quarta-feira, setembro 24, 2008

os alvos — complexo de Cassandra

Eu ando preocupada com isto, não posso dizer que não ando. Em poucos dias ouvi muita gente a desembocar precisamente no mesmo ponto, por um caminho ou por outro. E não, não acho que seja leve, inconsequente, insignificante. É a própria matéria das mentalidades que forma o presente e consequentemente o futuro —para não dizer o passado, já que ele não é mais do que a lente com que o lemos. É a vox populi, é a facilidade com que se aceita certas explicações, com que se adopta as teses, com que se tira negrume aos germes do ódio, ciclicamente reacendidos para dar à classe média em apuros um saco de pancada que amorteça a revolta.

Não ponho em causa que o marido da irmã da prima de alguém esteja no SEF a trabalhar e afirme que há dois gangues provenientes das favelas brasileiras a operar em Portugal —também não ponho em causa que a pessoa em questão tenha visto a Tropa de Elite há pouco tempo e nunca tenha pensado muito sobre a Cidade de Deus. Não ponho sequer em causa que haja imigrantes aldrabões, preguiçosos, oportunistas, como tantos portugueses o são e o foram por esse mundo fora. Nem ponho em causa que haja imigrantes, com ou sem papéis, envolvidos nesta famosa onda de insegurança que repete alarmismos de há cinco, dez, cem, mil anos atrás. Tu queres ver que os imigrantes são gente, tão reles como quase toda a gente? E tu queres ver que houve em tempos um escritor que escreveu um romance em que um homem pobre se tornava prisioneiro e depois foragido por ter roubado um pão para alimentar a família? Liberté, égalité, fraternité, era um belo romance, ainda não havia era prémios Nobel...

Mas choca-me, preocupa-me, e muito, que as bocas da classe-média em crise vejam na "imigração descontrolada" a causa basilar dessa tal insegurança [eu devo ser ET, já passei por incontáveis épocas de caça ao gatuno, e passa-me sempre o ambiente sin city ao lado... sou burra, com certeza]. Tem sido recorrente. Conto, sem pensar, três conversas semelhantes na mesma semana, com pessoas diferentes. A crise, e basta andar só um bocadinho atento às análises mais terra-a-terra da coisa, tem vencedores e vencidos, não é um machado aleatório, a acumulação selvagem de capital só pode, porque só pode senhores, espalhar miséria. E a miséria e a legalidade nunca se deram, pois só há regras iguais para iguais, entre iguais, e a igualdade não se compadece com a mimese de selva que os seres humanos gostam de construir nas suas colmeias. Ah, eu sou um leão, vou comer-vos a todos, ó carneirinhos, grrrrrr, tu vais primeiro, que és preto, a norma é que as ovelhas sejam brancas, ó ameaça!!! De quem é a culpa da falência da Lehman Brothers? De algum dono de boca de um qualquer morro perdido no Rio de Janeiro? Ou não, já sei, deve ser de um funcionário público português —ui, esses devem ceder de bom grado aos brasileiros o lugar de bode expiatório.

O problema, dizem-me portanto, é a imigração. As máfias. Os que vêm "para viver à conta". Os ex-favelados. Ninguém se pergunta nada, ninguém se questiona nada. Ninguém revê a matéria dada, as incontáveis tragédias que se construíram em cima de afirmações nem bem nem mal-intencionadas, apenas vantajosas aos poderes que se alimentam da preguiça de pensar, da preguiça de viver, da ânsia intrínseca de sobrevivência, da cobardia generalizada. O médico deixou morrer o doente? Bate-se no enfermeiro. O patrão fechou a fábrica? Espanca-se o motorista. Os direitos adquiridos e as nações estão a saque? A culpa é dos brasileiros. Está certo. Fiquemos no nosso cantinho, que isto há-de passar e alguém nos há-de dar um torrãozinho a chupar, se balirmos afinados. Isto se não passarmos nós próprios pela grelha primeiro...

2 comentários:

MPR disse...

Eu que tenho ar de mouro e até já fui confundido por turco devo estar na linha da frente...
Mas a hipocrisia e o "double-standart" são comuns. A emigração é um cancro culpada pela criminalidade, excepto quando somos nós os emigrantes, o Estado deve ficar fora dos mercados financeiros, excepto agora que os mercados foram para o galheiro, todos temos os mesmos direitos, excepto se formos homossexuais, homens e mulheres são iguais, excepto na hora de fazer o jantar... and so on, and so on...

Manel disse...

... and so on, and so on...


E depois ficamos chocados com as deportações que os EUA fazem para os Açores... claro, é o nosso standard, nós somos o centro e a razão do universo. O que se aplica a nós, aplica-se a nós e pronto. O inferno são os outros. Sempre.


O fado do coitadinho...