quinta-feira, abril 23, 2009

as palavras e o acaso — círculo de sonhos

HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM

O historiador árabe El Ixaqui refere este acontecimento:
"Contam os homens dignos de fé (mas só Alá é omnisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem possuidor de riquezas, mas tão magnânimo e liberal que as perdeu todas menos a casa de seu pai, e se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou tanto que o sono o venceu uma noite debaixo da figueira do seu jardim e viu no sonho um homem todo encharcado que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: 'A tua fortuna está na Pérsia, em Ispaão; vai lá buscá-la.' Na madrugada seguinte acordou e empreendeu a longa viagem e enfrentou os perigos dos desertos, dos navios, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou finalmente a Ispaão, mas no recinto dessa cidade surpreendeu-o a noite e deitou-se a dormir no pátio de uma mesquita. Havia, junto à mesquita, uma casa e, pelo decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões atravessou a mesquita e meteu-se na casa, e as pessoas que estavam a dormir acordaram com o barulho dos ladrões e gritaram por socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos guardas-nocturnos daquelas redondezas acudiu com os seus homens e os bandoleiros fugiram pelo terraço. O capitão mandou revistar a mesquita e nela encontraram o homem do Cairo e deram-lhe tantos açoites com varas de bambu que esteve às portas da morte. Ao fim de dois dias, recuperou os sentidos na prisão. O capitão mandou-o buscar e disse-lhe: 'Quem és tu e qual é a tua pátria?' O outro declarou: 'Sou da famosa cidade do Cairo e o meu nome é Mohamed El Magrebi.' O capitão perguntou-lhe: 'O que te trouxe à Pérsia?' O outro optou pela verdade e disse-lhe: 'Um homem ordenou-me num sonho que viesse a Ispaão, porque aí estava a minha fortuna. Já estou em Ispaão e vejo que essa fortuna que me prometeu devem ser os açoites que tão generosamente me deste.'

Perante semelhantes palavras, o capitão riu-se até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: 'Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo há um jardim, e no jardim um relógio de sol e depois do relógio de sol uma figueira e a seguir à figueira uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, contudo, aborto de uma mula com um demónio, vagueaste de cidade em cidade, somente por acreditar num sonho. Que eu não volte a ver-te em Ispaão. Toma estas moedas e vai-te embora.'

O homem guardou as moedas e regressou à pátria. Debaixo da fonte do seu jardim (que era o do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus o abençoou e o recompensou e exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto."

(Do livro d'As Mil e Uma Noites, 351,ª noite.)



in História Universal da Infâmia, "Etcétera", Jorge Luis Borges (trad. José Bento)





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