Isto é que foi uma tarde, sim senhor. Duas horitas de observação de uma espécie muito especial: o deputado. Ou melhor dizendo, os deputados, que as variantes são algumas, ainda assim, e, felizmente, antagónicas.
Hoje discutiu-se, pela primeira vez, o estatudo do trabalhador intermitente. No debate parlamentar agendado pelo PCP, três propostas se apresentaram, dos comunistas, do Bloco e do Governo. A ministra Pires de Lima ainda se congratulou, a dada altura, por neste governo se debater finalmente a aberração que é a [falta de] estatuto dos trabalhadores do espectáculo em Portugal, perdendo um bom momento para estar calada. Bonito bonito teria sido o governo perceber a urgência do assunto e trazê-lo à discussão. Não só não aconteceu - e sem o reboque do PCP não aconteceria de todo - como a proposta do governo é esburacada. Nada é obrigatório, tudo é facultativo, ou seja, caros empregadores, esqueçam os contratos de trabalho, os recibos verdes aí estão para vos servir. Para além disso os contratos de intermitência parecem desenhados a convidar à substituição por estes dos contratos sem termo. Ou seja, quem está precário precário fica, quem não está precário pode preparar-se para passar a receber apenas 30% do ordenado quando não há espectáculos programados. O que muito inquieta, e bem, os bailarinos da CNB, empregados... do Estado. Bonito, não é? Mais bonito ainda é o adiamento da discussão sobre a Segurança Social, proposto pelo governo, quando é esse o ponto mais premente e mais dramático da vida profissional dos intermitentes. E quando finalmente falou do eventual agendamento de tal debate, concretizou referindo-se apenas às profissões de desgaste rápido, donde, às reformas dos bailarinos. Assim, en passant. Intenções de discutir o muito que pagam e o nada a que têm direito os intermitentes, tá caladinho, ou seja, podemos esperar sentados. Cada vez me é mais claro que o mais importante das intenções políticas se revela nos mais pequenos pormenores. A reforma das profissões de desgaste rápido é importante. Mas deixa de fora centenas e centenas de profissionais que lutam todos os dias contra a impiedade do mercado e do estado, que venha o diabo e escolha. Tudo mais que revelador quanto às preocupações do governo com a realidade profissional de artistas e técnicos. Estamos conversados.
Felizmente também as propostas do PCP e do BE foram aprovadas e, como se diz, baixaram à especialidade. Este foi só o primeiro passo. É preciso dissecar cada proposta e dizer de nossa justiça, antes que a comissão chegue, por fim, ao projecto final. Pessoal saltimbanco, orelhas de elefante e olhos no meio da testa, como o Barnabé. É preciso pôr a questão da segurança social no lugar que merece, o da justiça social, o do respeito pelo profissional e pelo ser humano. Dos meus olhos atentos e patas na terra à maneira do cão raivoso tentarei regularmente dar-vos conta por aqui.
Mas devo dizer-vos que para mim foi uma estreia. Nunca antes entrara em São Bento, embora muitas vezes tenha estado nas escadarias [não, felizmente não conheço o patego que mostrou o rabo à Ferreira Leite, ou melhor, à PSP]. E foi uma tarde esclarecedora. Quase tão esclarecedora como deprimente.
Não me incomodam propriamente os lugares vazios. Só quem não quer é que não sabe que o trabalho de um deputado não se esgota no hemiciclo e que existem reuniões simultâneas ao plenário. Não são os que estão fora que incomodam. Os que ficam é que chateiam. A divisão não é em linha recta, mas é clara a fronteira de atitude e de respeito bem marcada ali na região centro-esquerda. É inenerrarrável o comportamento da quase totalidade dos presentes em representação de CDS, PSD e muito PS. Conversam sem atenção ao tom de voz, dizem piadas, circulam sem objectivo aparente, não têm um pingo de respeito por quem está a falar nem pelos assuntos que se discutem. Para quê, afinal? Vou votar onde manda o chefe, nem vale a pena dar-me ao trabalho de ler os diários para saber o que aquele patego esteve para ali a ladrar enquanto eu ouvia as larachas do Nuno Melo para depois repeti-las ao Santana que vai passar por aqui só para cumprimentar o pessoal e depois vai à vida dele, dom ubu quero cá saber! À minha frente um deputado circulava entre as duas bancadas mais à direita, abrindo e fechando o portátil, abrindo e fechando o messenger, saindo e entrando de maço de cigarros na mão. A menina que usou o tempo do PSD não ouviu rigorosamente nada do que os deputados dos outros partidos disseram, apenas leu com graça o que tinha já escrito no papelinho [as propostas mais à esquerda eram voluntaristas e sobre-protectoras, a anedota da tarde, sem dúvida] e respondeu à interpelação que lhe fizeram. Ah pois respondeu, e que remédio teve senão o de reconhecer que o PSD não pode arrotar postas de pescada no que respeita a políticas de cultura, mas o resto do tempo esteve sempre em amenas cavaqueiras com os colegas de carteira, nomeadamente com o viciado em msn. Nem quero imaginar qual será o nick.
Não estou surpreendida, é essa a verdade. Mas a política nacional consegue chocar-me mesmo quando não me surpreende. Mais de metade do nosso parlamento é ocupada por meninos da mamã, por estrelas do recreio. Algo está intrinsecamente, doentiamente, anti-democraticamente mal nisto. Noutras galerias, várias visitas de estudo de escolas preparatórias e secundárias. Nas casas-de-banho, professoras em choque e revolta com o espectáculo que não pode ser exemplo para os que com elas estão para aprender. Logo durante a primeira intervenção, a do comunista António Filipe, Jaime Gama pediu respeito e atenção aos deputados que mostram não respeitar a função que lhes cabe. E nem as professoras nem nós fomos acusados de desrespeito por termos repetidamente projectado sonoros "ssscccchhhhhhh" colectivos sobre os meninos malcriados que fazem o mais pacífico dos pacíficos suspirar por uma palmatória. No mínimo, deviam ter vergonha. No máximo, deviam passar todos a trabalhar a recibos verdes, sem contrato, sem horário de trabalho, sem subsídio de desemprego, sem reforma. Como nós, que nem sequer andamos aqui a gozar com a cara de ninguém.
quinta-feira, maio 10, 2007
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10 comentários:
bem-vinda (benvinda) ao mundo real
não sei se foste aos Passos Perdidos aos corredores em torno do hemiciclo... aí é comum amenas cavaqueiras entre os adversários. Tão amigos que eles afinal são. O futebol é um tema muito comum e as «gajas» também.
Não duvido... mas as minhas companhias são outras, mesmo no ninho dos leões.
Uma bomba! Uma bomba naquelas trombas todas...
Este país precisa de uma purificação a câmara de gás... Eça tinha razão: este país é governado por anedotas e sempre o foi. Aqui, à beira-mar plantado, nunca houve nem nunca haverá estadistas. Apenas analfabetos que são filhos dos filhos de quem pouco fez para merecer um assento na Assembleia. Querem maior monarquia que esta? Monarquia da imbecilidade. E nós, plácidos, deixamo-nos comer...
A monarquia da imbecilidade, sem dúvida... e da sacanisse, e da arrogância, e da falta de lisura e de brio e de vergonha na cara, e da inutilidade. E por aí fora.
Visto que afinal os deputados só trabalham de vez em quando, não deveriam eles ser abrangidos por esta nova lei? É que o que descreve não me parece nada trabalho. São tão a favor da liberalização da economia, da avaliação no Estado... Ora bem, apoiado, vamos lá avaliar os deputados!
os deputados até trabalham. parece é que não. não se sabem comportar. não sabem estar. nem estão onde deviam parecer estar. é também uma questão de aparências.
MANEL tem muita razão em várias coisas no que diz. há uma questão que é imagem, o parecer sério... e nisso falha-se muito em São Bento. Pode ser injusto, mas a culpa é dos senhores da deputação.
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adoro este blogue!!!!!!
Nem nunca achei que a responsabilidade fosse de quem quer que fosse se não dos próprios. Se trabalham, não sei, mas que não respeitam os outros e consequentemente não se respeitam a si mesmos nem a quem os elege, isso ficou bem claro.
E este blogue adora-te, carago! Isto anda muito mais mexido desde que tu apareceste. ;)
sou trabalhadora a recibos verdes, precisamente da área do espectáculo.
além do choque que o relato sobre a posição do PS (apesar, como dizes, não ser nada de novo),a tristeza de ter esta cambada de mulas como meus (pobres) representantes.
e, sim, punha-os a recibos verdes, a ganhar 500 euros por mês há 2 anos, a ter de daí descontar a segurança social (já vai em 150 euros por mês), com o cônjuge desempregado e a bulir pelo menos 8 horas por dia como se devesse isso à "entidade patronal", a tentar apanhar as capelinhas todas, os trabalhinhos todos que pudessem desenrascar, a chegar todos os dias pelo menos às 11 da noite a casa, pagando, obviamente, do seu bolso, a gasolina das deslocações e os telemóveis para implorar pagamentos e trabalho.
ah, e num belo dia, aparecer-lhes-ia o patrão a dizer "desculpa lá, Marques, mas isto agora tá fraco, por isso este mês tens de ir para casa porque eu não te posso pagar". confessando, mais tarde, que, além de poupar um mês de ordenado, vê-se assim livre da obrigação de passar a contrato um trabalhador que recebe continuamente há mais de um ano da mesma empresa, a recibos.
só me ocorre um chorrilho de palavrões...
ai, e Manel, obrigada pelo post :)
Ora, de nada. Eu é que agrdeço o comentário. Outros posts, palpita-me, se seguirão.
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