Há demasiadas coisas que queria dizer-te, coisas em demasia para me dizer a mim. Que sinto o teu cheiro mesmo quando a cidade está vazia sem ti. Que não sei quem és, na medida exacta em que te reconheço todo em todos os silêncios, até naqueles em que estás certo de assim não ser, em todos os olhares em que desconfias que não te olho. Nascem-me por detrás da nuca. Correcção, nascem-me os pensamentos de uma fonte que não vejo, e por trás da nuca me atingem com um duro soco, antes de escorregarem pescoço abaixo, peito abaixo, coração adentro. Quero agarrá-los, tento agarrá-los e não posso. Eu, uma pessoa tão verbal, fico muda diante de ti. Eu, que tanto esforço faço para conter as palavras, seria capaz de meditar nos teus olhos durante toda a eternidade pressentida. Perco o léxico, misturo o vocabulário, não sei dizer coisa com coisa sem coisa plena de coisas, não sei as palavras, não as agarro. Ou elas despegam-se de mim, abandonam-me, aguenta-te agora, torre de pisa, deixa que o vento te vergue para sentires o prazer de te ergueres de novo. Não há apoio lexical que te preserve a verticalidade.
Há demasiadas coisas que talvez devesse dizer-te. Que me assusta a posse, que me repugna a posse, que desconfio da segurança construída antes das construções, que tudo isso senti na pele, sofri na carne, e tudo isso sacudi como um cão, como um vira-lata enfim reconhecido à estrada. Que não passo cheques em branco, nem a mim mesma. Mas que as mãos que por vezes assassinam, também assinam por vontade própria, e só muito mais tarde vêm reclamar as notas de crédito, só depois das vazas vêm trocar as fichas do jogo.
Chamar-te-ia meu, apenas porque ao deixar-te entrar reconheceria a parte de mim que te pertence, não porque te guardaria entre muros. Chamo meu apenas àquilo que me possui. E calo. Preservo o silêncio que os teus olhos me dizem, porque as manhãs mais limpas não têm voz.
7 comentários:
Muito bonito.
Este teu pedaço de coração.
Estas sao talvez das palavras mais bonitas e fortes que li. Estive aqui várias vezes e nunca consegui comentar.
São os vossos olhos, sempre tão generosos comigo.
Devia, talvez, ressalvar que as expressões mais bonitas que aqui estão não são minhas: a cidade vazia sem a presença de alguém é um pouco de Sarah Kane.
E querido K., as limpas manhãs que não têm voz, confio que as conheces tu bem e sabes de que mão saíram. Não? :) beijos.
:)
Eu sei de que mão saíram. Mas ele não se importa que tenham saído das dele para entrarem nas tuas... :)
Minha querida... :) Eu sei que tu sabes. Sabes bem, e não só acerca da última frase.
:)
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