quinta-feira, janeiro 31, 2008

Eugène Delacroix, La Grèce sur les ruines des Missolonghi


Se dúvidas pudessem existir quanto à utopia da linha recta, a água as afogaria.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

bye-bye

E já vai tarde...

... mas sai orgulhosa, pela linha "política forte e determinada" que diz ter instituído no ministério da cultura. Diria mesmo forte e de-exterminada. Venha o novo gerente, a ver como se porta a mercearia...

amuleto

Hallelujah
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segunda-feira, janeiro 28, 2008

then we had faces...

O ser humano tem uma imbatível capacidade de projecção. O cinema era uma invenção inevitável.

jangada

Porto, Novembro de 2007


Chega aqui, sobe mais este degrau, apoia bem a planta do pé nesta tábua. Eu faço-te o contrapeso, e a tábua balança e ondula mas fica à tona. Até que me beijes a testa no fim da viagem, o remo não se soltará da minha mão, não o largo, não te largo. Não sabemos bem onde estamos, e em parte não queremos sabê-lo, não queremos deitar a âncora, deixámo-la a pesar o seu ferro noutros mares. Temos os olhos dentro dos olhos, os olhos cerrados por pálpebras translúcidas, e a luz que as atravessa duvida da lucidez; as tábuas recusam-na e oferecem-na assim, em bandeja de prata cenografada, em gotas insignificantes que se acumulam discretamente até pesarem como âncoras nos tecidos e neles redesenharem a gravidade. Um pássaro encharcado não voa. Mas sacode-se, até que sinta o real peso das suas asas. Gosto de te ver voar. E tremo só de pensar em ferir-te, em arrancar-te uma pena que seja.

sábado, janeiro 26, 2008

lançado

É o que sinto quando oiço as primeiras frases de um espectáculo, creio que é o que todos nós sentimos, mais ou menos conscientemente, está lançado, não há volta, só há caminho para a frente. Estamos cá fora, parimos. Intensamente, mas sem dor. Fizémos rir, gargalhar, calar, pensar, sentir. O café está lançado. Durante um mês, não há volta. Estamos todos lá, não há uma unha do pé de um maquinista que esteja de fora. Uma vitória que vale bem mais do que seis sequins.

E falando em Vitória, aqui fica a sua canção. Não faz parte do espectáculo, mas faz parte da minha cabeça e do meu corpo, onde ela mexe. Instalou-se na semana passada, sem pedir autorização, e eu nem sou de escolher canções para personagens nem coisas do género. Portanto, se se instalou é porque tinha de ser. Alguém me disse antes de começarem estes ensaios, "para mim, trabalhar com o Corsetti foi uma epifania". Sim, é noite de estreia, creio que estou com um grãozito na asa, apesar das coca-colas. Mas não posso de forma nenhuma dizer o contrário. Uma epifania, uma revelação, uma alegria, uma tortura, uma felicidade que não tem preço de cachet. Um pouco como era cada canção na voz deste senhor que vos deixo. Grace.

Grace
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sexta-feira, janeiro 25, 2008

doces paradoxos



Chama-se cortina de ferro. Mas as cortinas também se chamam panos, e gosto sempre mais do som "pano de ferro". É a maior das contradições. Pesa como ferro, mas adeja como pano exposto à mais leve brisa, ao mais leve sopro. Amanhã, ou seja, hoje (esta expressão está a tornar-se recorrente, acho que viro coruja com uma feliz regularidade), o pano de ferro vai subir, empurrado pelas nossas próprias mãos. O café vai abrir, ainda de madrugada, porque é de madrugada que aparecem os que vão de viagem, os que trabalham, os barbeiros, os hospedeiros, os batoteiros, e já se sabe que até os carregadores vêm beber o seu café. Se uma em cada trezentas pessoas sair da sala com os olhos brilhantes e o sorriso cheio que vi hoje num dos rostos que assistiram ao ensaio geral, dou-me por contente. Lupus est in favola... tenham a bondade de me mandar à merda. 


O Café
de Carlo Goldoni
(tradução de Isabel Lopes, Fernando Mora Ramos)

cenografia e encenação Giorgio Barberio Corsetti | cenografia e figurinos Cristian Taraborrelli | música (interpretada ao vivo) Vítor Rua | desenho de luz João Coelho de Almeida

elenco
Alberto Magassela | Fernando Moreira | Inês Mariana Moitas | Ivo Alexandre | Joana Manuel | João Castro | Jorge Mota | Jorge Vasques | Lígia Roque | Paulo Freixinho | Alexandra Gabriel | Antony Fernandes | Eurico Santos | Freddy Trinidad | Miguel Rosas | Susana Gonçalves

assistência de encenação Raquel Silva | preparação vocal e elocução João Henriques
produção TNSJ
de 25 de Janeiro a 24 de Fevereiro

domingo, janeiro 20, 2008

preparação

Floricanto
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Sólo una vez se nace, una vez se es un hombre, una vez se ama, pues, de una vez por siempre, este es mi destino, vivir según su antojo (...) Del todo nos vamos y desaparecemos en su casa.

Úlima respiração antes da enxurrada.

o porto hoje esteve assim 2.0























Passeio Alegre, 20 de Janeiro de 2008

o porto hoje esteve assim
























Ourigo, 20 de Janeiro de 2008
fotografia de Paulo F.




... e finalmente uma folga de sol, antes do mergulho final.

sábado, janeiro 19, 2008

e continuando a rubrica "grandes senhoras"...

... iniciada com a citação da menina Lisaura Roque, seguida da grande Chavela Vargas, esta impõe-se como a grande canção da noite. Esteve para ser eleita a versão Truth or Dare, bem mais quente, digamos. Mas como poderia eu resistir, logo hoje, a um vídeo tão juvenilmente reconhecível e logo passado em Veneza? Coincidências entre o Rialto e o Campo onde se instala o nosso Café, que hoje finalmente pareceu bem próximo de conseguir o alvará para funcionar a pleno gás.




Estreia na semana que vem, a mais deliciosa banhada em que já me vi metida. Preparai-vos, ó maioria silenciosa, para me mandar à merda, sim?


(quem não perceber nada que me dê o devido desconto; este é, por devida ordem sequencial, o post da narça; e olhem que até podia estar bem pior... não sei... parece-me...)

sexta-feira, janeiro 18, 2008

maravilhosa llorona




Abençoada Chavela, que em poucos minutos me fazes perceber que do que ando a precisar é de apanhar uma bela narça entre pares, para me lembrar de que sou feliz. Y mañana en el ultimo trago nos vamos.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

a minha amiga soprano...

... é uma cabeçuda. Naquela cabecinha linda tem espaço para tudo. Para as ressonâncias agudas que tão bem saboreia e nos dá a saborear. Para uma inteligência e uma sensibilidade muito próprias e apuradas. Para um sentido de humor precioso. Para o seu Deus e as suas dúvidas. Para conversas longas sob o sol de Lisboa, cheias de desafio e compreensão, de amor e de gargalhadas. Para as ganas de viver. Ainda por cima é gira que se farta.

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Mercê de tal ofício bem ossudo, passa hoje o aniversário longe, cantando pelas Viñas da Catalunha. Quem quiser saber o que é uma Rainha da Noite de cair, que vá a São Carlos receber a primavera. Entretanto, cantem-lhe os parabéns. Mas isso afinadinho, hã?

frase da tarde, pela menina Lisaura, bailarina voluntariamente retirada com vãs aspirações a condessa (a partir de Francisco Buarque de Hollanda)

Por trás de um homem inteligente há sempre uma mulher surpreendida.

da natureza humana II

Mas tenciono adormecer assim...

da natureza humana I




... eu hoje acordei assim.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

a flor na (c)idade

Diz o manual de segurança para mulheres que atravessam a praça da batalha depois da meia-noite, ou MSMAPBDMN, que a primeira regra da auto-preservação é não estabelecer contacto visual. Vou na minha, a recapitular as conquistas e os abismos do ensaio acabado de fresco, e nem mando um relance aos dois pinguins que se abrigam da chuva debaixo do andaime. Enquanto lhes passo à frente, um começa a falar "de gajas", pois claro. Conclusão directa, pinguins serão, mas pinguins gunas, e eu fiz bem em apertar as palas de mula. Não acelero, mas mantenho-me focada em frente e desenho as personagens com base no som que me chega. Mas eis que o traço me foge, com vida própria, e me desenha a mim um sorriso de orelha a orelha, enquanto duas novas e diversas figuras emergem sob o andaime da minha imaginação-carburador-de-vozes: 

- Mas é uma gaja nova, é uma gaja nova.
- Ah, não é assim tão nova...
- É nova, é. Ainda nem tem 60 anos!...

segunda-feira, janeiro 14, 2008

as virtudes da lei anti-tabágica

Sai-se mais para a rua, faça frio ou calor. Vê-se o espectáculo do dia descendo sobre a cidade, em relâmpagos que duram um cigarro. E às onze da noite até podemos dar por nós em exploração, procurando num quase deserto parque de autocarros a origem do som inesperado da passarada, que nos faz duvidar da distância a que está a alvorada. Animado estava ainda agora o topo da grande palmeira, com música de reunião de condomínio alado ou de pais que metem os miúdos na cama. Um chilrear no escuro, acompanhado pelo miar pardo dos gatos da rua, é das coisas mais misteriosas que se podem escutar numa cidade.

um teatro a meter água é viveiro 2.0

A perda que há na escolha é uma ilusão. Tão grande como a ilusão de que ao não escolher não se perde. O ganho, por sua vez, não passa de uma miragem que só quem escolhe pode materializar. Para eventualmente matar a sede. Não há oásis, nem tamareiras, nem dromedários, nem odaliscas. Areia e sal e a luz reflectida em tudo, criando as formas que precisamos de ver para não perdermos a vontade de sobreviver. E que nem por isso são mais reais. Nem menos.


Chott el-Jerid (o deserto de sal, casa de todas as miragens) 
Tunísia, 11 de Setembro de 2006

um teatro a meter água é viveiro

Não se escava a partir do fundo, mas da superfície. Quando se quer começar pelas profundidades, não há sacho que nos valha e invariavelmente se escolhe um furo que já estava feito. E que é, quase certo, o furo errado.

os tempos da colheita

Edward Hopper, New York Movie (1939)


Há momentos em que o cérebro pára. Ou não pára, mas há qualquer coisa que acontece na vereda que as imagens percorrem até se materializarem em palavras. Admiro as pessoas que conseguem realmente dizer o que pensam e pensar o que dizem sem que fiquem com este amargo de boca, deixado pelas palavras que apodrecem como fruta não colhida a tempo de ser comida fresca.

domingo, janeiro 13, 2008

foi noite desde manhã...

... e o dia morre como esta harmónica.


Just like a woman
Just like a woman....
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da distância

O., por Rodrigues


A brincar a brincar passam três meses, e à falta da presença, lá vou recebendo notícias felizes do seu acordar para o mundo. O que eu não dava agora para lhe ouvir a gargalhada...

sexta-feira, janeiro 11, 2008

no contexto da brincadeira

Anda por aqui um belo jogo. Também eu estou lá no molho, com todo o prazer. E pelo que percebo, o opinário está aberto a quem se deixar inspirar pela arte de Henri Cartier-Bresson. Entre imagens e palavras, beleza e partilha, vai-se passando bem o tempo. O que não é mais do que aquilo que fazemos por aqui até que a película acabe.

E há alguém que me sinto na obrigação de desafiar, embora saiba que o anfitrião ElMau já tomou a iniciativa. Carago, temos de saber quando puxar pelos galões e fazer lobbying com classe. Ó K., vá lááááá...!

intercidades

Célere boletim informativo: estreiam hoje em Lisboa dois espectáculos bem nascidos no palco do Teatro Nacional de São João. Os Praga destroem, desconstroem e reedificam Molière à sua maneira e à de José Maria Vieira Mendes, subvertendo a seu gosto os tempos e os modos do teatro. E Ricardo Pais revela todo o teatro que pulsa nos ritmos cardíacos de Fernando Pessoa. São 300 km que desaparecem na distância, neste país que já de si é pequenino. Diz Bernardo Soares, e di-lo como só Pessoa o saberia dizer, sou a cena viva onde passam vários actores representado várias peças.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

do acaso (?)

Quando me sai o hexagrama 56, O Viajante, sinto-me como se tivesse ganho a sorte grande. Juro.

De onde vens? Aonde vais?
O mundo não é como o vês -
Tenho olhos diferentes dos teus

E atravesso o teu caminho como uma sombra.
Do que é que precisas realmente?
Que peso é esse sobre os teus ombros?
Quem te deu esse sorriso complacente?

Conheço um tipo diferente de reino
Onde tudo o que transporto é o céu e o momento
E as pessoas são como são, como eu,
E as aves, as abelhas e as flores são iguais.

Bobo, menestrel, vagabundo - sou tudo isso
Mas o meu segredo é que não sou ninguém
E a brisa que sopra através de mim é a brisa
E o meu bafo a desaparecer no vento.

O que dou, dou. É tudo o que tenho -
E o milagre é que é suficiente.

I Ching - O livro das mutações, editado e revisto por Martin Palmer, Jay Ramsay e Zhao Xiaomin

acertar contas

É o que António Durães diz que foi fazer a Coimbra. Em dívida para com o TEUC que em tempos lhe ofereceu o Despertar da Primavera de Ricardo Pais e o Auto da Índia de Rogério de Carvalho, retribui agora no passar do ano 70 da companhia, com a sua Cantora Careca.

Diz o próprio que se lança com Ionesco num teatro de surdos, (dos que não ouvem), para um teatro de mudos (porque não pensam). Um teatro estranho que se entranha, porque tantas vezes despido de qualquer possibilidade psicológica, é já só ritmo e som, como uma canção escanzelada.

Que não temos.

(...)

Na Cantora Careca, não há lutas de classe para invocar, nem fantasmas ideológicos para desenterrar. Do que se fala é de incomunicação.


Terreno rico para os movimentos ágeis do olhar e da sensibilidade inteligente do António Durães. Pressinto eu, do muito e pouco que sou feliz por conhecer. Estreia amanhã (ou seja, hoje, dia 10), no Teatro de Bolso que se aloja na Associação Académica de Coimbra, fica só até sábado e não consta que venha a viajar. Portanto, quem não quiser perder a viagem...

refracção

Não podia deixar de comentar este post, muito embora, e muito infelizmente, não tenha fotografia para ilustrar. É que o estado aqui da pessoa é semelhante. E curiosamente, ou não, hoje também o céu do Porto deu para me pregar partidas infalíveis à melancolia, ao lançar, por duas generosas vezes no espaço de uns minutos de conversa, uma irreal luz de ouro sobre as fachadas descendentes da Rua do Cativo. Ainda me pára um pouco a respiração, confesso, quando fecho os olhos e revejo a fotografia que nunca conseguiria tirar.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

ainda na cela 9...


... o desespero faz coisas terríveis às pessoas. Ei, há três horas que estou a pedir o café, e ainda não está feito?!!!

na cela 9...



...à espera da meia-noite...



... e já nem sequer é ano novo. Ei, rapaz! Café!!!

terça-feira, janeiro 08, 2008

as proporções

Mudam.
As proporções são elásticas.
As proporções são desproporcionadamente relativas.
As proporções passam-nos rasteiras e usam-se de espelhos de deformar para nos ludibriar a mente.
As proporções querem impôr-se como definitivas, mas a vida não deixa. A vida não se dá bem com definitivos, sempre fumou Provisórios. E proporções.
As proporções são bem mais frágeis do que gostariam de ser e tentam fazer valer o seu valor, na própria proporção da sua função.
As proporções são sábias, e riem-se connosco quando enfim lhes conseguimos dar a devida proporção.




...

As emoções são gémeas das proporções.


Guimarães, 5 de Dezembro de 2005

domingo, janeiro 06, 2008

a liberdade

Peço desculpa a quem deixou comentários no post que acabo de apagar. Mas usar da liberdade também pode implicar a ela renunciar como gesto de boa-vontade. É uma questão de prioridades.

sabe-se que se escreve mal...

... quando uma curta crónica de costumes, focada em arquétipos que se poderiam encontrar em qualquer casa portuguesa e com uma tentativa de risonha corrosão, é interpretada como um julgamento pessoal, um apontar de dedo, um desrespeito mal-intencionado, e ainda mais por pessoas de quem se gosta. Aqui deixo o meu pedido de desculpas, não por qualquer post ou opinião minha, mas por ter sido descuidada e permitido que houvesse espaço para essa má-interpretação. Gostava de escrever melhor, para que pudessem ver realmente as imagens que descrevo no que escrevo. Mas tem limites, a comunicação. Por vezes muito mais apertados do que esperamos. Novamente, peço que perdoem a minha notória incompetência. E que acreditem que nela não houve nem um pingo de sumo de limão.

sábado, janeiro 05, 2008

as histórias dos outros que nos pertencem

Foi numa das minhas últimas visitas a essa terra remota que durante longos anos foi ignorada pelo mapa das estradas do ACP, uma aldeia com cinco vilas no nome, onde a estrada acaba e o Côa começa. Era um pesadelo de verão para as duas crianças tristes que se perdiam nas não-referências familiares que as desconstruíam, nos labirintos da incomunicação de uma afectividade truncada e endurecida pelos pedregulhos toscos e cinzentos que no caminho para cima e para dentro surgiam de costas voltadas para nós, ao longo da estrada. Olhando o mapa quase parecia que a aldeia não existia. Sabíamos nós, e parecia que só nós o sabíamos, que depois do último nome escrito, a Reigada, seguindo a estrada que não se desenhava no papel mas apenas no mapa dos nossos desafectos, se entrava no mundo irreal de granito e bosta de vaca que levava o nome de Cinco Vilas, "a terra da avó Maria". Nome cheio de memórias agri-doces, de filmes lentos e estranhos escorregando sobre o silêncio.

Foi num dos últimos anos em que me vi obrigada a visitar o berço do lado da família que melhor conheço, pior compreendo e mais recuso, que ouvi uma das poucas histórias que me fizeram sorrir e descobrir um afecto escondido por aquele chão agreste. As histórias universais têm infindáveis variações mundo fora, nos mais remotos e iliteratos lugares, e só neste ramo da minha família conheço três romeus e três julietas. O meu tio-avô Amadeu que irrompeu pela aldeia do Colmeal montado a cavalo para roubar a minha pespineta tia Lurdes, contra tudo e contra todos e contra as rivalidades entre aldeias. O meu tio Vasco, que casou com a Augusta-inimiga-familiar-mortal e fugiu para o Brasil, onde morreu estupidamente na estrada. 

Mas a verona beirã para onde a minha memória viajou hoje tem uma leveza e uma inteligência que se destacam de forma bizarra numa paisagem física e emocional de dureza e obscuridade. Famílias rivais, também e sempre. É revelador que em comunidades tão pequenas, uma aldeia com uma igreja, uma escola primária, uma venda, um café, um cemitério, tanta guerra encontre espaço para se instalar. Mas penso no "Crime de Aldeia Velha", penso nos instintos mais básicos deixados à solta na escuridão pela inflexibilidade do raciocínio, penso em "Dogville" e nos comportamentos tribais, e bate certo.

Famílias que não se podiam ver, nem cheirar. Dois adolescentes apaixonados e fatalmente proibidos de sentirem o que sentiam. Queriam-se. E não foram as raivas dos outros que os transformaram em vítimas, que lhes toldaram o raciocínio e os fizeram afogar-se em revolta e tragédia. Encontravam-se às escondidas, entre os malhadais e o rio, atrás de uma oliveira, no abrigo de uma rocha, e deixaram que a solução se impusesse. Um dia organizaram a sua fuga. Como em quase todas as nossas aldeias, o centro de Cinco Vilas é o adro da Igreja, o símbolo do poder divino como do terreno que por tradição se reflectiu sempre nos campanários, e era esse adro o seu objectivo, a luz do dia, a aceitação da sua condição de casal.

Deixaram pistas, deram nas vistas, picaram as suspeitas, levantaram as antenas de toda a aldeia e, claro, das famílias entrincheiradas que lhes engulhavam o amor. Com humor e com inteligência, foram descobertos na cama um com o outro, escândalo maior em famílias de bem, deus-nosso-senhor-nos-livre. As famílias, por razões maiores, viram-se obrigadas a uma trégua: a coisa não podia ficar assim, era uma pouca vergonha; os desgraçados dos catraios tinham de ser exemplarmente castigados; seriam obrigados a casar, agora, de arma apontada se fosse necessário.

A fuga completou-se no mesmo chão. Casaram. Continuam casados, agora no sopé dos Pirinéus, onde estão tantos outros daquele aquário beirão, onde durante oito anos esteve a minha mãe, de quem são padrinhos. São tão analfabetos como quase todos os que conheço, quartas classes do estado novo, mal aprendidas entre as saídas para o campo, entre livros, ovelhas, vacas e azeitonas, horizontes aparentemente limitados, mundos pequenos e medrosos. Mas têm uma qualquer sabedoria nos olhos e uma ternura nos gestos que eram das poucas coisas que me davam conforto naquelas infantis viagens forçadas. E juram até hoje, com a felicidade matreira desenhada nos sorrisos, que casaram virgens. E eu acredito. Porque assim a história ainda tem mais graça. A história de amor e riso dos padrinhos da minha mãe.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

os brindes do fim do ano, em positivo

Uma das catástrofes da minha vida durante este ano, atrever-me-ia a dizer que a maior das catástrofes, foi entre mudanças internas e externas ter perdido de vista uma case logic cheia de alguns dos cd's que me são mais queridos. A sério, tinha o coração apertadinho de nostalgia e de perda. Penitenciei-me diariamente por não ter feito cem revistas ao território abandonado na torre Foco na Boavista, onde imaginava perdidos e destratados os acólitos do sargento pimenta, a voz juvenil da Joni Mitchell, a Maria Schneider, o Coltrane e o Hartman, mestre Cohen, as noites passadas, a Elis explodindo música em Montreaux, os poros suados do Marvin Gaye. E eis que alguém da sala diz, como se nada fosse, pouco depois do pôr-do-sol do dia 365 de 2007, ó Joana, por acaso não será teu este estojo de cd's que ficou aqui no ano passado? Hã???!!!!!! Depois do luto feito, o messias ressuscita-me assim ao tricentésimo sexagésimo quinto dia, libertando em mim uma alegria estupidamente infantil, traduzida numa perseguição entre sala, cozinha e atelier, que ainda há gente maldosa capaz de fazer uma criança faminta correr desesperadamente atrás de um chupa-chupa tutti-frutti. Ele há amigos sem coração... moram nele, mas são capazes de o arrancar à dentada, caraças! :)

Brinde segundo, apesar das maleitas próprias da idade, e de não ter tido um ano propriamente fácil, a Thara está linda, gorda e feliz como sempre. E a Norah é uma gata magnífica, a Ella continua a ser uma peste endemoinhada - e o meu mindinho que o diga, o Pintas envelhece bem e adocica de ano para ano. E a Índia, mercê talvez das felinas companhias, descobriu que ser gato é bem divertido, sobretudo se implicar esparramar aquele corpanzil negro e compacto em cima de mim e do sofá.


Thara vista pelo seu tio InKoGniTu, num dia de sol

Alguns rostos faltaram, mas as pedras basilares lá estavam. E o nascer do sol... acho que até hoje foi o mais bonito que vi acordar o vale.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

bom ano, gente!

Não percas a esperança... acende o enésimo último cigarro. Frente ao vale e ao primeiro sol.

Carne Assada, 1 de Janeiro de 2008
fotografia de Nuno N., eterno companheiro de alvoradas

... e para começá-lo bem, em B, de bom, de belo, de berdadeiro, Beethoven, 9.ªSinfonia, III Andamento, por Simon Rattle e a Wiener Philharmoniker. Não sei o que será. Mas o que for será verdade. Ou berdade.

III.Adagio molto e cantabile - Andante moderato - Tempo I - Andante moderato - Adagio - Lo stesso tempo
III.Adagio molto e...
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