz inelutável. Como fugir de uma reacção que nada mais é do que humana, quando alguém nos fere e sangra, sobretudo quando sentimos que esse alguém pode parar mas não quer? Há uma dignidade que se perde na tortura e que o rancor parece querer repôr, qual dulcamara de elixir na mão, milagre para as perdas, para as almas destruídas, para os afectos violentados, para os abcessos e para as dores de estômago. É um logro, e nem sequer é vinho do Porto, é veneno, nem por um momento deixa de ser veneno. Porque é, será sempre, uma forma de submissão. Uma forma de reconhecer o poder do agressor.
Lembro-me agora daquela história brilhante do sapo que transporta o escorpião nas costas e nunca consegue chegar à outra margem. Porque me picaste?, pergunta. Porque é a minha natureza, responde o escorpião. Também acredito nesta história, não tenho qualquer simpatia pelo senhor Skinner, que fique bem claro, nem pelo original nem pelo dos Simpsons. Mas passe a sua condição de fábula, a verdade é que somos, nós, gente, algo mais que escorpiões. O nosso cérebro tem a imensa capacidade de criar ferramentas, gruas, retro-escavadoras, o que for, para mover os toneláveis calhaus aparentemente inamovíveis. E até para perceber quantos deles são feitos do mais leve cartão, quantos deles não passam sequer de hologramas. Recusar o veneno do rancor pode ser, sim, um acto de amor. Mas pode ser também um acto de autonomia, de dignidade, de poder sobre si mesmo. E é também colocar o pé no arame, e assumir para si a responsabilidade de, sempre que necessário, conferir a regra de três simples estabelecida entre a inteligência e a hipocrisia.
Hoje é daquelas noites. Umas cervejas, uns deambulares pelas ruas da baixa, tantas personagens da minha vida mais e menos próxima, do Porto e de Lisboa, cruzando-se nos mesmos espaços, nos mesmos entrelaços, e pronto, chega-se a um quarto de hotel, tira-se os restos de maquilhagem do espectáculo e o que sobra para fazer? Pois, filosofar. E passar revista a alguns arquivos.
Há pessoas que perdi. Há uma pessoa em particular que perdi, ou que, no meu silêncio, expulsei, bem segura das minhas razões. Ainda as sei, as razões. E continuo a senti-las razoáveis, mas também as razões do outro lado para a sua irrazoabilidade (esta porra desta palavra nem deve existir, mas é a única que me serve aqui) me surgem hoje, sete ou oito anos depois, em diferentes cores. Continuo a lidar mal com a agressão, mas compreendo hoje que alguma dela vem de pontos que nem sabemos precisar, e que o mal é sempre o mesmo, não pensar, não pensar antes, mas também - e se calhar, sobretudo - não pensar depois do mal estar feito. O mal é a negação, não é o escuro nem o claro, é a venda que tantas vezes preferimos a ambos. Eu, e não me custa dizer isto, talvez tenha até um orgulho perverso, na dor tive sempre uma tendência grande para descarregar em mim mesma, na misantropia, na revolta e até numa semi-consciente auto-destruição, moderada, sim, mas chamemos os bois pelos nomes. Talvez por isso a agressão, em todas as suas formas, me repugne tanto. Mas em situações-limite, também eu já dei por mim transformada em bicho, quem sou eu para falar?
Mas há algo no rancor que se faz inelutável. Como fugir de uma reacção que nada mais é do que humana, quando alguém nos fere e sangra, sobretudo quando sentimos que esse alguém pode parar mas não quer? Há uma dignidade que se perde na tortura e que o rancor parece querer repôr, qual dulcamara de elixir na mão, milagre para as perdas, para as almas destruídas, para os afectos violentados, para os abcessos e para as dores de estômago. É um logro, e nem sequer é vinho do Porto, é veneno, nem por um momento deixa de ser veneno. Porque é, será sempre, uma forma de submissão. Uma forma de reconhecer o poder do agressor.
Lembro-me agora daquela história brilhante do sapo que transporta o escorpião nas costas e nunca consegue chegar à outra margem. Porque me picaste?, pergunta. Porque é a minha natureza, responde o escorpião. Também acredito nesta história, não tenho qualquer simpatia pelo senhor Skinner, que fique bem claro, nem pelo original nem pelo dos Simpsons. Mas passe a sua condição de fábula, a verdade é que somos, nós, gente, algo mais que escorpiões. O nosso cérebro tem a imensa capacidade de criar ferramentas, gruas, retro-escavadoras, o que for, para mover os toneláveis calhaus aparentemente inamovíveis. E até para perceber quantos deles são feitos do mais leve cartão, quantos deles não passam sequer de hologramas. Recusar o veneno do rancor pode ser, sim, um acto de amor. Mas pode ser também um acto de autonomia, de dignidade, de poder sobre si mesmo. E é também colocar o pé no arame, e assumir para si a responsabilidade de, sempre que necessário, conferir a regra de três simples estabelecida entre a inteligência e a hipocrisia.
sexta-feira, fevereiro 15, 2008
adenda à adenda
Faço posts como o anterior, e depois admiro-me...
Ah, a propósito, hoje entre cenas deram-me a ler uma notícia de jornal extraordinária: uma sex-shop foi multada, porque vendeu uma boneca de pipo que não gemia. Depois de eu ter retorquido que não percebia se se falava de uma boneca ou de um pato de borracha, lá me elucidaram, quase indignados pela minha suprema ignorância: "pá, era uma boneca de uns oitocentos ou novecentos euros!". É justo. Por tanto guito, espera-se que pelo menos gema, já que não dá beijos.
Bom... de caminho, também os dá, que sei eu...?
Ah, a propósito, hoje entre cenas deram-me a ler uma notícia de jornal extraordinária: uma sex-shop foi multada, porque vendeu uma boneca de pipo que não gemia. Depois de eu ter retorquido que não percebia se se falava de uma boneca ou de um pato de borracha, lá me elucidaram, quase indignados pela minha suprema ignorância: "pá, era uma boneca de uns oitocentos ou novecentos euros!". É justo. Por tanto guito, espera-se que pelo menos gema, já que não dá beijos.
Bom... de caminho, também os dá, que sei eu...?
adenda de caserna (ou melhor dizendo, de camarim)
Ser actor é como ser uma puta, porque:
- todos os dias, quando acordas dizes para ti mesmo: "eu não vou fazer isto a vida toda";
- vestes-te e despes-te quinhentas vezes, nem sempre nas situações mais privadas, and it's all in a day's work;
- quando te perguntam em que consiste o teu trabalho, tens sérias dificuldades em explicar.
A grande diferença é que nós, os actores, passamos recibo. Mas isso agora já era assunto para outro post e lá íamos voltar às favas com chouriço, o que não me apetece nada.
- todos os dias, quando acordas dizes para ti mesmo: "eu não vou fazer isto a vida toda";
- vestes-te e despes-te quinhentas vezes, nem sempre nas situações mais privadas, and it's all in a day's work;
- quando te perguntam em que consiste o teu trabalho, tens sérias dificuldades em explicar.
A grande diferença é que nós, os actores, passamos recibo. Mas isso agora já era assunto para outro post e lá íamos voltar às favas com chouriço, o que não me apetece nada.
*agradecimentos ao sol dos Poveiros e ao JL.
divergências rodoviárias
Nada chega, nada chega, tudo, absolutamente tudo é insuficiente. É preciso trabalhar, é preciso produzir. Esforço. É a palavra-chave, não é? Esforça-te pelos teus objectivos, luta, batalha. Bom, começa por traçá-los, aos objectivos, já não é um mau começo.
WRONG!
É um péssimo começo. E aí está o palco para mo provar. Tenta fazer acontecer, e falharás. Assume que não passas de um veículo e deixa-te surpreender por aquilo que produzes de modo aparentemente involuntário. Abre os canais, deixa que vibrem livremente, observa, escuta, distancia-te e aprende os momentos em que deves largar o volante, és um veículo, não o condutor. O condutor é o homem-fantasma, que vê tudo sem ser visto. Às vezes passa-te a mão pelo rosto, sentes o seu afago, outras vezes parece que falta à cena e lá tens tu de te safar o melhor que podes. Mas quando não o intimas a comparecer, quando não o forças, ele não te abandona, é um fantasma de confiança. Mas não te esqueças, funâmbulo, que não podes deixá-lo adormecer. Apenas isso, mantém-no acordado. E confia.
As melhores coisas que nos acontecem não são objectivos, são sub-produtos de objectivos que acabamos por reduzir à sua insignificância. Acabamos até por esquecê-los, de tão desimportantes. Como Peer Gynt, o nosso império está aqui, mas não o reconheceremos se não dermos a nossa solitária volta ao mundo. E à cebola.
WRONG!
É um péssimo começo. E aí está o palco para mo provar. Tenta fazer acontecer, e falharás. Assume que não passas de um veículo e deixa-te surpreender por aquilo que produzes de modo aparentemente involuntário. Abre os canais, deixa que vibrem livremente, observa, escuta, distancia-te e aprende os momentos em que deves largar o volante, és um veículo, não o condutor. O condutor é o homem-fantasma, que vê tudo sem ser visto. Às vezes passa-te a mão pelo rosto, sentes o seu afago, outras vezes parece que falta à cena e lá tens tu de te safar o melhor que podes. Mas quando não o intimas a comparecer, quando não o forças, ele não te abandona, é um fantasma de confiança. Mas não te esqueças, funâmbulo, que não podes deixá-lo adormecer. Apenas isso, mantém-no acordado. E confia.
As melhores coisas que nos acontecem não são objectivos, são sub-produtos de objectivos que acabamos por reduzir à sua insignificância. Acabamos até por esquecê-los, de tão desimportantes. Como Peer Gynt, o nosso império está aqui, mas não o reconheceremos se não dermos a nossa solitária volta ao mundo. E à cebola.
quarta-feira, fevereiro 13, 2008
dez em trinta e oito
Macau, Outubro de 1999
fotografia de Rodrigues
segunda-feira, fevereiro 11, 2008
um ano
Um ano em que o poder de decisão sobre nós mesmas deixou de estar em mãos alheias. Um ano em que o corpo da mulher se tornou seu. Um ano em que dores privadas deixaram de ser matéria de prova em tribunal. Um ano em que passou a haver menos campo para denúncias da intimidade alheia. Um ano em que a cidadania se tornou mais inteira.
A estrada não acaba aqui. Mas ainda assim, estamos de parabéns. Todos.
Hoje sai da barra de linques a iconografia da campanha. As estatísticas, a informação e a contra-informação povoam os jornais, e, certamente, muitos blogues. A mim, sinceramente, só me apeteceu zurzir no sr.Sarsfield, para fazer o gosto ao dedo. E celebrar!
A estrada não acaba aqui. Mas ainda assim, estamos de parabéns. Todos.
Hoje sai da barra de linques a iconografia da campanha. As estatísticas, a informação e a contra-informação povoam os jornais, e, certamente, muitos blogues. A mim, sinceramente, só me apeteceu zurzir no sr.Sarsfield, para fazer o gosto ao dedo. E celebrar!
frase do dia
Mostrar que está ali um ser vivo poderia levar a mulher a não abortar...
Francisco Sarsfield Cabral, hoje no Público. E como é que se mostra a estes senhores pró-prisão, como continuam a ser, que para lá do feijão que tem no útero, uma mulher também é um ser vivo?
Devo dizer que acho que é difícil ser mais arrogante em tão poucas palavras. O grau de desprezo que contêm mede-se pela presunção de que uma mulher que aborta não sabe que termina um foco de vida com potencial autonomia, que termina toda uma série de projecções e de projectos, que enfrenta séculos de culpa (a isso estamos bem habituadas, nós mulheres...). Fale com uma, sr.Cabral. E dê-se ao trabalho de ver nela, mais do que um ser vivo, um ser humano. Uma pessoa.
Francisco Sarsfield Cabral, hoje no Público. E como é que se mostra a estes senhores pró-prisão, como continuam a ser, que para lá do feijão que tem no útero, uma mulher também é um ser vivo?
Devo dizer que acho que é difícil ser mais arrogante em tão poucas palavras. O grau de desprezo que contêm mede-se pela presunção de que uma mulher que aborta não sabe que termina um foco de vida com potencial autonomia, que termina toda uma série de projecções e de projectos, que enfrenta séculos de culpa (a isso estamos bem habituadas, nós mulheres...). Fale com uma, sr.Cabral. E dê-se ao trabalho de ver nela, mais do que um ser vivo, um ser humano. Uma pessoa.
domingo, fevereiro 10, 2008
as alegrias do consumo 2.0
E uma visita àquele maldito subterrâneo, com todos os seus defeitos, quase nunca se fica por um único departamento, aqui não há objectivo traçado que me valha. Mas na realidade, ainda bem. Para além de dois daqueles adoráveis paperback da Penguin ao preço da chuva, a que dificilmente resisto (Poe e Conrad a três euros, bardamerda mais as poupanças), veio no saco um mimo especial. Este:
A Oficina do Livro faz uma luminosa edição do mais belo amontoado de palavras que a literatura ocidental já produziu, um caldeirão de amor, humanidade, ritmo, beleza, clarividência (e mais uns mil qualificativos) como, digo eu, não há outro. A tradução, estreada no palco antes de editada, como convém às "duas horas comoventes, nas quais, onde ouvidos pacientes atentarem, só há faltas que os actores não emendarem" (é o costume, quem se lixa é sempre o mexilhão), bom, a tradução, dizia eu, é de Fernando Villas-Boas, e é um trabalho que fala por si, como Julieta o faz:
Apressai o galope, cavalos de cascos de fogo,
De volta à casa de Febo. Fosse antes vosso cocheiro
Faetonte, havia de açoitar-vos mais rumo a oeste
E trar-me-ia a noite e suas nuvens de imediato.
Estende tua fechada cortina, noite fazedora de amores,
Que os olhos do fugitivo tremam, e Romeu
Caia nestes braços de que ninguém fala, nem vê!
Ou os amantes tratam de seus ritos amorosos
Usando de suas beldades, ou, se o amor é cego,
Melhor concorda com a noite. Vem, noite grave,
Matrona sobriamente vestida de negro,
E ensina-me a perder num jogo que já está ganho,
Jogado por um par de inocências sem mancha.
Acalma o teu sangue indomado, que sinto no rosto,
Com o teu manto, até que o amor tímido se atreva,
E julgue que o puro amor faz a pura castidade.
Vem, noite, vem, Romeu, vem, que és luz da noite,
Pois hás-de chegar, nas asas da escuridão,
Mais claro que a neve fresca nas asas do corvo.
Vem, noite gentil, vem, terna, com tua tez escura,
Dá-me o meu Romeu, e, quando eu morrer,
Leva-o e corta-o em estrelas pequeninas,
E ele há-de tornar a face dos céus tão bela
Que todo o mundo ficará amoroso da noite,
E não mais louvará o sol aparatoso.
Oh, tenho comprada a mansão de um amor,
Mas não tomei dela posse, e eu, que fui vendida,
Ainda de mim não usaram. É tão turvo este dia
Quanto a noite antes de algum festival
Para a criança que ganhou vestidos novos
E não pode usá-los. Oh, lá vem a minha Ama.
E traz notícias, e cada boca que pronuncie
Só o nome de Romeu, já alcança celeste eloquência.
Ora, Ama, que novas? Que trazes tu aí? As cordas
Que Romeu te pediu?
E que melhor ocasião que esta para fazer o devido encómio ao belíssimo blogue do tradutor/autor que não tem nada contra os seus preconceitos? Já aí está, nas Águas de Maio, há algumas semanas, mas deve ter passado despercebido. O Drama Pessoal, de Fernando Villas-Boas, aconselhado a quem aprecia escrita da boa, sumarenta, espontânea e rigorosa. Como há poucas.
A Oficina do Livro faz uma luminosa edição do mais belo amontoado de palavras que a literatura ocidental já produziu, um caldeirão de amor, humanidade, ritmo, beleza, clarividência (e mais uns mil qualificativos) como, digo eu, não há outro. A tradução, estreada no palco antes de editada, como convém às "duas horas comoventes, nas quais, onde ouvidos pacientes atentarem, só há faltas que os actores não emendarem" (é o costume, quem se lixa é sempre o mexilhão), bom, a tradução, dizia eu, é de Fernando Villas-Boas, e é um trabalho que fala por si, como Julieta o faz:
Apressai o galope, cavalos de cascos de fogo,
De volta à casa de Febo. Fosse antes vosso cocheiro
Faetonte, havia de açoitar-vos mais rumo a oeste
E trar-me-ia a noite e suas nuvens de imediato.
Estende tua fechada cortina, noite fazedora de amores,
Que os olhos do fugitivo tremam, e Romeu
Caia nestes braços de que ninguém fala, nem vê!
Ou os amantes tratam de seus ritos amorosos
Usando de suas beldades, ou, se o amor é cego,
Melhor concorda com a noite. Vem, noite grave,
Matrona sobriamente vestida de negro,
E ensina-me a perder num jogo que já está ganho,
Jogado por um par de inocências sem mancha.
Acalma o teu sangue indomado, que sinto no rosto,
Com o teu manto, até que o amor tímido se atreva,
E julgue que o puro amor faz a pura castidade.
Vem, noite, vem, Romeu, vem, que és luz da noite,
Pois hás-de chegar, nas asas da escuridão,
Mais claro que a neve fresca nas asas do corvo.
Vem, noite gentil, vem, terna, com tua tez escura,
Dá-me o meu Romeu, e, quando eu morrer,
Leva-o e corta-o em estrelas pequeninas,
E ele há-de tornar a face dos céus tão bela
Que todo o mundo ficará amoroso da noite,
E não mais louvará o sol aparatoso.
Oh, tenho comprada a mansão de um amor,
Mas não tomei dela posse, e eu, que fui vendida,
Ainda de mim não usaram. É tão turvo este dia
Quanto a noite antes de algum festival
Para a criança que ganhou vestidos novos
E não pode usá-los. Oh, lá vem a minha Ama.
E traz notícias, e cada boca que pronuncie
Só o nome de Romeu, já alcança celeste eloquência.
Ora, Ama, que novas? Que trazes tu aí? As cordas
Que Romeu te pediu?
E que melhor ocasião que esta para fazer o devido encómio ao belíssimo blogue do tradutor/autor que não tem nada contra os seus preconceitos? Já aí está, nas Águas de Maio, há algumas semanas, mas deve ter passado despercebido. O Drama Pessoal, de Fernando Villas-Boas, aconselhado a quem aprecia escrita da boa, sumarenta, espontânea e rigorosa. Como há poucas.
as alegrias do consumo
Finalmente, depois de semanas de procura que dava já como perdidas, a fnac aqui da esquina decidiu-se a repor o stock e eu já me posso derreter as vezes que quiser sem ter de entrar em piratarias. Convosco, Jeff Buckley em Chicago, em estado de graça. Por este homem, digo-vos eu, ainda dou em espírita um dia destes.
sábado, fevereiro 09, 2008
é cedo para a primavera
É cedo para este calor. Mas é cedo desde sempre, presentes na memória tenho os furos de fevereiro, em manga curta a lagartar no pátio da secundária. O pessoal aproveita o sol de pouca dura do Porto, que a cada dia dura mais. Minga a noite e cresce o dia e não tarda estamos novamente no tempo dos primeiros gomos de tangerina. Ainda assim, entrar num centro comercial com um objectivo específico continua a ser uma aventura radical, com toda a gente que foge do ar e se entrega ao fast lounge de estufa. Em dias maus apetece uma granada, em dias bons, como hoje, tudo se resolve numa alucinada e curtida gincana, e chegar à escada rolante sem parar nem bater em ninguém é uma tripe fenomenal!
Cá fora, Santa Catarina regressa à sua condição privilegiada de sala de espectáculos, onde se pode assistir a tudo, desde um concerto de balalaikas até um cão a ladrar às canelas de um palhaço de andas que corre disparado calçada abaixo, retrato da catástrofe à beira de acontecer. Num caixote do lixo de cartão cenografado onde estão colados avisos de "não tocar", algo se esconde. Parece-me uma engenhosa - e preguiçosa - variação do homem estátua. Se alguém tocar, a porta abrir-se-á e a incógnita poderá revelar-se. Mas a malta prantada em círculo observa, ri algo nervosamente, e não se aproxima. A ideia é gira. Mas apesar do sol estar cá fora, as pessoas continuam conformistas e o espectáculo bloqueia. Aposto que o desgraçado ainda está encolhido lá dentro, suspirando pelo ar puro que respira quando se contenta em ser a estátua que sempre foi.
Cá fora, Santa Catarina regressa à sua condição privilegiada de sala de espectáculos, onde se pode assistir a tudo, desde um concerto de balalaikas até um cão a ladrar às canelas de um palhaço de andas que corre disparado calçada abaixo, retrato da catástrofe à beira de acontecer. Num caixote do lixo de cartão cenografado onde estão colados avisos de "não tocar", algo se esconde. Parece-me uma engenhosa - e preguiçosa - variação do homem estátua. Se alguém tocar, a porta abrir-se-á e a incógnita poderá revelar-se. Mas a malta prantada em círculo observa, ri algo nervosamente, e não se aproxima. A ideia é gira. Mas apesar do sol estar cá fora, as pessoas continuam conformistas e o espectáculo bloqueia. Aposto que o desgraçado ainda está encolhido lá dentro, suspirando pelo ar puro que respira quando se contenta em ser a estátua que sempre foi.
aiiiiie... por amor da santa!
É o problema de ter este controlo dos motores de busca. De vez em quando vê-se cada coisa... alguém veio aqui parar pelo google com a brilhante pesquisa de "realizador e actriz de filmes porno". Bem sei, amigos, que esta coisa do teatro é modo de vida incerto, muitas vezes fodido e mal-pago. Mas quando desistir, abro um cafézito, ou uma livraria, ou até uma sex-shop, quem sabe. Felizmente há mais na vida para fazer além da performance, livra...
sexta-feira, fevereiro 08, 2008
convocatória
CONCENTRAÇÃO / MANIFESTAÇÃO À PORTA DA ESCOLA DE MUSICA DO CONSERVATÓRIO
NACIONAL (Rua dos Caetanos, Bairro Alto)
DIA 11 - 2ª FEIRA - 10 HORAS DA MANHÃ (concentração às 09.45)
"Far-se-à uma concentração em defesa desta casa e do ensino especializado da
música por ocasião da visita da Comissão Ministerial encarregue da sua
"refundação" - ou seja - da redução do ensino público à sua ínfima
expressão. Será entregue pelas Comissões de Pais e Professores, a esta
Comissão, um manifesto que consubstancia o essencial das nossas posições.
Seguidamente terá lugar, no Salão Nobre, um concerto dos alunos das
Iniciações - Orquestra e Coros e outros grupos de câmara.
Tragam as vossas T-shirts do Conservatório, crachás, cartazes, etc, o que
considerem permitir a expressão da vossa indignação e pesar.
Passem esta informação a todos os vossos familiares e amigos, a todas e
todos que se preocupam com a defesa da nossa cultura e do ensino público.
Ao longo da manhã será organizado um cordão humano em torno do quarteirão -
precisamos de 500 pessoas - possamos estar 1000!
. Por volta das 11h30 terá lugar uma Reunião de Professores onde serão
analisadas novas tomadas de posição.
Os Professores da Escola de Música do Conservatório Nacional."
NACIONAL (Rua dos Caetanos, Bairro Alto)
DIA 11 - 2ª FEIRA - 10 HORAS DA MANHÃ (concentração às 09.45)
"Far-se-à uma concentração em defesa desta casa e do ensino especializado da
música por ocasião da visita da Comissão Ministerial encarregue da sua
"refundação" - ou seja - da redução do ensino público à sua ínfima
expressão. Será entregue pelas Comissões de Pais e Professores, a esta
Comissão, um manifesto que consubstancia o essencial das nossas posições.
Seguidamente terá lugar, no Salão Nobre, um concerto dos alunos das
Iniciações - Orquestra e Coros e outros grupos de câmara.
Tragam as vossas T-shirts do Conservatório, crachás, cartazes, etc, o que
considerem permitir a expressão da vossa indignação e pesar.
Passem esta informação a todos os vossos familiares e amigos, a todas e
todos que se preocupam com a defesa da nossa cultura e do ensino público.
Ao longo da manhã será organizado um cordão humano em torno do quarteirão -
precisamos de 500 pessoas - possamos estar 1000!
. Por volta das 11h30 terá lugar uma Reunião de Professores onde serão
analisadas novas tomadas de posição.
Os Professores da Escola de Música do Conservatório Nacional."
Como dizia o outro, e como bem lembrou a propósito deste despropósito o inimitável Eurico Carrapatoso, Acordai! É de direitos constitucionais que estamos a falar. Do nível cultural e dos horizontes mentais de um país. Do edifício de Garrett e de Vianna da Mota, de Jorge Peixinho, de Constança Capdeville, de Maria João Pires. Somos assim tão pouco ciosos da nossa identidade, passada, presente e futura, ó homens que dormis?
bodies of evidence
Olhem que ele há coisas... acabo de ver um livro que eu traduzi anunciado no cartaz da TVI. Primeiro, tem graça que surja como novidade, sendo que está feito há uma meia-dúzia de anos. Segundo, mais graça tem que a editora tenha decidido mudar-lhe o título e eu, que o traduzi, apenas o tenha sabido, seis anos depois, pela tv... não estou nada ofendida, o meu trabalho de tradução, mais que esporádico, é o de um tarefeiro com brio profissional, nada mais. Mas ainda assim... será o meu pouco orgulho ferido, ou substituir "Corpos de delito" por "Os cadáveres acusam" puxa a coisa assim um bocado para o tablóide? Além de que parte daquele princípio feio de que o leitor é um bocadinho, hmmm, estúpido, e precisa da papinha toda feita na capa, não?...
o imperador fez 400 anos
Sabei, cristãos, que se vos há-de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer.
António Vieira, padre jesuíta, democraticamente eleito Imperador da Língua Portuguesa pelo único júri habilitado a fazê-lo (presidido por Fernando Pessoa e composto, nomeadamente, por Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis).
António Vieira, padre jesuíta, democraticamente eleito Imperador da Língua Portuguesa pelo único júri habilitado a fazê-lo (presidido por Fernando Pessoa e composto, nomeadamente, por Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Ricardo Reis).
óleo sobre tela, início do século XVIII
Casa do Cadaval, Muge
quinta-feira, fevereiro 07, 2008
sub-palco
Há um cantinho do sub-palco onde se armazena tudo o que poderia ter sido. Recôndito e mínimo, faz frente ao maior dos refugos de doca seca, e recebe e recebe e recebe, nunca se esgota. E para recuperar algo que afinal ali não pertence, basta lançar o braço para o monte, com a mão aberta, e o que se procura nela assentará, docemente. Há os caminhos que as palavras recusaram tomar hoje mas que podem ser os únicos abertos amanhã, há os esboços que se perderam pelo caminho, há as relações que tomaram conta do seu espaço e se revelaram a seu ritmo, escorrendo os seus resíduos para o pequeno subterrâneo, os prantos, os risos, as tensões, as pulsões, os medos, os desejos. Há também os figurinos inutilizados, os adereços recusados, os abraços não marcados, os beijos que se deram a mais e os que ainda não se deram e os que nunca se darão. Há um cantinho do meu sub-palco onde cabe tudo isso e tudo o que se segue. E onde tudo está ao alcance de uma mão aberta.
quarta-feira, fevereiro 06, 2008
chorinho
Este sol merece um Chico.
Mas não faz mal
E quem quiser que me compreenda
Até que alguma luz acenda, este meu canto continua
Junto meu canto a cada pranto, a cada choro,
Até que alguém me faça coro pra cantar na rua
Um Chorinho.m4a |
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Mas não faz mal
E quem quiser que me compreenda
Até que alguma luz acenda, este meu canto continua
Junto meu canto a cada pranto, a cada choro,
Até que alguém me faça coro pra cantar na rua
finalmente um pps decente!
Os cinco judeus que mudaram o mundo:
-Moisés, quando disse: "a Lei é TUDO...";
-Jesus, quando disse: "o Amor é TUDO...";
-Marx, quando disse: "o Capital é TUDO...";
-Freud, quando disse: "o Sexo é TUDO...";
-Einstein, quando disse: "TUDO é relativo...".
-Moisés, quando disse: "a Lei é TUDO...";
-Jesus, quando disse: "o Amor é TUDO...";
-Marx, quando disse: "o Capital é TUDO...";
-Freud, quando disse: "o Sexo é TUDO...";
-Einstein, quando disse: "TUDO é relativo...".
a democracia explicada às criancinhas
É de força, a nossa ministra da educação. Já há meses e meses que se queixa da carestia das aulas de música e nos dá a conhecer a sua incomparável visão da educação artística ao falar da falta de rendibilidade das aulas individuais de instrumento (ó senhora, se um aprendiz de violinista incomoda muita gente, imagine uma sala de aula cheia deles, ia gastar-se muito mais em baixas psiquiátricas para os professores...).
Agora diz que quer democratizar o ensino da música... acabando com ele, ora bem. Exterminando os cursos de iniciação musical do conservatório, democraticamente deixa à carteira de cada um a possibilidade de oferecer aos seus filhos uma iniciação musical consistente. Como se costuma dizer, toma lá que é democrático. O grande desígnio nacional continua igual a si próprio: formar carneiros, quantos mais melhor.
AQUI podem assinar uma petição a ser enviada para o Ministério da Educação.
AQUI têm outra, dirigida ao 1.º-ministro e ao Presidente da República.
Há outras alternativas sempre. Podemos calar-nos e olhar para o outro lado. Ou até podemos balir, e olhar para baixo.
Agora diz que quer democratizar o ensino da música... acabando com ele, ora bem. Exterminando os cursos de iniciação musical do conservatório, democraticamente deixa à carteira de cada um a possibilidade de oferecer aos seus filhos uma iniciação musical consistente. Como se costuma dizer, toma lá que é democrático. O grande desígnio nacional continua igual a si próprio: formar carneiros, quantos mais melhor.
AQUI podem assinar uma petição a ser enviada para o Ministério da Educação.
AQUI têm outra, dirigida ao 1.º-ministro e ao Presidente da República.
Há outras alternativas sempre. Podemos calar-nos e olhar para o outro lado. Ou até podemos balir, e olhar para baixo.
terça-feira, fevereiro 05, 2008
de volta ao outro lado da casa
Diz-me, puto, podes enviar-me pelo correio o pedaço de coração que deixei para trás? Parece-me que me vai fazer falta por aqui...
Terreiro da Sé, Porto, Janeiro de 2008
segunda-feira, fevereiro 04, 2008
...é prego, parafuso
Brigitte Bardot.m4... |
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... já o sol cai, e eu ainda nem desapertei a primeira estria. A saudade é Brigitte Bardot na voz de Zeca Baleiro, subterrâneo obscuro, escuro-claro.
faz-me falta
A luz de Lisboa, sempre.
Acordar com três gatos em cima, cada um no seu posto de vigia.
O sorriso rezingão do meu puto logo pela manhã e o riso feliz do seu cota de estimação.
A luz de Lisboa.
A luz da minha casa numa manhã começada cedo, mudando, escorrendo pelas paredes e pelas coisas, transformando-se mil vezes no tempo que dura uma caneca de café.
A canção do canário dos meus vizinhos de baixo.
Conduzir pela marginal com o sol na cara e a Manela Azevedo aos berros.
A luz.
... e é assim que se arruma ao primeiro take uma locução nostálgica para um banco que quer vender as suas contas aos emigrantes no Canadá. Saudades de casa? Falem-me disso...
Acordar com três gatos em cima, cada um no seu posto de vigia.
O sorriso rezingão do meu puto logo pela manhã e o riso feliz do seu cota de estimação.
A luz de Lisboa.
A luz da minha casa numa manhã começada cedo, mudando, escorrendo pelas paredes e pelas coisas, transformando-se mil vezes no tempo que dura uma caneca de café.
A canção do canário dos meus vizinhos de baixo.
Conduzir pela marginal com o sol na cara e a Manela Azevedo aos berros.
A luz.
... e é assim que se arruma ao primeiro take uma locução nostálgica para um banco que quer vender as suas contas aos emigrantes no Canadá. Saudades de casa? Falem-me disso...
domingo, fevereiro 03, 2008
das palavras
De Lisboa à cidade dos prodígios são cerca de 1261 km. Mas já estivemos aqui bem mais perto, tu e eu, e a distância foi sempre a mesma, a distância da rede que liga a rua da alegria à boavista no mesmo passo estugado em que liga os anjos à rambla. É uma distância que há anos se come em palavras e sorrisos que não chegam. Que nos pequenos lembrares e nos grandes ocasos sobre os telhados de Barcelona acorda e adormece pelos anos fora, como um imortal orlando passeando por uma muito nossa e muito cuidada charing cross road. Será em Charing Cross que um dia marcaremos encontro. E usando apenas as palavras necessárias, acrescentaremos à rua das livrarias mais uma loja, feita do acumular das letras de afecto com que uma amizade se constrói. Será na porta 84 de Charing Cross.
para o Diogo
sábado, fevereiro 02, 2008
os padrões...
... repetem-se. Urdem-se com o tempo e fazem-nos o desenho lentamente, o nosso próprio retrato, o que procuramos, o que permitimos, o que suportamos, o que desculpamos. O oposto de desamor é desapego. O oposto de amor é projecção. É posse. É agressão. O antónimo de mesquinhez é generosidade. O que parece distância pode ser preservação, pode ser dádiva. O que é próximo pode ser caruncho. O que parece inconsciente pode ser um bom véu. Nada é recto, nada é linear. Só disto tenho a certeza que posso ter: não aceito eternos retornos viciados. O caixote do lixo manel fechou a tampa. E o pedal não obedece a qualquer pé que não seja o meu. Ou, como dizem os ingleses, I've quit taking shit from anyone. E quanto menos merda aceito, mais amor sinto que tenho para dar. Alguma coisa deve estar certa nesta equação.
Porto, Janeiro de 2007
sexta-feira, fevereiro 01, 2008
da unidade dos contrários ou duas pelo preço de uma
Saber caminhar é sem deixar rasto.
Saber falar é sem mácula ou defeito.
Saber contar é sem usar tabuinhas.
Saber fechar é sem usar tranca
mas não se conseguir abrir.
Saber amarrar é sem usar corda
mas não se conseguir desatar.
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Saber falar é sem mácula ou defeito.
Saber contar é sem usar tabuinhas.
Saber fechar é sem usar tranca
mas não se conseguir abrir.
Saber amarrar é sem usar corda
mas não se conseguir desatar.
Lao Zi, Dao De Jing - O Livro da Via e do Poder, tradução do chinês: Cláudia Ribeiro
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