domingo, fevereiro 15, 2009
das marionettentheatre [assalto à mão aberta]
Intervention - The Arcade Fire
e ela disse:
há alguma coisa assim tão extraordinária e fascinante no vosso umbigo, além do cotão?
e ele disse:
não. para lá do desassossego, não. nisso não é muito diferente do vosso.
e ela riu-se. e logo de seguida, tossiu. involuntariamente.
[para o L., um beijo com juros indexados à euribor]
sábado, fevereiro 14, 2009
o poder
É sempre ainda recorrentemente o mesmo. É, parece que dá tusa. Pois. Que expulsa o vazio. Sim, sim. Que traz um sentido ao sentido nenhum. Ai é? Mas o que é que não bate certo em mim, então? Se nenhum poder me insufla o peito sobre um pedestal? Ou se o insufla, dele rapidamente me piro, do desconforto do perímetro reduzido, do frio do mármore a penetrar-me os pés. É que eu adoro sentir tusa. No entanto, o poder... É que também eu encho dia-a-dia os meus vazios, mas primeiro olho-os bem, para não os encher de lixo. Mas o poder... É que talvez há muito tenha deixado de buscar sentidos onde não os há, e aí talvez tenha achado um sentido. Aliás... porque se chama sentido, quando aquilo de que quase todos falam quando procuram o peixe, é de uma meta? Uma contradição em termos. Mais uma...
Talvez por isto tudo, e porque o herói leva sempre uma pilinha em cada mão, quando surge a palavra "poder", acabo sempre a pensar, "maneira estranha de dizer os efes..."
Poder - José Mário Branco
Talvez por isto tudo, e porque o herói leva sempre uma pilinha em cada mão, quando surge a palavra "poder", acabo sempre a pensar, "maneira estranha de dizer os efes..."
Poder - José Mário Branco
sexta-feira, fevereiro 13, 2009
balanço e contas [embora a produção ainda esteja a bombar]
Se o ranho tivesse cotação na bolsa era eu quem salvava o BPN.
Até ao fim da semana, quem se deslocar ao TNSJ ainda vai poder ver como se pode fazer teatro do bom num sanatório. Espera-se que na semana seguinte regresse o elenco do teatro nacional. É clássico: num teatro, pior que os vírus, só as pulgas. Hoje saíu-nos tudo do pêlo. E dos pulmões. E foi uma senhora noite.
[aqui está um espectáculo que eu, cem anos que dure —hope not—, nunca me esquecerei de ter feito]
Até ao fim da semana, quem se deslocar ao TNSJ ainda vai poder ver como se pode fazer teatro do bom num sanatório. Espera-se que na semana seguinte regresse o elenco do teatro nacional. É clássico: num teatro, pior que os vírus, só as pulgas. Hoje saíu-nos tudo do pêlo. E dos pulmões. E foi uma senhora noite.
[aqui está um espectáculo que eu, cem anos que dure —hope not—, nunca me esquecerei de ter feito]
a propósito de Deleuze.
também eu sei bem o que é isso de ser apanhado nos sonhos dos outros. sei-o na pele.
quinta-feira, fevereiro 12, 2009
quarta-feira, fevereiro 11, 2009
double or nothing
Os primeiros dias da semana são sempre particulares, não necessariamente maus, mas mais propensos a acidentes, chamêmo-lhes assim. Basta um dia de pausa, e a coisa parece que desafina ligeiramente, exige toda a nossa atenção, expulsa, por ameaçadora, qualquer mecanização. Por isso mesmo não são necessariamente maus. Hoje foi um exemplo disso.
Já entrámos na fase esquizóide de "um dia, duas peças", vá lá, é tudo alemão e há, realmente, uma matéria qualquer, um cheiro, que é comum. O cansaço, que ainda não está instalado, já sopra com o som daquele vento que só há poucas horas se aquietou finalmente. A Lili em viagens-relâmpago a Lisboa [know the feeling...], outros com carradas de texto para amanhar durante a tarde, outros ainda, espanto dos espantos, têm vidas para além da porta, filhos, pais, gatos, amigos, e começam a sentir que longe de chegarem para tudo, não chegam para nada. Uma plateia cheia de canalhada, o que é porta aberta para o sucesso total ou a lavajice total. Um espectáculo completamente exposto, onde qualquer imprevisto tem de ser integrado e acarinhado [bem o sentimos na primeira noite de Viseu, há uns meses...]. Uma moeda indisciplinada que salta de um bolso para a plateia e exige reacção na ponta da unha — e reacção bonita, nos tempos, nas decisões, na maneira como foi parte da récita.
E eu, com os ouvidos tapados e voz de [aham, perdoem-me, estou no Porto] cona, lancei-me num seja o que Baal quiser, vamos lá despachar isto. A voz forçou-se a subir ligeiramente, defendeu-se, mas só até sentir plenamente o centro. Aí já se deu a alguns luxos, consciente da fronteira do abismo. O riso, jesus, o riso era o pesadelo, sempre a acordar os impulsos da tosse funda, a fazer comichão por dentro. Também eu estava ligeiramente desafinada. E isso obrigou-me a nunca entregar o jogo. Mas a cena é um mistério, realmente. Porque tirando pequenos abismos claros, pequenas emergências que obrigaram ao recurso à cartilha-base, cada passo para entrar no tabuleiro de jogo fazia desaparecer o pingo no nariz, o cansaço físico, o desequilíbrio de eustáquio. A técnica são os paramédicos. Pede-se que venha depressa e desapareça ainda mais depressa.
Diz-me o meu querido Motinha, à volta de um cachorro, que achou que este espectáculo foi especial para mim. Que foi particularmente bom. Que a juke box final foi provavelmente a melhor que eu já fiz. A juke box. Em que eu nem pausas me permitia enquanto não percebi no sangue o que ali estava. O caminho que ela já andou. Hoje eu sei que foi especial. E sei porquê. E ainda me dói. I'm playing double or nothing. Wouldn't do it any other way. E aos meus pés o meu duplo deixou hoje uma dama de ouros.
Já entrámos na fase esquizóide de "um dia, duas peças", vá lá, é tudo alemão e há, realmente, uma matéria qualquer, um cheiro, que é comum. O cansaço, que ainda não está instalado, já sopra com o som daquele vento que só há poucas horas se aquietou finalmente. A Lili em viagens-relâmpago a Lisboa [know the feeling...], outros com carradas de texto para amanhar durante a tarde, outros ainda, espanto dos espantos, têm vidas para além da porta, filhos, pais, gatos, amigos, e começam a sentir que longe de chegarem para tudo, não chegam para nada. Uma plateia cheia de canalhada, o que é porta aberta para o sucesso total ou a lavajice total. Um espectáculo completamente exposto, onde qualquer imprevisto tem de ser integrado e acarinhado [bem o sentimos na primeira noite de Viseu, há uns meses...]. Uma moeda indisciplinada que salta de um bolso para a plateia e exige reacção na ponta da unha — e reacção bonita, nos tempos, nas decisões, na maneira como foi parte da récita.
E eu, com os ouvidos tapados e voz de [aham, perdoem-me, estou no Porto] cona, lancei-me num seja o que Baal quiser, vamos lá despachar isto. A voz forçou-se a subir ligeiramente, defendeu-se, mas só até sentir plenamente o centro. Aí já se deu a alguns luxos, consciente da fronteira do abismo. O riso, jesus, o riso era o pesadelo, sempre a acordar os impulsos da tosse funda, a fazer comichão por dentro. Também eu estava ligeiramente desafinada. E isso obrigou-me a nunca entregar o jogo. Mas a cena é um mistério, realmente. Porque tirando pequenos abismos claros, pequenas emergências que obrigaram ao recurso à cartilha-base, cada passo para entrar no tabuleiro de jogo fazia desaparecer o pingo no nariz, o cansaço físico, o desequilíbrio de eustáquio. A técnica são os paramédicos. Pede-se que venha depressa e desapareça ainda mais depressa.
Diz-me o meu querido Motinha, à volta de um cachorro, que achou que este espectáculo foi especial para mim. Que foi particularmente bom. Que a juke box final foi provavelmente a melhor que eu já fiz. A juke box. Em que eu nem pausas me permitia enquanto não percebi no sangue o que ali estava. O caminho que ela já andou. Hoje eu sei que foi especial. E sei porquê. E ainda me dói. I'm playing double or nothing. Wouldn't do it any other way. E aos meus pés o meu duplo deixou hoje uma dama de ouros.
segunda-feira, fevereiro 09, 2009
much much much
Foi aqui que o ouvi pela primeira vez. Tinseltown Rebellion. Ainda hei-de descobrir esse cd, já que a cassete de crómio já era — produção oficialmente descontinuada no dia do meu trigésimo primeiro aniversário. Oh yeah, she was a fine girl.
[são mesmo posts de molho, estes, jejeje...]
é mesmo para estes dias que estes testes servem...
Grau de tripeirice, avaliado AQUI. E que espanto, a minha tripeirice agarra-se-me à pele. Já tive, durante meses, vista para o Batalha, se eu sei o que quer dizer "vai no Batalha", olá se sei. Esta cidade já me viu de todas as formas feitios, com repas, sem repas, com espinhas e sem elas, e não é por qualquer fino que dou por mim ourada, sobretudo se tiver acabado de comer umas iscas na Filha da Mãe Preta — ou a sagrada francesinha no Santiago. Entre molétes para a boca e pisaduras na carne, eu e o Porto estamos agarrados por um pequenino, subtil, escondido loquete. Murcão e teimoso como o cinza do chão, como o cinza do ar, como esta chuva que não desiste. Como eu, que aqui resisto.

Foz, 7 de Fevereiro de 2009
Tripeiro nato
Você é uma mulher do Norte! Não há nada que lhe escape: que ninguém pense em abordá-la com falinhas mansas sem um cimbalino e uma francesinha na mão! Para si, tudo o que não esteja num raio de cinco quilómetros à volta da Torre dos Clérigos é paisagem. Aprovada com distinção neste teste de Portualidade já pode ir contando com um convite para ser a rainha da noite de S. João.

Foz, 7 de Fevereiro de 2009
Tripeiro nato
Você é uma mulher do Norte! Não há nada que lhe escape: que ninguém pense em abordá-la com falinhas mansas sem um cimbalino e uma francesinha na mão! Para si, tudo o que não esteja num raio de cinco quilómetros à volta da Torre dos Clérigos é paisagem. Aprovada com distinção neste teste de Portualidade já pode ir contando com um convite para ser a rainha da noite de S. João.
hand me back the key
... weather forecast for today: more rain. E eu estou doente [finalmente, quem é que eu penso que sou, a escapar-me assim por entre ventos e (de)graus negativos como se nada fosse?]. E hoje há um eclipse lunar. E claro, na lua cheia, chovem os sinais. Mais, à quoi ça sert...?
milk [curiosamente muito parecido com mlk]
Não é este o filme, mas é este o homem. E o homem e a história são estrondosos, absolutamente. Não é o fim, o assassínio, que os valida. A sensação ao fim de muitas gargalhadas, muito pensamento, muitas lágrimas, muita vibração [caraças, é tão bom ser remexida assim por um filme luminoso sem um pingo de proselitismo!], a impressão final é a de que o filme existiria plenamente sem a morte, tão vivo e válido sem ela como com ela, apenas com um fim diverso. E não são muitas as coisas que dispensam o fantasma da morte para viver em pleno a sua beleza. Acabei de escrever uma parvoíce. Não há vida que não o tenha, não há humanidade que não o traga em si, mesmo que não o traga em primeiro plano. Adiante. Onde está o peixe?
Milk é um filme cheio de luz, porque recebendo as sombras se recusa a colocá-las na gaveta, espeta-as simplesmente na porta do frigorífico, corta-lhes o poder pela raiz. Porque sai das mãos de um realizador-autor-artífice de alto calibre, é uma maravilhosa obra de cinema. Porque tem um elenco fabuloso. Porque tem Sean Penn. E há muito tempo que não me emocionava tanto com um actor. Mesmo.
domingo, fevereiro 08, 2009
flash
Estava a responder ao comentário da Carolina e pensava se a minha resposta seria de fácil leitura ou se a Carolina lá chegaria antes por exclusão de partes. Sou a Placida, dizia-lhe, e simultaneamente ressoou-me como esta Placida é a personalidade com o nome mais escondido — reconhecê-lo-á a Carolina, que o escutou apenas uma vez em toda a peça [embora já no final e tão bem dito...]? Em Goldoni nunca se ouve, Placida é "a peregrina", só quem lê o texto lhe conhece a identidade porque é assim que está escrita a distribuição das personagens na página de guarda, é assim que estão identificadas as suas deixas no texto. Mas é "a peregrina" que o público ouve. Nem ela se apresenta, nem as outras personagens a questionam. Estratégia clássica: é uma viajante, não ter nome adensa-lhe o mistério. Nem o marido finalmente recuperado o pronuncia.
Mas aqui, em Fassbinder, tocam-se outras fronteiras. Aqui também não se apresenta. Aliás, quando é oficialmente apresentada ao grupo, é sob a máscara da identidade falsa — ou seja, a pouco católica peregrina de Fassbinder tem um nome, que não é o seu. Ou será? E ao contrário da peregrina de Goldoni, que faz um percurso solitário, aquela que vem premir o gatilho, ou antes, apontar o cano à cabeça do croupier para que ele redistribua o jogo, faz alianças e influencia tudo o que já estava antes de ela ali ser. "Uma senhora", "a minha mulher", "a sua mulher", "aquela mulher" que é como "um demónio". Mas o reconhecimento vem, a identidade finalmente restituída pelos lábios procurados, pela substância perdida e recuperada. Por aquele cujo nome só a sua boca pronunciava.
Placida, minha querida, podes perdoar-me?
Mas aqui, em Fassbinder, tocam-se outras fronteiras. Aqui também não se apresenta. Aliás, quando é oficialmente apresentada ao grupo, é sob a máscara da identidade falsa — ou seja, a pouco católica peregrina de Fassbinder tem um nome, que não é o seu. Ou será? E ao contrário da peregrina de Goldoni, que faz um percurso solitário, aquela que vem premir o gatilho, ou antes, apontar o cano à cabeça do croupier para que ele redistribua o jogo, faz alianças e influencia tudo o que já estava antes de ela ali ser. "Uma senhora", "a minha mulher", "a sua mulher", "aquela mulher" que é como "um demónio". Mas o reconhecimento vem, a identidade finalmente restituída pelos lábios procurados, pela substância perdida e recuperada. Por aquele cujo nome só a sua boca pronunciava.
Placida, minha querida, podes perdoar-me?
sábado, fevereiro 07, 2009
rock salvation
Esta é definitivamente a eleita: a próxima boca que me disser que não se consegue dançar rock puro e duro, leva com esta nas orelhas. Entre as lufadas que foram a Peaches e os Blur, foram os Stripes que me salvaram a noite na pista. Power, do bom. Como o nosso umas horas antes. Porque, bem, foi uma estreia a partir. É especial, este espectáculo. Talvez por nunca ter estreado, é imune a tudo, menos à nossa tusa. Mas é contagioso como uma doença venérea.
[é a Fassbinder que me reporto, não há maneira de, nas palavras, fugir muito à venalidade; aliás, já há quem diga que este é "um espectáculo absolutamente genital"]
[é a Fassbinder que me reporto, não há maneira de, nas palavras, fugir muito à venalidade; aliás, já há quem diga que este é "um espectáculo absolutamente genital"]
sexta-feira, fevereiro 06, 2009
never resist a goodie
O Sinnerman é a nossa música, sê-lo-á por um mês, e só nós sabemos o lastro que nos dá. E esta cena dessa preciosidade que é The Thomas Crown Affair, é um verdadeiro docinho.
italiana tirada à alemã

Toda a merda, como sempre, é bem-vinda. Estejam à vontade.
O Café
de Rainer Werner Fassbinder
tradução Claudia J. Fischer direcção Nuno M Cardoso com a colaboração de Ricardo Pais música VortexSoundTech desenho de luz Rui Simão preparação vocal e elocução João Henriques interpretação Fernando Moreira, Joana Manuel, João Castro, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Marta Freitas, Paulo Freixinho, Pedro Almendra, Pedro Frias e Tatsumaki (música ao vivo)
6 a 22 de Fevereiro, no Teatro Nacional São João

Não é Milão, belo conde, é Turim. Turim, e não Milão.
sweet web
Sinto-me uma adolescente... bom, não ando aos pulos e aos gritos pela casa, mas estou de queixo caído há quase duas horas e estou aqui a escrever este post, portanto... Fazendo um post mete-se nojo a meio mundo, com a ilusão de que em vez da coisa soar tonta, soa antes fresca. Mas é que não consigo fazer abrandar o meu coraçãozinho de groupie [caramba, cresci nos anos oitenta, é algo que não posso mudar]: a razão da regressão ligeiramente histérica é que fui convidada para ser amiga dos Strokes no imeem! Eu recebi um e-mail dos Strokes! Mais precisamente do baixista, Nikolai Fraiture [o Niko, portanto] — o que bate certo com a minha história com baixos eléctricos e contrabaixos. E em vez de me chatear por causa do Red Light aqui postado há pouco tempo, convida-me para o círculo de amigos. Caramba. Se hoje estivesse em Lisboa e não tivesse uma estreia amanhã, acho que fazia questão de ir para a noite e acabar no Incógnito.
... e depois perguntam-me por que é que gosto tanto da net. Oh amazing modern age!...
... e depois perguntam-me por que é que gosto tanto da net. Oh amazing modern age!...
quinta-feira, fevereiro 05, 2009
half awake
Ao longo do meu tempo, acordei demais para voltar a adormecer. Por isso hoje durmo. Tranquila.
[para M, encore une fois]
quarta-feira, fevereiro 04, 2009
dia por dia

praça da Batalha, 3 de fevereiro de 2009
Chove há três semanas, digo eu. Mas não, respondem-me, parece mais. E vem um rasguinho de luz, e foi-se. E despenha-se um granizo furioso no tempo de um cigarro. E vai-se. E vai o dia escorregando por aí, reluzindo. Um filme que traz uma chave quando começa por acordar uma tranca. Dois braços abertos. E mais dois. E ainda outros dois. Um quarto só para si cuja porta se descerra no descer insuspeito da escada eléctrica. Um viver verdadeiro que enche as circunstâncias imaginárias por hora e meia. Do outro lado do vidro há um pássaro que canta demasiado cedo. E no entanto, tudo bate certo.
no ponto de fuga da mais humana estupidez [ou da mais estúpida humanidade]
Um motorista italiano foi entrevistado por um jornalista português. Já não sei qual o jornal que publicou a entrevista porque isto se passou há largos anos. O que nunca mais esqueci foi uma pergunta que saltou dessa entrevista. Ao tempo, pareceu-me digna de registo. E nesta nossa actualidade tem-me ocorrido à lembrança com uma frequência lamentável.
O motorista conduzia um camião frigorífico que vinha quinzenalmente a Setúbal buscar peixe destinado às bocas italianas. Ao longo da entrevista falou com entusiasmo das muitas coisas que apreciava na vida, desde a ópera até à qualidade especial de certo tinto — tudo isso na Itália. O entrevistador fez a pergunta que se impunha: "E Portugal?"
"Não gosto", respondeu o italiano. E logo lamentou que a profissão o obrigasse a vir até nós constantemente. Para se explicar também não se fez rogado: declarou que achava os portugueses muito tristes, que a nossa via pública era um mostruário de rostos abatidos. Coisa que o inquietava tanto que lhe apetecia interpelar os transeuntes desta forma: "O que é que vos aconteceu?"
Se esta pergunta forte fosse feita agora, penso que toda a resposta a ela iria dar ao 25 de Abril. A variação seria consoante o bode expiatório político escolhido por quem respondesse. Mas a entrevista ocorreu quando Salazar gozava de saúde forte e feia.
Os democratas da perseguida oposição ao salazarismo devem ter pensado, lendo a entrevista, que a situação retrógrada originada pela ditadura era a causa exclusiva da tristeza geral que tanto perturbara o motorista italiano. Quanto aos salazaristas, esses sempre acusaram a democracia anterior ao 28 de Maio como a grande culpada do atraso português (quando ousavam confiar uns aos outros que havia atraso).
Na democracia anterior ao 28 de Maio, as acusações foram tantas e jorraram de tantos lados que é impossível resumi-las senão dizendo que os republicanos se acusaram uns aos outros e aos monárquicos, os quais, por sua vez, viam na República a fonte de todos os vícios e acusavam a Coroa de, por brandura, não ter sabido impedir a implantação da Republica. Este género de reflexão leva-nos a recordar que os monárquicos absolutistas olharam sempre para os monárquicos liberais como agentes enviados pelo demónio a fim de provocar a perdição de Portugal. Quanto aos males sobrevindos ao longo do absolutismo, eles foram explicados por vários adeptos do absolutismo como consequência de um declínio que a Restauração da Independência em 1640 não logrou deter. O leitor, neste ponto, já está a entrever (e bem) o sebastianismo resultante da derrota de Alcácer-Quibir. Mas convém lembrar que essa derrota proveio de uma expedição que Camões receitou a D.Sebastião para curar Portugal da apagada e vil tristeza diagnosticada n'Os Lusíadas.
Bem, parece que a marcha atrás na História não resulta. Dou meia volta para recordar um episódio. Verídico.
Numa noite de santo popular, houve uma disputa num arraial. De leve que começou, deu em aquecer tanta gente e de tal modo que a pancadaria grossa estava quase a rebentar. Subitamente, um homem muito alto abriu caminho ao encontrão, até alcançar o epicentro da contenda. Aí chegado ele soltou um "Alto aí" de autoridade imensa. A reforçar o berro, meteu a mão no bolso interior do casaco, enquanto fuzilava os circunstantes com um olhar de algemas. As pessoas imobilizaram-se, mesmo as mais acaloradas. E toda aquela gente aguardou, resignada, que o desconhecido exibisse um crachat da Polícia.
Mas sucedeu que a mão oculta no casaco reapareceu empunhando uma gaita de beiços, que o homem logo meteu à boca para começar a tocar o fandango. Estalou uma gargalhada geral, seguida de uma salva de palmas. E a zaragata que estava prestes a estragar tudo não se deu.
À luz deste episódio, eu responderia à pergunta do motorista italiano dizendo que nos tem faltado o homem da gaita, e que a ausência dele tem deixado por explorar a face oculta da nossa lua: a capacidade para rir e desarmar com esse riso a solenidade e dramatização que trazem a nossa vida colectiva de sobrolho carregado. E, por tabela, a nossa vida individual.
O riso a que me refiro não é o riso contra, ou o riso à custa de alguém. É o riso que salvou o arraial no episódio que narrei, e no qual a propensão para o humor puro prevaleceu sobre códigos de homens ali prestes a ditarem mais uma cena de violência inútil.
Quando me recordo dos debates parlamentares a que assisti em Londres, penso que o que mais me impressionou foi o recurso constante ao sentido de humor, que mantém respirável a atmosfera que os problemas graves e as tensões políticas carregam, inevitavelmente. O que o homem da gaita conseguiu com o seu gesto foi mostrar que a agressividade ali crescente era evitável por desnecessária. Mas tal só foi possível graças à resposta que o seu gesto obteve. Isto, que aconteceu num beco de Lisboa, não será possível no beco nacional?
Nuno Bragança, 1929-1985; o JL [não o meu João Luc, mas o Jornal de Letras] vai no número 1000 e quem ganha é quem ainda não lia quando saíu esta crónica — que se chamou A Pergunta, mas também se poderia inscrever nas conferências sobre o fanatismo publicadas por Amos Oz. Ainda vivo, porque de língua viva, este nosso ómãi qe dava pulus.
[boca direitinha para um jardim de Praga: aguardo-vos em Veneza, bem como ao ómãi qe dava pulus ;)]
O motorista conduzia um camião frigorífico que vinha quinzenalmente a Setúbal buscar peixe destinado às bocas italianas. Ao longo da entrevista falou com entusiasmo das muitas coisas que apreciava na vida, desde a ópera até à qualidade especial de certo tinto — tudo isso na Itália. O entrevistador fez a pergunta que se impunha: "E Portugal?"
"Não gosto", respondeu o italiano. E logo lamentou que a profissão o obrigasse a vir até nós constantemente. Para se explicar também não se fez rogado: declarou que achava os portugueses muito tristes, que a nossa via pública era um mostruário de rostos abatidos. Coisa que o inquietava tanto que lhe apetecia interpelar os transeuntes desta forma: "O que é que vos aconteceu?"
Se esta pergunta forte fosse feita agora, penso que toda a resposta a ela iria dar ao 25 de Abril. A variação seria consoante o bode expiatório político escolhido por quem respondesse. Mas a entrevista ocorreu quando Salazar gozava de saúde forte e feia.
Os democratas da perseguida oposição ao salazarismo devem ter pensado, lendo a entrevista, que a situação retrógrada originada pela ditadura era a causa exclusiva da tristeza geral que tanto perturbara o motorista italiano. Quanto aos salazaristas, esses sempre acusaram a democracia anterior ao 28 de Maio como a grande culpada do atraso português (quando ousavam confiar uns aos outros que havia atraso).
Na democracia anterior ao 28 de Maio, as acusações foram tantas e jorraram de tantos lados que é impossível resumi-las senão dizendo que os republicanos se acusaram uns aos outros e aos monárquicos, os quais, por sua vez, viam na República a fonte de todos os vícios e acusavam a Coroa de, por brandura, não ter sabido impedir a implantação da Republica. Este género de reflexão leva-nos a recordar que os monárquicos absolutistas olharam sempre para os monárquicos liberais como agentes enviados pelo demónio a fim de provocar a perdição de Portugal. Quanto aos males sobrevindos ao longo do absolutismo, eles foram explicados por vários adeptos do absolutismo como consequência de um declínio que a Restauração da Independência em 1640 não logrou deter. O leitor, neste ponto, já está a entrever (e bem) o sebastianismo resultante da derrota de Alcácer-Quibir. Mas convém lembrar que essa derrota proveio de uma expedição que Camões receitou a D.Sebastião para curar Portugal da apagada e vil tristeza diagnosticada n'Os Lusíadas.
Bem, parece que a marcha atrás na História não resulta. Dou meia volta para recordar um episódio. Verídico.
Numa noite de santo popular, houve uma disputa num arraial. De leve que começou, deu em aquecer tanta gente e de tal modo que a pancadaria grossa estava quase a rebentar. Subitamente, um homem muito alto abriu caminho ao encontrão, até alcançar o epicentro da contenda. Aí chegado ele soltou um "Alto aí" de autoridade imensa. A reforçar o berro, meteu a mão no bolso interior do casaco, enquanto fuzilava os circunstantes com um olhar de algemas. As pessoas imobilizaram-se, mesmo as mais acaloradas. E toda aquela gente aguardou, resignada, que o desconhecido exibisse um crachat da Polícia.
Mas sucedeu que a mão oculta no casaco reapareceu empunhando uma gaita de beiços, que o homem logo meteu à boca para começar a tocar o fandango. Estalou uma gargalhada geral, seguida de uma salva de palmas. E a zaragata que estava prestes a estragar tudo não se deu.
À luz deste episódio, eu responderia à pergunta do motorista italiano dizendo que nos tem faltado o homem da gaita, e que a ausência dele tem deixado por explorar a face oculta da nossa lua: a capacidade para rir e desarmar com esse riso a solenidade e dramatização que trazem a nossa vida colectiva de sobrolho carregado. E, por tabela, a nossa vida individual.
O riso a que me refiro não é o riso contra, ou o riso à custa de alguém. É o riso que salvou o arraial no episódio que narrei, e no qual a propensão para o humor puro prevaleceu sobre códigos de homens ali prestes a ditarem mais uma cena de violência inútil.
Quando me recordo dos debates parlamentares a que assisti em Londres, penso que o que mais me impressionou foi o recurso constante ao sentido de humor, que mantém respirável a atmosfera que os problemas graves e as tensões políticas carregam, inevitavelmente. O que o homem da gaita conseguiu com o seu gesto foi mostrar que a agressividade ali crescente era evitável por desnecessária. Mas tal só foi possível graças à resposta que o seu gesto obteve. Isto, que aconteceu num beco de Lisboa, não será possível no beco nacional?
Nuno Bragança, 1929-1985; o JL [não o meu João Luc, mas o Jornal de Letras] vai no número 1000 e quem ganha é quem ainda não lia quando saíu esta crónica — que se chamou A Pergunta, mas também se poderia inscrever nas conferências sobre o fanatismo publicadas por Amos Oz. Ainda vivo, porque de língua viva, este nosso ómãi qe dava pulus.
[boca direitinha para um jardim de Praga: aguardo-vos em Veneza, bem como ao ómãi qe dava pulus ;)]
terça-feira, fevereiro 03, 2009
no fio da meada [esta não vem no Sun Tzu]
Qualquer fortaleza solidamente erguida é um bom refúgio para a cobardia.
troika
Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: "Então é assim",
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança "propostas" decisivas
e percorre as "vertentes" de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.
Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
"tropeço de ternura", queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o "espírito
do tempo" em que vivemos, sob escombros
de um céu esmoronado, em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.
Fernando Pinto do Amaral, "Zeitgeist", in Às Cegas
Stay Tuned - Robert Wyatt
DON MARZIO Então, já ressuscitaste de entre os mortos?
TRAPPOLO Uma pessoa não morre assim tão facilmente, Don Marzio, agarra-se à vida. Tendes sorte, tendes entendimento na cabeça. Eu não. Estou mal arranjado.
DON MARZIO Pois, o entendimento tem que se lhe diga.
Rainer Werner Fassbinder, Das Kaffeehaus [nach Goldoni], Acto III, trad.:Cláudia Fischer
e dizem: "Então é assim",
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.
Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança "propostas" decisivas
e percorre as "vertentes" de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.
Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.
Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
"tropeço de ternura", queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pela madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acédia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o "espírito
do tempo" em que vivemos, sob escombros
de um céu esmoronado, em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.
Fernando Pinto do Amaral, "Zeitgeist", in Às Cegas
Stay Tuned - Robert Wyatt
DON MARZIO Então, já ressuscitaste de entre os mortos?
TRAPPOLO Uma pessoa não morre assim tão facilmente, Don Marzio, agarra-se à vida. Tendes sorte, tendes entendimento na cabeça. Eu não. Estou mal arranjado.
DON MARZIO Pois, o entendimento tem que se lhe diga.
Rainer Werner Fassbinder, Das Kaffeehaus [nach Goldoni], Acto III, trad.:Cláudia Fischer
estado meditacional
As teias. Mas não somos aranhas. Talvez, num passado muito muito longínquo que para todos os efeitos foi só há um bocadinho, o tenhamos sido ou parecido. Mas não somos. Não queremos ser. Por isso abstractizamos, e alargamos os desejos, porque não nos satisfaz a mosca. Só que ao fazê-lo fazemos crescer as necessidades, que com subtis avisos se auto-degeneram em vícios. Até que nada vejamos para lá da mosca. E depois de andarmos em círculos, até nos esquecemos que de Buda a Maquiavel a distância não é assim tão extensa. You run it on the flip of a coin.
Pois eu cá não papo moscas. Om Shanti Om.
Pois eu cá não papo moscas. Om Shanti Om.
domingo, fevereiro 01, 2009
não é? [para o L.]
Mais enervante do que pessoas que acabam as frases com "não é?", são as que as acabam com um "hã?!" que soa a intimidação misturada com surdez. Pode não ser nem uma coisa nem outra, mas por mais entusiasmante que seja o discurso, dá vontade de interromper constantemente com um solícito "não não, eu não disse nada..."
mão no fogo [post para mim]

Porto, hoje de Janeiro de 2009
As estórias repetem-se em roda, encuraladora, enredemoinhadora. Impõe-se o duro trabalho da indiferença. Não jogo. Não gosto. Não é o poder o motor da minha vida. Não dou esse poder a ninguém. É precisamente para isto que servem os descansos. Um bom tinto à lareira, muita palheta clara e franca e amorosa, as peças da semana louca caindo à vez no puzzle e dois ou três passos atrás para alargar a angular. E para ganhar balanço. Água a potes para limpar a lente. I've writt'it ten times or more, it's about to be writ again as I ask you to focus on...
Life On Mars? - David Bowie
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