terça-feira, setembro 30, 2008
1.º flash — quinta-feira, 2 de outubro, às 19h30, largo do Chiado
Basta uma folha em branco e uma caneta. E às 19h30, escrever na folha em branco "Acesso ao Casamento Civil", e de seguida erguer a folha para que tod@s a possam ler. Ao fim de um minuto, deves dispersar, como se nada tivesse acontecido.
Nota para um país de atrasados crónicos:
convém estar lá um pouco antes, para que a intervenção tenha o efeito pretendido.
Nota 2 para um país de atrasados crónicos [que ninguém se ofenda, estou a falar de mim também, certo?]:
Não estamos a legislar para gentes remotas e estranhas. Estamos a ampliar as oportunidades de felicidade dos nossos vizinhos, dos nossos colegas de trabalho, dos nossos amigos e das nossas famílias e, ao mesmo tempo, estamos a construir um país mais decente. Porque uma sociedade decente é aquela que não humilha os seus membros".
Foi o argumento final do senhor Zapatero, lembram-se? E bom, na verdade, é tão simples como isto. Tão simples como mudar uma expressão entre vírgulas no código civil para que ele deixe de ser inconstitucional. Não custa dinheiro. É uma premência, num país que se define como uma democracia com base numa lei fundamental que se chama Constituição e que diz, no ponto 2 do art.º13, que "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual."
Não é uma questão partidária. Não é uma troca de prioridades. Não é um problema secundário. Não é folclore. É algo que é bem mais básico, mais basilar, mais essencial do que isso. É a defesa da plena cidadania, com todos os seus direitos, para quem nunca deixou de ter qualquer dever. É uma questão de decência.
Esta é só a primeira. Dia 8 há mais.
Nota para um país de atrasados crónicos:
convém estar lá um pouco antes, para que a intervenção tenha o efeito pretendido.
Nota 2 para um país de atrasados crónicos [que ninguém se ofenda, estou a falar de mim também, certo?]:
Não estamos a legislar para gentes remotas e estranhas. Estamos a ampliar as oportunidades de felicidade dos nossos vizinhos, dos nossos colegas de trabalho, dos nossos amigos e das nossas famílias e, ao mesmo tempo, estamos a construir um país mais decente. Porque uma sociedade decente é aquela que não humilha os seus membros".
Foi o argumento final do senhor Zapatero, lembram-se? E bom, na verdade, é tão simples como isto. Tão simples como mudar uma expressão entre vírgulas no código civil para que ele deixe de ser inconstitucional. Não custa dinheiro. É uma premência, num país que se define como uma democracia com base numa lei fundamental que se chama Constituição e que diz, no ponto 2 do art.º13, que "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual."
Não é uma questão partidária. Não é uma troca de prioridades. Não é um problema secundário. Não é folclore. É algo que é bem mais básico, mais basilar, mais essencial do que isso. É a defesa da plena cidadania, com todos os seus direitos, para quem nunca deixou de ter qualquer dever. É uma questão de decência.
Esta é só a primeira. Dia 8 há mais.
vencer na vida
You don't know what winning is, you're a loser. 'Cause you're dead inside, and you can't live unless you make everything dead around you.
Eu estou triste, pronto. Mesmo se, as far as we know, ganhou tudo o que tinha a ganhar. E eu ganhei alguns dos filmes da minha vida, com o seu rosto na película, ou com o seu olho. O efeito dos raios-gama no comportamento das margaridas é um dos filmes mais misteriosos e cheios que já vi. É o filme de um actor, no que de melhor isso pode ter.
Um filme de mulheres, pois. Não é todo o homem que os sabe fazer. Além de que era lindo que dói. Paul Leonard Newman, 1925-2008. He will be missed.
segunda-feira, setembro 29, 2008
coisas que me fazem chorar
... então se for tocado pelo Puto, é uma pieguice pegada. Seja a luz como for.
com luz, não dá...
O órgão lá ao fundo, por detrás do altar coberto pela toalha branca. Entre o ranger dos bancos a cada movimento de rabo desconfortado —e ainda eram uns quantos rabos—, os sussurros de quem é capaz de aguentar o desconforto da madeira patriarcal apenas para ir trocando banalidades enquanto lá ao fundo se toca muito bem música genial, e a sola de borracha que umas doc pretas não se cansaram de esfregar no chão de pedra bem perto do meu ouvido. E tudo isto potenciado por na Sé não deixarem que o sol se ponha enquanto houver vivalma presente, uma luz amarela, perscrutadora, impertinente, que forçava os olhos a fecharem-se buscando a relapsa concentração. Hans Ola-Ericsson conversou com o público antes de se resguardar entre as cátedras bispais. Eram meditações, o que íamos escutar, do místico génio que se considerava, antes de tudo, ornitólogo, depois escritor de ritmos e só por último compositor de música. Meditações, senhor? Só se for pelo desafio à paciência, que o desespero de ouvir Messiaen com aquela luz faz com que a única atitude possível seja a de beata, inclinada sobre o banco vazio da frente para aliviar os rins —cenas de gaja— e os ouvidos dos sussurros nas minhas costas, os braços inquietos a evitar as mãos postas, os olhos fechados, a cabeça baixa. Ou isso, ou nem um cheirinho de Meditações, quanto mais da sAntíssima tRindade. Mas sim, pronto, meditação. Porque foi um exercício zen, sem dúvida. É que, caramba, há coisas que não devia ser preciso dizer... Antes às escuras, está bem? Ou com uns archotes. Pensem nisso...
*agradecimentos e engraxamentos ao meu JL, pelo plágio... ;)
*agradecimentos e engraxamentos ao meu JL, pelo plágio... ;)
domingo, setembro 28, 2008
domingo
Which 1950's PIN-UP Girl are you?
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Gosto. Porque gosto da franjinha, que também já tive. Porque gosto do rosto, que não me lembro de não reconhecer, dos olhos azul-cinza como os da minha Rodrigues, do cabelo asa-de-corvo como o da minha Lalão. Porque gosto da biografia, que podia ser apenas mais uma e no fim de contas é a de uma mulher que nunca fez senão o que lhe deu na real gana. Gosto, porque correu mundo e não voltou burra. Gosto porque, apesar das bondage shoots, não era fácil uma mulher ter tão poucas amarras nos anos cinquenta. Gosto porque não sucumbiu aos barbitúricos nem ao poder masculino, gosto porque tenho por certo que quando olhava para o espelho não via uma vítima. Nem um carrasco. Gosto porque naquele baralho de pin-ups com o qual tanta sueca se jogou —na minha infância, ó indecência, na minha infância!—, ela era a única que se distinguia pela alma que a fotografia lhe pedia emprestada. Gosto porque também adoro a Bette Davis. Gosto que o quiz tonto tenha dado ex-aequo com miss Audrey H., que parecendo diametralmente oposta, é, na realidade, um seu par. Gosto que o empate tenha sido a 69. Por cento. Gosto porque esta era a foto mais bonita do baralho.
tudo o que bate certo
É estranha, esta coisa das referências. Pois há uma canção tua —ou mais— para cada momento da minha vida, presente passada e futura. E sei que algumas ainda estão nessa antecâmara do futuro, à espera que se lhes abra o tabuleiro de jogo. É estranha, esta coisa da familiaridade, ter-te em argamassa da minha própria construção, de tal modo que me saem por vezes as tuas palavras como se minhas fossem, e agora fazer-te rir com um simples "tu viste-me crescer, não deste foi por isso". É relativa, esta coisa do tempo, pois que por isso mesmo não consigo localizar o encontro. Trabalhámos juntos em 2005, essa primeira vez de farejamento e reconhecimento de um território que muito cedo se intuíu comum, dançámos na cave da Rua da Alegria e o mundo também gingou e a ligação ficou feita. E logo a seguir, uns meses depois, partilhávamos palavras com as quais me cresci, dividíamos malhas e microfones, subíamos o Guadiana em busca de um porto de abrigo. Mas é daí que nos conhecemos? Porque esses olhares, essas poucas palavras e momentos partilhados ainda no meu anonimato, continuam espelhados aqui e agora, pois que pouco me parecem três anos para uma tão natural ternura, para tão simples entendimento. Pouco parecem três anos para que, entre galhofa e confissões, me digas "eh pá, desculpa lá ter composto essa canção...". Para que seja tão nossa a brincadeira dos sons e dos sentidos, tão nosso o poder dos silêncios. Há coisas doces, nesta vida. E uma das boas é constatar que um ídolo não tem pés de barro, mas de gente; conhecer um ícone muito nosso e poder continuar a amá-lo. Até te agradecia, mas não se agradece a alguém por ser fiel a si próprio. E como não acredito em nada daquilo em que acredito, a quem agradeço eu termos cruzado as nossas estradas? Talvez melhor que a ninguém, porque tudo o que há nelas de acaso há também de vontade. “A harbour shall be that is to found and-oh! Ever again-conquered”.
sábado, setembro 27, 2008
dissertações sobre os clássicos numa tarde lenta
Quando há dúvidas se são os Beatles que escutamos, basta tomar atenção à bateria. Se for indigente e perfeita ao mesmo tempo, só pode ser o Ringo.
I got blisters on my fingers!
I got blisters on my fingers!
sexta-feira, setembro 26, 2008
carrasco involuntário — ou do karma
Ora bolas... e estava o dia a correr tão bem. Trolha mais uma vez, lixa, massa e pladour, caixilhos e borrifadores, poeira e acidentes de percurso e riso. Lisboa entardecendo sobre o rio, o toque dos azulejos, a carícia da luz, a companhia-irmão-trolha, olho vivo e alma aberta, conversa boa que faz desaparecer o trânsito e perspectivar a estrada. E quando estou mesmo a chegar já prevendo a peregrinação em busca de estacionamento neste bairro tão colonizado, o reflexo que tarda por uma fracção de segundo, como todos os que tardam demais, e o engulho no asfalto, o pneu que atropela e estala e esmaga sob a inacção gelada das minhas mãos. Mas que merda! O sacana do pombo doente não estava bem onde estava de manhã, aninhado à beira do passeio?!! Não se mexe não se mexe, e vai-se a ver agora está praticamente no meio da rua escura e de noite todos os pombos são pardos.
Arranjei lugar à porta. Tenho três explicações metafísicas para o facto. O karma não é, definitivamente, instantâneo, e what goes around comes around... later. Ou, o karma é instantâneo e eu não fiz mais do que dar o golpe de misericórdia num ser em sofrimento há já umas quantas horas, e o meu prémio foi um lugar à larga, à porta, numa zona onde o próprio Buda vociferaria por uma vespa. Ou ainda, o karma é mesmo instantâneo e neste momento alguém está a tratar de um belo galo na cabeça, por se ter armado em deus ex-machina e posto o desgraçado do bicho ali à mão de ser eutanasiado.
Arranjei lugar à porta. Tenho três explicações metafísicas para o facto. O karma não é, definitivamente, instantâneo, e what goes around comes around... later. Ou, o karma é instantâneo e eu não fiz mais do que dar o golpe de misericórdia num ser em sofrimento há já umas quantas horas, e o meu prémio foi um lugar à larga, à porta, numa zona onde o próprio Buda vociferaria por uma vespa. Ou ainda, o karma é mesmo instantâneo e neste momento alguém está a tratar de um belo galo na cabeça, por se ter armado em deus ex-machina e posto o desgraçado do bicho ali à mão de ser eutanasiado.
quinta-feira, setembro 25, 2008
eu tinha perdido a cabeça — pandã
E os Beatles diriam, I'm fixing a hole where the rain gets in, and keeps my mind from wandering... e eu diria, ahan.
... e sorriria.
quarta-feira, setembro 24, 2008
complexo de Cassandra — só
A sensação de previsibilidade não vem de sentir nos ouvidos o futuro sussurrado pelas vozes dos deuses, vem do passado deitado no divã em turbilhão de associações livres. Freud até nos explica. A merda é que não nos conserta. Nem consola.
as proporções — complexo de Cassandra 3.0
Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra; macadamizai estradas; fazei caminhos de ferro; construí passarolas de Ícaro, para andar, a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa, como tendes feito esta que Deus nos deu, tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal; comprai, vendei, agiotai. — No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. — Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já deve de andar orçado o número de almas que é preciso vender ao Diabo, o número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como Sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeeiro — seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.
Logo, a nação mais feliz não é a mais rica. Logo, o princípio utilitário é a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your phylosophy.
A ciência deste século é uma grandessíssima tola.
E, como tal, presunçosa e cheia de orgulho dos néscios.
Almeida Garrett, Viagens na minha terra, capítulo III, 1846
Logo, a nação mais feliz não é a mais rica. Logo, o princípio utilitário é a mamona da injustiça e da reprovação. Logo...
There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your phylosophy.
A ciência deste século é uma grandessíssima tola.
E, como tal, presunçosa e cheia de orgulho dos néscios.
Almeida Garrett, Viagens na minha terra, capítulo III, 1846
a indiferença — complexo de Cassandra 2.0
Naturalmente, pois, logicamente, claro, o Brecht ressuscita um pouco por todo o lado. Para parafrasear o próprio, que tempos estes, em que falar de árvores é quase um crime porque implica não falar de todas as barbaridades que pedem para ser gritadas. Antes que seja tarde.
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
... ou, como já alguém disse algures em 1933, quando a crise também justificava tudo, quando me levaram já tinham levado toda a gente, não sobrava ninguém para se opôr.
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
... ou, como já alguém disse algures em 1933, quando a crise também justificava tudo, quando me levaram já tinham levado toda a gente, não sobrava ninguém para se opôr.
os alvos — complexo de Cassandra
Eu ando preocupada com isto, não posso dizer que não ando. Em poucos dias ouvi muita gente a desembocar precisamente no mesmo ponto, por um caminho ou por outro. E não, não acho que seja leve, inconsequente, insignificante. É a própria matéria das mentalidades que forma o presente e consequentemente o futuro —para não dizer o passado, já que ele não é mais do que a lente com que o lemos. É a vox populi, é a facilidade com que se aceita certas explicações, com que se adopta as teses, com que se tira negrume aos germes do ódio, ciclicamente reacendidos para dar à classe média em apuros um saco de pancada que amorteça a revolta.
Não ponho em causa que o marido da irmã da prima de alguém esteja no SEF a trabalhar e afirme que há dois gangues provenientes das favelas brasileiras a operar em Portugal —também não ponho em causa que a pessoa em questão tenha visto a Tropa de Elite há pouco tempo e nunca tenha pensado muito sobre a Cidade de Deus. Não ponho sequer em causa que haja imigrantes aldrabões, preguiçosos, oportunistas, como tantos portugueses o são e o foram por esse mundo fora. Nem ponho em causa que haja imigrantes, com ou sem papéis, envolvidos nesta famosa onda de insegurança que repete alarmismos de há cinco, dez, cem, mil anos atrás. Tu queres ver que os imigrantes são gente, tão reles como quase toda a gente? E tu queres ver que houve em tempos um escritor que escreveu um romance em que um homem pobre se tornava prisioneiro e depois foragido por ter roubado um pão para alimentar a família? Liberté, égalité, fraternité, era um belo romance, ainda não havia era prémios Nobel...
Mas choca-me, preocupa-me, e muito, que as bocas da classe-média em crise vejam na "imigração descontrolada" a causa basilar dessa tal insegurança [eu devo ser ET, já passei por incontáveis épocas de caça ao gatuno, e passa-me sempre o ambiente sin city ao lado... sou burra, com certeza]. Tem sido recorrente. Conto, sem pensar, três conversas semelhantes na mesma semana, com pessoas diferentes. A crise, e basta andar só um bocadinho atento às análises mais terra-a-terra da coisa, tem vencedores e vencidos, não é um machado aleatório, a acumulação selvagem de capital só pode, porque só pode senhores, espalhar miséria. E a miséria e a legalidade nunca se deram, pois só há regras iguais para iguais, entre iguais, e a igualdade não se compadece com a mimese de selva que os seres humanos gostam de construir nas suas colmeias. Ah, eu sou um leão, vou comer-vos a todos, ó carneirinhos, grrrrrr, tu vais primeiro, que és preto, a norma é que as ovelhas sejam brancas, ó ameaça!!! De quem é a culpa da falência da Lehman Brothers? De algum dono de boca de um qualquer morro perdido no Rio de Janeiro? Ou não, já sei, deve ser de um funcionário público português —ui, esses devem ceder de bom grado aos brasileiros o lugar de bode expiatório.
O problema, dizem-me portanto, é a imigração. As máfias. Os que vêm "para viver à conta". Os ex-favelados. Ninguém se pergunta nada, ninguém se questiona nada. Ninguém revê a matéria dada, as incontáveis tragédias que se construíram em cima de afirmações nem bem nem mal-intencionadas, apenas vantajosas aos poderes que se alimentam da preguiça de pensar, da preguiça de viver, da ânsia intrínseca de sobrevivência, da cobardia generalizada. O médico deixou morrer o doente? Bate-se no enfermeiro. O patrão fechou a fábrica? Espanca-se o motorista. Os direitos adquiridos e as nações estão a saque? A culpa é dos brasileiros. Está certo. Fiquemos no nosso cantinho, que isto há-de passar e alguém nos há-de dar um torrãozinho a chupar, se balirmos afinados. Isto se não passarmos nós próprios pela grelha primeiro...
Não ponho em causa que o marido da irmã da prima de alguém esteja no SEF a trabalhar e afirme que há dois gangues provenientes das favelas brasileiras a operar em Portugal —também não ponho em causa que a pessoa em questão tenha visto a Tropa de Elite há pouco tempo e nunca tenha pensado muito sobre a Cidade de Deus. Não ponho sequer em causa que haja imigrantes aldrabões, preguiçosos, oportunistas, como tantos portugueses o são e o foram por esse mundo fora. Nem ponho em causa que haja imigrantes, com ou sem papéis, envolvidos nesta famosa onda de insegurança que repete alarmismos de há cinco, dez, cem, mil anos atrás. Tu queres ver que os imigrantes são gente, tão reles como quase toda a gente? E tu queres ver que houve em tempos um escritor que escreveu um romance em que um homem pobre se tornava prisioneiro e depois foragido por ter roubado um pão para alimentar a família? Liberté, égalité, fraternité, era um belo romance, ainda não havia era prémios Nobel...
Mas choca-me, preocupa-me, e muito, que as bocas da classe-média em crise vejam na "imigração descontrolada" a causa basilar dessa tal insegurança [eu devo ser ET, já passei por incontáveis épocas de caça ao gatuno, e passa-me sempre o ambiente sin city ao lado... sou burra, com certeza]. Tem sido recorrente. Conto, sem pensar, três conversas semelhantes na mesma semana, com pessoas diferentes. A crise, e basta andar só um bocadinho atento às análises mais terra-a-terra da coisa, tem vencedores e vencidos, não é um machado aleatório, a acumulação selvagem de capital só pode, porque só pode senhores, espalhar miséria. E a miséria e a legalidade nunca se deram, pois só há regras iguais para iguais, entre iguais, e a igualdade não se compadece com a mimese de selva que os seres humanos gostam de construir nas suas colmeias. Ah, eu sou um leão, vou comer-vos a todos, ó carneirinhos, grrrrrr, tu vais primeiro, que és preto, a norma é que as ovelhas sejam brancas, ó ameaça!!! De quem é a culpa da falência da Lehman Brothers? De algum dono de boca de um qualquer morro perdido no Rio de Janeiro? Ou não, já sei, deve ser de um funcionário público português —ui, esses devem ceder de bom grado aos brasileiros o lugar de bode expiatório.
O problema, dizem-me portanto, é a imigração. As máfias. Os que vêm "para viver à conta". Os ex-favelados. Ninguém se pergunta nada, ninguém se questiona nada. Ninguém revê a matéria dada, as incontáveis tragédias que se construíram em cima de afirmações nem bem nem mal-intencionadas, apenas vantajosas aos poderes que se alimentam da preguiça de pensar, da preguiça de viver, da ânsia intrínseca de sobrevivência, da cobardia generalizada. O médico deixou morrer o doente? Bate-se no enfermeiro. O patrão fechou a fábrica? Espanca-se o motorista. Os direitos adquiridos e as nações estão a saque? A culpa é dos brasileiros. Está certo. Fiquemos no nosso cantinho, que isto há-de passar e alguém nos há-de dar um torrãozinho a chupar, se balirmos afinados. Isto se não passarmos nós próprios pela grelha primeiro...
terça-feira, setembro 23, 2008
Assunto: No dia 10 de Outubro, SIM à liberdade e à igualdade.
"No próximo dia 10 de Outubro, a Assembleia da República será chamada a votar projectos que estabelecem finalmente a igualdade no acesso ao casamento.
Esta é uma questão de direitos fundamentais, é uma questão de cidadania, é uma questão que determina a qualidade da nossa democracia. Trata-se de acabar com a humilhação de muitas mulheres e muitos homens que são ainda discriminadas/os na própria lei por causa da sua orientação sexual. Trata-se de afirmar finalmente que gays e lésbicas não são cidadãos e cidadãs de segunda.
A Assembleia da República terá finalmente a oportunidade de afirmar o seu empenho nesta luta pela igualdade e pela liberdade – e a oportunidade de contribuir de forma particularmente simples para a felicidade de muitas pessoas.
O fim da exclusão de gays e lésbicas no acesso ao casamento consegue-se com uma pequena alteração no texto de uma lei, que não implica custos nem afecta a liberdade de outras pessoas. Porém, será um enorme passo no sentido da igualdade e contra a discriminação. E como demonstraram as discussões sobre o voto para as mulheres ou sobre o fim do apartheid racista na África do Sul, o preconceito que existe na sociedade não pode nunca justificar a negação de direitos fundamentais. Pelo contrário, votar contra a igualdade é legitimar e encorajar a discriminação.
Esta votação representa por isso uma enorme responsabilidade, pelas implicações que terá no reforço ou na recusa do preconceito.
Porque recuso a discriminação na lei portuguesa e porque esta é a oportunidade de repor a justiça e cumprir o princípio constitucional da igualdade, seguirei com atenção esta votação - e apelo ao voto favorável de todos os membros deste Grupo Parlamentar e à defesa intransigente da igualdade no próximo dia 10 de Outubro."
Esta mensagem anda a circular por mail, mas não é demais deixá-la aqui. É necessariamente uma sugestão, passível de ser alterada ou substituída, desde que assinada e identificada, por uma questão de validade. E pronto. Aqui têm. Não tenho nada a acrescentar. Não, tenho isto a acrescentar:
blocoar@ar.parlamento.pt
gp_pcp@pcp.parlamento.pt
gp_pev@ar.parlamento.pt
gp_pp@pp.parlamento.pt
gp_ps@ps.parlamento.pt
gp_psd@psd.parlamento.pt
Esta é uma questão de direitos fundamentais, é uma questão de cidadania, é uma questão que determina a qualidade da nossa democracia. Trata-se de acabar com a humilhação de muitas mulheres e muitos homens que são ainda discriminadas/os na própria lei por causa da sua orientação sexual. Trata-se de afirmar finalmente que gays e lésbicas não são cidadãos e cidadãs de segunda.
A Assembleia da República terá finalmente a oportunidade de afirmar o seu empenho nesta luta pela igualdade e pela liberdade – e a oportunidade de contribuir de forma particularmente simples para a felicidade de muitas pessoas.
O fim da exclusão de gays e lésbicas no acesso ao casamento consegue-se com uma pequena alteração no texto de uma lei, que não implica custos nem afecta a liberdade de outras pessoas. Porém, será um enorme passo no sentido da igualdade e contra a discriminação. E como demonstraram as discussões sobre o voto para as mulheres ou sobre o fim do apartheid racista na África do Sul, o preconceito que existe na sociedade não pode nunca justificar a negação de direitos fundamentais. Pelo contrário, votar contra a igualdade é legitimar e encorajar a discriminação.
Esta votação representa por isso uma enorme responsabilidade, pelas implicações que terá no reforço ou na recusa do preconceito.
Porque recuso a discriminação na lei portuguesa e porque esta é a oportunidade de repor a justiça e cumprir o princípio constitucional da igualdade, seguirei com atenção esta votação - e apelo ao voto favorável de todos os membros deste Grupo Parlamentar e à defesa intransigente da igualdade no próximo dia 10 de Outubro."
Esta mensagem anda a circular por mail, mas não é demais deixá-la aqui. É necessariamente uma sugestão, passível de ser alterada ou substituída, desde que assinada e identificada, por uma questão de validade. E pronto. Aqui têm. Não tenho nada a acrescentar. Não, tenho isto a acrescentar:
blocoar@ar.parlamento.pt
gp_pcp@pcp.parlamento.pt
gp_pev@ar.parlamento.pt
gp_pp@pp.parlamento.pt
gp_ps@ps.parlamento.pt
gp_psd@psd.parlamento.pt
conversas de café: quem sai aos seus é de Campolide
Uma senhora reclama da democraticidade dos passes de estudante, quem tem dinheiro para pôr o filho a estudar num colégio, também tem para pagar o passe, andamos nós a pagar para eles. Consigo entender as suas razões, mas quem dera fosse esse o grande exemplo da má distribuição das benesses sociais e da justiça contributiva, às claras ou às obscuras. Mas pronto, a malta atira ao alvo que vê melhor, certo? E assim ficam os utilizadores do passe a espingardar entre si, em vez de espingardarem para o topo da pirâmide. É o que se quer, esta senhora não faz mais do que cumprir a sua função tapetoforme. Não consigo é perceber como é que a conversa vira para a autoridade dos professores, aparentemente também reduzida a 50%, como o preço do passe.
—No meu tempo a professora chegava e nós fazíamos duas filas, rapazes de um lado, raparigas do outro, para ela passar.
Gosto do tom de orgulho na voz; repito para mim própria, cala-te Manel, não tens nada a ver com a conversa, mas não me sai da cabeça que os alunos de hoje também fazem duas filas para deixar passar o professor... chama-se Corredor da Morte, é um jogo já antigo.
—A culpa não é dos miúdos, nem dos professores, a culpa é dos pais que não os educam —diz esta senhora que a meio da tarde está no café a deitar conversa, e ouvidos, fora. Alguém atalha:
—Os pais são todos diferentes, e alguns fazem o melhor que podem. A culpa é do Estado, que não dá condições para se acompanhar os filhos como deve ser.
—Ora, o Estado, o Estado, o Estado não tem nada a ver com o que se passa na minha casa!
Cala-te Manel, não lhe digas, que sorte, minha senhora, na minha casa o cabrão do Estado interfere p'a caraças...
—O Estado não tem nada a ver. Eu trabalhei a vida toda e nunca os meus filhos foram mal-educados para ninguém...
Chave de ouro. Encontro assim o Big Brother em pessoa num cafézito de Campolide. E fico ansiosa por conhecer os filhos desta senhora. Devem ser qualquer coisa... Espera, agora fiquei baralhada. A senhora, bem-posta, tinha idade para estar a falar dos passes dos netos, dignos representantes da geração de corrécios que aterroriza as escolas secundárias... hmmm... educados pelos seus filhos, portanto, hmmm... educados por ela, portanto. Hmmmm...
—No meu tempo a professora chegava e nós fazíamos duas filas, rapazes de um lado, raparigas do outro, para ela passar.
Gosto do tom de orgulho na voz; repito para mim própria, cala-te Manel, não tens nada a ver com a conversa, mas não me sai da cabeça que os alunos de hoje também fazem duas filas para deixar passar o professor... chama-se Corredor da Morte, é um jogo já antigo.
—A culpa não é dos miúdos, nem dos professores, a culpa é dos pais que não os educam —diz esta senhora que a meio da tarde está no café a deitar conversa, e ouvidos, fora. Alguém atalha:
—Os pais são todos diferentes, e alguns fazem o melhor que podem. A culpa é do Estado, que não dá condições para se acompanhar os filhos como deve ser.
—Ora, o Estado, o Estado, o Estado não tem nada a ver com o que se passa na minha casa!
Cala-te Manel, não lhe digas, que sorte, minha senhora, na minha casa o cabrão do Estado interfere p'a caraças...
—O Estado não tem nada a ver. Eu trabalhei a vida toda e nunca os meus filhos foram mal-educados para ninguém...
Chave de ouro. Encontro assim o Big Brother em pessoa num cafézito de Campolide. E fico ansiosa por conhecer os filhos desta senhora. Devem ser qualquer coisa... Espera, agora fiquei baralhada. A senhora, bem-posta, tinha idade para estar a falar dos passes dos netos, dignos representantes da geração de corrécios que aterroriza as escolas secundárias... hmmm... educados pelos seus filhos, portanto, hmmm... educados por ela, portanto. Hmmmm...
segunda-feira, setembro 22, 2008
duas casas
Foz, Janeiro de 2008
fotografia de Paulo F.
No Porto gosto mais do inverno mesmo inverno, quando a luz se torna ouro naqueles dias em que o chumbo não toma conta de tudo. As verdadeiras metamorfoses dos outonos e das primaveras estão todas aqui, no nosso céu alfacinha.
Luzboa é mais show-off... no Porto é preciso um bocadinho mais de silêncio mental para apreciar. Por isso é que às vezes custa tanto. Falo por mim, claro.
o outono é uma época propícia a definições pessoais
Não sou um músico. Sou uma actriz com um passado obscuro. E um futuro aberto, graças a Apolo.
equinócio de outono
Anjos, Setembro de 2008
É nos dias das mudanças que esta cidade me rouba mais o fôlego. Bom outono, gente!
domingo, setembro 21, 2008
as divergências significantes: relâmpagos
Reportagem da SIC sobre acompanhantes de luxo. Um homem diz uma frase engraçada: não pagar em mãos, depositar o dinheiro numa conta é menos humilhante. Pergunta a jornalista, menos humilhante para quem? Ele responde sem hesitar: —Para ela e para mim.
Uma das acompanhantes mais caras em actividade em Portugal diz que não é paga por sexo. E repete e repete. É paga pela companhia, o eventual sexo é bónus. Conta como começou na actividade, estava num restaurante, foi abordada por um homem, lançou um valor alto que pensou que ele não aceitasse e afinal foi com ele para um quarto de hotel. Depois, nunca mais se cruzaram e ela floresceu no negócio. Mas repete que não é paga por sexo. Como quem se diz a si mesma: —Elizabeth Butterfly, tu não és uma prostituta.
Um outro homem diz também que não paga pelo sexo, que só acontece de vez em quando. Paga pela companhia, para conversar, para ter carinho, atenção, porque todos precisamos de carinho. Mas pronto, paga, porque tem isto tudo "sem nada de emocional", nas suas próprias palavras. Tudo o que compra são substantivos da emoção —carinho, atenção, companhia—, mas insiste que "é sem nada de emocional". Ah, resta dizer que compra os serviços sempre à mesma pessoa. Mas... "sem nada de emocional".
Essa pessoa, bastante simples e terra-a-terra, diz que houve um tempo em que se sentia menos digna por fazer o que fazia. Mas que hoje considera que muitas outras mulheres são pagas pelo sexo, mas por um cliente que oficialmente com elas partilha o leito.
O mesmo homem do início diz que nunca teria uma relação estável com alguém que já tivesse estado no negócio. Não diz que aquelas mulheres, que chama pelo nome e pelas quais parece ter algum apreço, não encontrem alguém quando mudarem de vida. Mas, e cito, se for alguém como ele, nunca poderá saber do passado da mulher. Ele mesmo, portanto, se vê nessa mesma situação. A honestidade tem caminhos ínvios.
Uma das acompanhantes mais caras em actividade em Portugal diz que não é paga por sexo. E repete e repete. É paga pela companhia, o eventual sexo é bónus. Conta como começou na actividade, estava num restaurante, foi abordada por um homem, lançou um valor alto que pensou que ele não aceitasse e afinal foi com ele para um quarto de hotel. Depois, nunca mais se cruzaram e ela floresceu no negócio. Mas repete que não é paga por sexo. Como quem se diz a si mesma: —Elizabeth Butterfly, tu não és uma prostituta.
Um outro homem diz também que não paga pelo sexo, que só acontece de vez em quando. Paga pela companhia, para conversar, para ter carinho, atenção, porque todos precisamos de carinho. Mas pronto, paga, porque tem isto tudo "sem nada de emocional", nas suas próprias palavras. Tudo o que compra são substantivos da emoção —carinho, atenção, companhia—, mas insiste que "é sem nada de emocional". Ah, resta dizer que compra os serviços sempre à mesma pessoa. Mas... "sem nada de emocional".
Essa pessoa, bastante simples e terra-a-terra, diz que houve um tempo em que se sentia menos digna por fazer o que fazia. Mas que hoje considera que muitas outras mulheres são pagas pelo sexo, mas por um cliente que oficialmente com elas partilha o leito.
O mesmo homem do início diz que nunca teria uma relação estável com alguém que já tivesse estado no negócio. Não diz que aquelas mulheres, que chama pelo nome e pelas quais parece ter algum apreço, não encontrem alguém quando mudarem de vida. Mas, e cito, se for alguém como ele, nunca poderá saber do passado da mulher. Ele mesmo, portanto, se vê nessa mesma situação. A honestidade tem caminhos ínvios.
dimensão quatro e meio [resposta flanco a flanco]
Belo. Presente. Naturalmente digno e sem alpendre de onde chamar a seja o que for que se recolha. Ainda é fluidamente que o pó aceita a ordem de deita e fica, como um cão ao contrário. Pode ser algo mais espesso, mas o ideal continua a ser água. Salgada. O horizonte serve-se às metades com o sol a tentar outra coisa e o motorista sem volante. A porta ainda não fecha. O pó adormeceu por uns instantes e já foi amanhã.
o cheiro
Lisboa, 18 de Setembro de 2008
Ela já não está lá. Foi a mãe lisboeta a quem o meu pai alentejano pagava a renda do quarto —sempre que podia, pelo menos—, mas era jovem demais para ser uma avó. Era mais do que isso. Era a madrinha. A Gida. A típica coquette de São Bento, familiar de cada pedra da calçada entre a Praça das Flores e a Baixa, para mim, que vim tarde, foi sempre velha sem idade, a única visita de família que me entusiasmava, a única que se tornou minha quando a família deixou de ter poder para impor visitas. A Gida era uma beleza. Cheia de luz e de bondade, de alegria e de vontade das pessoas que amava, feliz do seu passado e transbordando presente. Também porque pôde, uma vida burguesa, sem filhos e sem percalços de maior, assistindo acordada às convulsões e vendo-as passar, com a cidade, com viagens, com muita conversa e muito riso e algum vinho, com espaço para todo o amor que encontrava espaço dentro dela. Muito espaço. A Gida era tão nova que nunca num milhão de anos o bilhete de identidade poderia ter razão, não na data, porque a Gida era tão nova que só podia ter o século estampado nos olhos, mas no nome, porque a Gida não se chamava Hermenegilda, como eu descobri em pasmo no primeiro ano da minha alfabetização. Hermenegilda Sande. E é mentira. Porque era a Gida. E não me lembro se alguma vez lhe recordei o apelido de solteira, mas Sande não era ela, era o Zé. E o Zé era, sim, o padrinho, o doce padrinho, mas acima de tudo, era o marido da Gida, não por qualquer relação de poder estabelecida, mas por uma natural organização daquele sistema solar, a Gida, o Sande, e os periquitos que saíam no ombro à rua e que ela ensinava a falar. E a prova é que quando o sol se apagou todos o pensámos, mas só alguns o dissemos a medo triste, ele não dura mais do que um ano. E um ano depois, contado, foi do Zé que nos despedimos. E o meu pai um pouco mais velho, mais triste, mais órfão.
A Gida usava base e riscava os olhos de preto e tinha um sorriso que comia qualquer batôn vermelho que aos seus lábios se atrevesse. E claro, cheirava sempre quanto bastasse a um perfume quente e transparente, o perfume a que eu achava que cheiravam todas as senhoras velhotas que pintavam o cabelo e a cara. Mas só na Gida era transparente, nas outras era apenas quente. E ligeiramente enjoativo. A Gida amou-me-nos, a todos em seu redor, incondicionalmente, sem juízos, sem negrumes, sempre de braços abertos. Tratou uma sogra acamada em casa até à morte como mais uma simples inevitabilidade, uma feliz inevitabilidade, afinal quantos se podem orgulhar de morrer nos anos 80 seguintes aos anos 80 em que nasceram? A Gida gostava de touradas e de casinos e divertiu-se imenso connosco na festa do Avante!, afinal o Alto da Ajuda até ficava ali mesmo à mão. E gostava de gente boa. E de mim, que não gosto de touradas e vejo nos casinos uma espécie de jardim zoológico. Há demasiado tempo que a Gida já não está lá, no prédio cor-de-rosa de São Marçal, mas estou eu à sua porta, e de repente toda a memória volta e preenche a rua sem trânsito e a janela fechada da casa aonde não voltei. Espanto-me com o ar da tarde que faz passar o perfume dela, quente e transparente, sob o meu nariz. E então percebo tranquila que foi por acaso que ao fim de tantos anos a passar a poucos metros, fui ali matar saudades.
sábado, setembro 20, 2008
sexta-feira, setembro 19, 2008
as dúvidas pertinentes
Na rádio discute-se a nova lei do divórcio, no beco sem saída que é um contrato estatal oficializante de relações afectivas. Um ouvinte escreve perguntando se estas novas disposições se aplicarão ao casamento homossexual, no caso dele vir a ser aprovado [esteja descansado, digo eu, que ainda se vai marrar um bocadinho até que isso aconteça]. Diz a pessoa que está a responder: —Ah, não faço a mínima ideia, isso vai ter de perguntar ao PS.
Ok. A ver. O ouvinte já é estúpido por fazer a pergunta, mas da senhora que é suposto estar a esclarecer, nem sei o que hei-de dizer. Porque é que não foi mais imaginativa, se queria dizer uma coisa idiota, sei lá, dê largas à criatividade. Por exemplo, os gays para se divorciarem vão ter de o fazer em parada a descer a avenida, com saltos compensados se forem homens, com o buço por depilar se forem mulheres. Ou, o Estado não deve interferir na partilha das purpurinas e das boás. Ou, é preciso, numa relação entre homens, defender o que tende a ser passivo na relação física [isto para usar um termo simples e directo, que nunca percebi muito bem o que é isso de ser passivo, mas pronto...], e numa relação entre mulheres é preciso defender a que depila o buço e não tem ar de camionista, certamente as partes mais fracas destes peculiares casamentos.
Era por mim, a brincadeira. Porque assim começava o dia com uma boa gargalhada, em vez de com o sobrolho levantado, a tentar desviar-me desta sensação esquisita de que em Portugal as gerações se contam como as idades caninas —mas em direcção ao passado. Cada ano vale sete. E nem era assim tão mau. Mais um bocadinho e esta senhora, que me soa a trintinha ou trintona, estaria deliciada com a ambrósia servida por Safo na ilha de Lesbos...
Ok. A ver. O ouvinte já é estúpido por fazer a pergunta, mas da senhora que é suposto estar a esclarecer, nem sei o que hei-de dizer. Porque é que não foi mais imaginativa, se queria dizer uma coisa idiota, sei lá, dê largas à criatividade. Por exemplo, os gays para se divorciarem vão ter de o fazer em parada a descer a avenida, com saltos compensados se forem homens, com o buço por depilar se forem mulheres. Ou, o Estado não deve interferir na partilha das purpurinas e das boás. Ou, é preciso, numa relação entre homens, defender o que tende a ser passivo na relação física [isto para usar um termo simples e directo, que nunca percebi muito bem o que é isso de ser passivo, mas pronto...], e numa relação entre mulheres é preciso defender a que depila o buço e não tem ar de camionista, certamente as partes mais fracas destes peculiares casamentos.
Era por mim, a brincadeira. Porque assim começava o dia com uma boa gargalhada, em vez de com o sobrolho levantado, a tentar desviar-me desta sensação esquisita de que em Portugal as gerações se contam como as idades caninas —mas em direcção ao passado. Cada ano vale sete. E nem era assim tão mau. Mais um bocadinho e esta senhora, que me soa a trintinha ou trintona, estaria deliciada com a ambrósia servida por Safo na ilha de Lesbos...
quinta-feira, setembro 18, 2008
pois, mas é que é isso mesmo, estúpido!
Está tudo muito escandalizado com as gasolineiras. E elas justificam-se com o mercado, todo o mercado e nada mais que o mercado. E têm razão. O mercado não é a lei da justiça, da proporção, mas a lei da oferta e da procura. Se há procura, o lucro pode ser praticamente ilimitado e pronto. Mesmo que seja um bem de primeira necessidade. De que se queixa o pessoal? Afinal não é o mercado livre a panaceia para todos os males? Ah, espera, já lá estivemos... e deu merda. E há-de continuar a dar. History will teach us nothing.
heavy metal
Pronto, eu não resisto. Isto é muito, muito bom. Até se percebe o "flügel weilt" que o soprano canta nos sis agudos. E há uma frase ali no meio, meia simples dúzia de compassos, alle Menschen werden Brüder, onde oiço toda a emoção que sentia ao cantá-la, quando do outro lado da sala do coro o nosso urso de estimação —grrrroufff— me dizia que ver a minha expressão naquele momento era uma das melhores partes do ensaio. Todo o mundo está na gana com que se grita que diesen Kuss der ganzen Welt! Esta sinfonia, toda ela, dá cabo de mim. E este final é uma das razões pelas quais tenho vontade de rir na maior parte das vezes em que vejo gajos cabeludos a partir guitarras eléctricas contra os amplificadores.
mambo!
Este é o encore nos BBC Proms de 2007, feito para o espectáculo e é o que é, um espectáculo, a velocidade, a pica, a alegria, o swing [que tantas vezes não se compadece desta aceleração toda]. Desde 1975 que com Beethoven e quejandos, El sistema ajuda uns quantos miúdos a fintar a pobreza. Parte deles soa assim. Simon Rattle diz que este puto Dudamel é um dos "most astonishingly gifted conductors" com quem já topou, e o puto ainda não tem trinta anos. As orquestras têm destas coisas: são espaços de disciplina e felicidade, como podem ser espaços de repressão e morte-viva. A diferença de resultados diz-nos muito do tecido celular de cada uma. Como em qualquer equipa de trabalho, digo eu, maior ou menor.
Querem semblantes mais sérios, para tirar teimas? Ora passeiem-se pelo youtube, procurando a Simón Bolívar Youth Orchestra e/ou Gustavo Dudamel. E boa viagem.
a sombra do caçador
Bairro Alto, 18 de Setembro de 2008
exercício proposto:
tentar dizer a cor com que a palavra é escrita, em vez da cor escrita pela palavra.
quarta-feira, setembro 17, 2008
a história é como um idiota chamado mercado
To European, US and world leaders:
We urge you to take a lead in fixing the fundamental flaws and loopholes which made the global financial crisis possible, including basic problems of debt and risk, incentives and transparency. We need you to work together to protect the public good by framing stronger rules for all parts of the global financial system. Be bold, and we will support you.
Aos dirigentes políticos mundiais:
Incitamo-vos a tomar posição no sentido de consertar as falhas e vazios que tornaram possível a crise financeira global, incluindo problemas básicos de dívida e risco, incentivos e transparência. É preciso que trabalhem em conjunto para proteger o bem público, reforçando as regras aplicadas a todas as partes do sistema financeiro global. Sejam ousados, e terão o nosso apoio.
foto: Boris Roessler/EPA
Assinem AQUI se não querem ser mais uma voz que nunca se ouve porque tudo é em vão. Enquanto os grandes financeiros não começam a cair das janelas de Wall Street, como em 1929.
We urge you to take a lead in fixing the fundamental flaws and loopholes which made the global financial crisis possible, including basic problems of debt and risk, incentives and transparency. We need you to work together to protect the public good by framing stronger rules for all parts of the global financial system. Be bold, and we will support you.
Aos dirigentes políticos mundiais:
Incitamo-vos a tomar posição no sentido de consertar as falhas e vazios que tornaram possível a crise financeira global, incluindo problemas básicos de dívida e risco, incentivos e transparência. É preciso que trabalhem em conjunto para proteger o bem público, reforçando as regras aplicadas a todas as partes do sistema financeiro global. Sejam ousados, e terão o nosso apoio.
foto: Boris Roessler/EPA
Assinem AQUI se não querem ser mais uma voz que nunca se ouve porque tudo é em vão. Enquanto os grandes financeiros não começam a cair das janelas de Wall Street, como em 1929.
terça-feira, setembro 16, 2008
tv guia
Estreia hoje uma série de reportagens em redor de "10 bairros problemáticos de origem e história muito diversas", uma encomenda da RTP que deu polémica. Sendo da autoria de uma jornalista de excepção, dona de uma clareza e de uma inteligência raras [ou de uso raro na profissão, melhor dizendo] e pouco dada a clientelas, isso não interessa nada porque diz que parece que consta que a senhora é namorada do Sócrates. É a vidinha à portuguesa, que a Fernanda Câncio tão bem conhece. Aliás, a ser verdade, só abona em favor dela, que continua independente e autónoma, e em desfavor dele, que desperdiça miseravelmente uma boa influência.
Mas independentemente das tricas para fazer tagarelar o povinho, A vida normalmente estreia hoje, na 2, às 23h30 e parece-me que é arranque a não perder. O primeiro bairro sob escuta é o da Abelheira, na Quarteira.
Mas independentemente das tricas para fazer tagarelar o povinho, A vida normalmente estreia hoje, na 2, às 23h30 e parece-me que é arranque a não perder. O primeiro bairro sob escuta é o da Abelheira, na Quarteira.
divergências significantes: a confiança
Caramba, que há dez anos que o homem me conhece e trabalha comigo, e posso dizer que nunca me viu mais gorda. Mas passam uns meses, e lá vem a conversa da treta: —Então e tu, não há maneira de engordares?
Cumpre dizer que se trata de uma espécie de patrão, um manda-chuva, alto e espadaúdo, daqueles com um sorriso cordial capaz de intimidar o Hulk. Ou seja, a lata ainda me vai mais ao nervo, a falta de respeito ainda é mais declarada. Respondo na mesma moeda, pode ser que ele se toque. —Já tu, estás cada vez mais anafadinho. É da idade, não é?, isso não tende a melhorar... [sorriso maroto, tipo, não estou a rir-me de ti, estou a rir-me contigo, mesmo que tu não te estejas a rir, boa?]. Ele pára para pensar se há-de seguir a pega, percebe que o meu escudo tem picos, mas está decidido a mostrar-me quem manda aqui:
— Pois -aponta a barriga- tens de beber cerveja, para ganhar isto, que faz falta.
— E bebo, preta. Mas sabes que para fazer o que faço, dá-me mais jeito ter o meu peso, se tivesse o teu já estava reformada.
— Tens de beber mais. [breve pausa, preparando a estocada final] Ouve lá, tu não comes?
— Não. Tenho uns comprimidos lá em casa. E tu, não vais ao ginásio?
— Vou!
— E porque é que não resulta?...
Ele encara-me em silêncio, tentando transpor para os olhos o sorriso falso, mas em vão. Eu, sempre sorrindo, não desvio, tenho três gatos, estou habituada a competir para ver quem desvia o olhar primeiro. O estúdio está pronto. O trabalho, daí em diante, seguiu como nó corredio. E acho que o mais-ou-menos-patrão há-de ficar calado da próxima vez que tope comigo. A não ser que esteja agora em casa a procurar novas estratégias de intimidação.
Cumpre dizer que se trata de uma espécie de patrão, um manda-chuva, alto e espadaúdo, daqueles com um sorriso cordial capaz de intimidar o Hulk. Ou seja, a lata ainda me vai mais ao nervo, a falta de respeito ainda é mais declarada. Respondo na mesma moeda, pode ser que ele se toque. —Já tu, estás cada vez mais anafadinho. É da idade, não é?, isso não tende a melhorar... [sorriso maroto, tipo, não estou a rir-me de ti, estou a rir-me contigo, mesmo que tu não te estejas a rir, boa?]. Ele pára para pensar se há-de seguir a pega, percebe que o meu escudo tem picos, mas está decidido a mostrar-me quem manda aqui:
— Pois -aponta a barriga- tens de beber cerveja, para ganhar isto, que faz falta.
— E bebo, preta. Mas sabes que para fazer o que faço, dá-me mais jeito ter o meu peso, se tivesse o teu já estava reformada.
— Tens de beber mais. [breve pausa, preparando a estocada final] Ouve lá, tu não comes?
— Não. Tenho uns comprimidos lá em casa. E tu, não vais ao ginásio?
— Vou!
— E porque é que não resulta?...
Ele encara-me em silêncio, tentando transpor para os olhos o sorriso falso, mas em vão. Eu, sempre sorrindo, não desvio, tenho três gatos, estou habituada a competir para ver quem desvia o olhar primeiro. O estúdio está pronto. O trabalho, daí em diante, seguiu como nó corredio. E acho que o mais-ou-menos-patrão há-de ficar calado da próxima vez que tope comigo. A não ser que esteja agora em casa a procurar novas estratégias de intimidação.
segunda-feira, setembro 15, 2008
fazei de mim, senhor, um bácoro de Epicuro 5.0
Desfrutam melhor da abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é, objectivamente, tudo o que é inútil. [...] O que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por nossa vontade; e que a necessidade é irreprimível, o acaso instável, enquanto a nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
[...] É preferível ser-se desafortunado e sábio do que ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projecto não chegue a bom termo do que chegue a ter êxito um projecto mau.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
[...] É preferível ser-se desafortunado e sábio do que ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projecto não chegue a bom termo do que chegue a ter êxito um projecto mau.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
fazei de mim, senhor, um bácoro de Epicuro 4.0
Todo o prazer constitui um bem pela sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; da mesma maneira que toda a dor é um mal, mas nem todas devem ser evitadas. [...] Existem momentos em que utilizamos um bem como se fosse um mal e igualmente em sentido contrário, um mal como se fosse um bem.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
... pois... tell me about it.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
... pois... tell me about it.
fazei de mim, senhor, um bácoro de Epicuro 3.0 [ou vai-te lixar ó Masoch]
A morte não é um mal; porque liberta o homem de todos os males, e ao mesmo tempo que os bens, tira-lhe os desejos. A velhice é o pior dos males: porque priva o homem de todos os prazeres, deixando-lhe todos os apetites; e traz consigo todas as dores. Não obstante, os homens temem a morte de desejam a velhice.
Giacomo Leopardi
... e é aqui que entra a voz de Quino pela boca da Mafalda: se viver é só durar, prefiro uma canção dos Beatles a um long play da Sarita Montiel, jejeje.
Giacomo Leopardi
... e é aqui que entra a voz de Quino pela boca da Mafalda: se viver é só durar, prefiro uma canção dos Beatles a um long play da Sarita Montiel, jejeje.
fazei de mim, senhor, um bácoro de Epicuro 2.0
Habitua-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo o bem e todo o mal residem nas sensações, e a morte é exactamente a privação das sensações. A consciência clara e objectiva de que a morte não significa nada para nós, proporciona desde logo a fruição da vida efémera, sem o desejo de acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando a aspiração de imortalidade. Na vida não existe nada de terrível, para quem está perfeitamente convicto de que não há nada de terrível para deixar de viver.
[...] aquilo que não nos perturba quando ainda não é presente muito menos nos deverá afligir enquanto esperamos que aconteça. [...] o mais terrível de todos os males, que é a morte, não deverá significar nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que já cá não estamos. [...] O sábio nem desdenha viver nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo, e como não-viver não é necessariamente um mal. Assim como se opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, da mesma forma ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que este seja breve.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
[is that all there is, is that all there is? if that's all there is, my friends, then... na na na na...]
[...] aquilo que não nos perturba quando ainda não é presente muito menos nos deverá afligir enquanto esperamos que aconteça. [...] o mais terrível de todos os males, que é a morte, não deverá significar nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que já cá não estamos. [...] O sábio nem desdenha viver nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo, e como não-viver não é necessariamente um mal. Assim como se opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, da mesma forma ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que este seja breve.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
[is that all there is, is that all there is? if that's all there is, my friends, then... na na na na...]
fazei de mim, senhor, um bácoro de Epicuro
Herege não é quem rejeita os deuses nos quais a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
Epicuro, Carta sobre a felicidade ou A conduta humana para a saúde do espírito
domingo, setembro 14, 2008
as definições [para o K., para variar]
o amor é ter a ursa maior a espreitar-me pela janela. sorrindo.
sábado, setembro 13, 2008
as mãos cheias do infinito ou o preço do silêncio
Eu tenho à medida que designo — e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la — e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem.
...Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
...Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
Clarisse Lispector
lang[u]age
And the child asked, qu'est que c'est pour de vrai quand on s'aime?, et la réponse s'est murmurée, feelings aren't optional, they're just there; what you do once you recognize them is another matter.
quinta-feira, setembro 11, 2008
I just bounce
E depois vem um dia em que acontece tudo. Literalmente tudo. O mínimo que posso dizer é que foi um dia giro.
terça-feira, setembro 09, 2008
coisas que me fazem chorar [em silêncio, porque não há nada a dizer...]
Há um silêncio pesado
que não sei de onde é que vem
nem sei se lhe chamam fado
ou que outro nome é que tem
Se canto, não me dói tanto
o coração magoado
mas há em tudo o que eu canto
este silêncio pesado
Não é mágoa nem saudade
nem é pena de ninguém
o silêncio que me invade
e não sei de onde é que vem
Silêncio que anda comigo
e que mesmo sem eu querer
diz através do que eu digo
o que eu não posso dizer
Este silêncio pesado
que me suspende e sustém
não sei se lhe chamam fado
ou que outro nome é que tem
Se com palavras se veste
a alegria e o pranto
então que silêncio é este
que há em tudo o que eu canto...
Manuela de Freitas/José Mário Branco [intro de Carlos Bica]
ecos — festa de tentativa e erro...
... e nova tentativa...
... e fim de bateria. Até que se carregue novamente e se volte às tentativas, sempre que elas façam sentido. Como o destino é o presente do passado...
Auditório 1 de Maio, Quinta da Atalaia
8 de Setembro de 2008
coisas que me fazem sorrir — ecos
A noite não tem fim e ali ficamos sem saber o que fazer com ela. E quando de repente damos por nós, a noite já não chega. Termina abruptamente e tu foges e eu fico fugindo, dizendo-te adeus como se quisesse que não fosses. E tu ficas. E eu fujo.
segunda-feira, setembro 08, 2008
coisas que me fazem chorar — ecos
Este arranjo mata-me. E este homem está em absoluto estado de graça. Tem a voz toda dentro do corpo, o coração grande a bombear memórias e dores e amores e esperanças. A bombear a falha, a perda, o ganho. Grande e grave e pousado e inquieto. A bombear beleza.
... se o dia não tem sentido, que a noite não tenha fim.
domingo, setembro 07, 2008
coito interrompido 2.0
Não posso chamar outra coisa a esta sensação, já algo familiar, de ir à Atalaia no sábado e não ir no domingo. Além de que Xutos e Big Band a encerrar... ui. Só os anfetaminados é que se vão aguentar à Carvalhesa final.
coito interrompido
É estar em transe com o fadista sentado numa penumbra azul, seguir o caminho da sua frase e suspender com ele a respiração no zénite, deixar o silêncio cair naquela vertigem da cadência que se anuncia, já estar esquecida de mim e de tudo e de repente afinal a tenda está cheia de gente que quer mostrar-se do fado, que quer ruidosamente manifestar-se, e chovem as palmas e os trinados de "ah, fadista!", e o fadista sobe um pouco os olhos para o trio, retém o ar para manter a frágil bolha em seu redor, em nosso redor, os que, desesperados, sussurram um clamor por silêncio, e aguenta, sustém, mais um pouco, eles vão perceber, eles não percebem, nem perceberam que aplaudiam um fado interrompido, a bolha foi-se, puf, o fadista ergue-se, sorri em desalento para nós desalentados e o trio ataca o fado seguinte. Bem andadinho, para fugir ao desgosto.
Este está a ser o ano de Camané. E foi um concerto para não mais esquecer, mesmo tendo visto fugir, impotente, um daqueles momentos raros em que o coração se dá ao luxo de parar um pouco para melhor sentir o respirar de um Artista.
Este está a ser o ano de Camané. E foi um concerto para não mais esquecer, mesmo tendo visto fugir, impotente, um daqueles momentos raros em que o coração se dá ao luxo de parar um pouco para melhor sentir o respirar de um Artista.
sábado, setembro 06, 2008
a malha da noite
I like the free fresh wind in my hair, life without care, I'm broke, that's oke!...
... é pois, achavam que ia sair uma treta poética qualquer, não era? Não, é "malha" do jargão do d'jéze [jazz, em amaricano] mesmo...
... é pois, achavam que ia sair uma treta poética qualquer, não era? Não, é "malha" do jargão do d'jéze [jazz, em amaricano] mesmo...
o estrangeiro
Gosto de assassinos que choram. Os que vertem uma lágrima no golpe de misericórdia. Os que matam por amor, os que sofrem por matar, mas quem mata por amor não se arrepende. Os que não se arrependem. E ao limpar a lágrima dizem, duvido que tenhas sofrido mais do que eu.
Faz-me sorrir. Dá-me vontade de lhes passar a mão pelo rosto, em silêncio... pobres crianças, que na sua fantasia, na sua alucinação de Poder, julgam ver sem vida aquilo que nunca poderiam ter poder para matar. Aquilo que só morre por vontade própria.
E dizia Shakespeare, pela boca de um velho, a um homem poderoso: —... meu doce menino.
Faz-me sorrir. Dá-me vontade de lhes passar a mão pelo rosto, em silêncio... pobres crianças, que na sua fantasia, na sua alucinação de Poder, julgam ver sem vida aquilo que nunca poderiam ter poder para matar. Aquilo que só morre por vontade própria.
E dizia Shakespeare, pela boca de um velho, a um homem poderoso: —... meu doce menino.
sexta-feira, setembro 05, 2008
sempre aos altos e baixos — plano de fim-de-semana
Figueira, Figueira da Foz, das finas areias, berço de sereias procurando abriiiigo no Centro de Artes e Espectáculos Pedro Santana Lopeeeeeees....
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Quinta da Atalaia, avante para o mosh à carvalhesa...
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Porto, mas tentando fugir aos kamikazes da Red Bull.
Doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap.
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Quinta da Atalaia, avante para o mosh à carvalhesa...
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Porto, mas tentando fugir aos kamikazes da Red Bull.
Doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap doo wap.
teste 2 — elogio da boémia
Este é bem giro, sobretudo porque estou agradada com o resultado. A primeira tentativa disse-me que o meu cérebro tinha 24 tenros aninhos, a segunda já deu 20. Parece que ainda tenho crédito de má vida, devo ter nascido com superavit de neurónios. E além disso, fico contente por ter a experiência aliada à frescura mental. Não quero dar por mim, em nenhuma altura da vida, a dizer aquelas coisas tipo, "se eu soubesse o que sei hoje... tinha vivido."
A idade do teu cérebro
Este jogo japonês vai mostrar-lhe se o seu cérebro é mais jovem ou mais velho que o resto do seu corpo.
Instruções:
1. Tecle "start"
2. Aguarde pelo 3, 2, 1.
3. Memorize a posição dos números e clique nos círculos, sempre do menor para o maior número.
Nota: Comece com o ZERO se ele estiver presente.
4. No final do jogo, o computador vai dizer a idade do seu cérebro.
A idade do teu cérebro
Este jogo japonês vai mostrar-lhe se o seu cérebro é mais jovem ou mais velho que o resto do seu corpo.
Instruções:
1. Tecle "start"
2. Aguarde pelo 3, 2, 1.
3. Memorize a posição dos números e clique nos círculos, sempre do menor para o maior número.
Nota: Comece com o ZERO se ele estiver presente.
4. No final do jogo, o computador vai dizer a idade do seu cérebro.
teste 1
Pois... era bom era. Em Yosemite Park é que eu estava bem, com um alazão e uma harmónica. Oh give me land, lot's of land under starry skies above, don't fence me in...
Uma fase, como qualquer outra. No inverno é capaz de dar o Cartier-Bresson, no carnaval o Warhol, na primavera a Cindy Sherman, and so on...
Which famous photographer are you? Ansel Adams: Known for large scale silver gelatin landscapes especially of Yosemite National Park "Sometimes I do get to places just when God's ready to have somebody click the shutter." |
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Uma fase, como qualquer outra. No inverno é capaz de dar o Cartier-Bresson, no carnaval o Warhol, na primavera a Cindy Sherman, and so on...
quinta-feira, setembro 04, 2008
brass revival
E quase dez anos depois, é-me dada a oportunidade de voltar a ter uma noite de swing e gozo à frente de uma big band. Amanhã, com os Lisbon Swingers, vou recuar umas décadas tentando não andar para trás, e curtir The man I love, April in Paris, The lady is a tramp [na primeira pessoa, com certeza] e o meu eterno sonho de aspirante a crooner, I'm beginning to see the light. Sob a direcção do excelentíssimo trombonista Klaus Nymark, no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, lá pelas dez da noite. Com muita pena minha, a minha querida Polegar só lá chega a horas se for a voar, certo, gaja? Fica para próxima, quem sabe daqui a quanto tempo...
Quem se vir na zona do Mondego sem programa para sexta a noite, come, let's mix where Rockefellers walk with sticks or "umberellas" in their mitts... puttin' on the Ritz.
Quem se vir na zona do Mondego sem programa para sexta a noite, come, let's mix where Rockefellers walk with sticks or "umberellas" in their mitts... puttin' on the Ritz.
o exemplo
Já tivemos um ministro a dizer que Portugal era um bom sítio para investir porque os salários eram baixos [os chineses que se cuidem], agora o PR traz-nos à ribalta como exemplo a admirar, a Biedronka, uma cadeia de supermercados detida na totalidade pela Jerónimo Martins, que orgulho, um grupo português que só no primeiro semestre deste ano atingiu os 1.618.8 milhões de euros em vendas, foooogo, que número é este?, nem o consigo dizer.
Mas consigo dizer doze horas de trabalho diário sem remuneração das horas extraordinárias. Consigo dizer contratos em que se escreve que as funcionárias "têm de ingerir 1000 calorias por dia a fim de poderem carregar os pesos". Consigo dizer aborto espontâneo. Consigo dizer morte no local de trabalho por falta de condições, de segurança e de respeito pela dignidade e os direitos dos trabalhadores. Consigo dizer coerção, coacção, medo, pressão psicológica.
Consigo dizer isto tudo. Mas nem todos os empregados da Biedronka o conseguem. O desemprego é alto na Polónia e é preciso comer.
Para Cavaco Silva esta empresa é um exemplo. Para mim, e isto aplica-se necessariamente ao máximo representante institucional do meu país, esta empresa é uma vergonha. Para não dizer um crime.
A confirmar:
AQUI
AQUI
AQUI
e
AQUI
Não resisto a citar a pessoa que me enviou esta informação por e-mail, porque diz tudo o que tenho vontade de dizer:
"Recebi isto por email, isto diz-te respeito.
Dá vontade de não meter mais os pés num Pingo Doce,
a questão é que começas por aqui, percorres todos os outros,
e acabas sem ter para onde ir,
a ver onde vais inventar a compras que necessitas lá para casa...
ah, não percebes porque peguei nisto agora,
nada de novo, acontece todos os dias,
não é caso único, queres novidades,
isto é sempre uma velha história.
Não percebes porque te envio isto agora, e só agora...
eu também não."
Dziękuję, Ricardo.
quarta-feira, setembro 03, 2008
CSIndicador
É que ainda por cima não vai compensar, como me disse logo o Filipe. Ainda se fosse o indicador direito, tinha uma temporada de crimes perfeitos pela frente, assim com a impressão digital alterada para sempre. Agora este... é mesmo uma inutilidade [suspiro]. Auch...
mais deprimente que o céu de chumbo, a Division e o Murphy e a Galás juntos, só mesmo a televisão...
Depois de termos a Floricoisa a chamar mãe a uma árvore, agora temos a Sónia Araújo a chamar mãe à câmara. Avançamos assim para o direito de parentalidade de objectos inanimados. Eu diria que há aqui um padrão de comportamento algo preocupante. Mas vá, enquanto não se lembrarem de pôr alguém a chamar mãe a uma lésbica, está salvaguardada a moral... A minha dúvida é só uma: as lobotomias serão todas feitas na mesma clínica?
na ponta dos dedos
A falta que faz um indicador capaz. Mesmo o esquerdo, sobretudo o esquerdo, mão cega, mão lenta, mão trapalhona. O indicador é o dedo mais esperto, a mão parece agora ainda mais burra. De repente o médio toma conta de tudo, quero escrever um "c" escrevo um "x", não tarda estou a mandar jokax e props pó pipole. O segundo andamento da Pastoral torna-se uma tortura chinesa para o terceiro dedo da mão esquerda [ou seja, uma semana de quase descanso para a vizinhança]. Arrumar papelada, cozinhar, é a coisa mais insidiosamente irritantezinha possível, e conduzir é uma anedota e parece que estou constantemente a insultar o condutor da frente. E a qualquer distracção, para além do latejar recorrente em redor dos cinco pontos, uma dor funda e bruta, com sabor a metal. É na ponta dos dedos que se concentra muita da carne mais tenra, da pele mais fina, terminal de sensações, porta de entrada, descodificador do toque. Cá está, não se pode ter essa sensibilidade sem que isso signifique a possibilidade da dor mais extrema.
Bem disse o meu mestre, até se podia guisar a alcatra, mas a asae não ia achar um bom indicador.
Bem disse o meu mestre, até se podia guisar a alcatra, mas a asae não ia achar um bom indicador.
hoje gostava de ser imune...
...a este céu de chumbo. Não arrefece, venta. Não escurece, esconde-se. Faz sentir a luz que nunca por vontade própria se consegue alcançar, a luz que reflecte no espelho as nossas esperas. Quando nos toca a orelha, há já eras sem fim que é tarde para a agarrar.
Tenho resistido a pôr os Joy Division a tocar, mas não sei se aguento muito mais. Há dias em que gostava de ser imune à luz.
Tenho resistido a pôr os Joy Division a tocar, mas não sei se aguento muito mais. Há dias em que gostava de ser imune à luz.
hold your ground
You wanna get to heaven, take the devil by the hand, and you slide right into the promised land, 'cause this could be the night and this could be the gate. Everybody's waitin' for you darlin', so don't be late. What's a matter honey ? Didn't you pay your money for the ghost train ?...
the men we love
Para o Paulo, com um grande beijo de parabéns, neste início de ano especial, em que estamos todos, na verdade, à espera da gal we'll love. :)
terça-feira, setembro 02, 2008
súmula [september song]
... and then I fell in love, head over heels in love, with the most wonderful boy in the world. We would take long walks by the river or just sit for hours gazing into each other's eyes. We were so very much in love. Then one day I went away and I thought I'd die, but I didn't, and when I didn't I said to myself, "is that all there is to love?"
Is that all there is, is that all there is? If that's all there is my friends, then let's keep dancing...
E talvez só por isso nunca me venha a ser possível estar pronta para essa desilusão final. Porque o é, eu, como esta deliciosa Peggy Lee, não tenho grandes dúvidas disso. Uma passagem como qualquer outra. Um momento. E só. Faz sentido. O marinheiro que se deu ao trabalho de alongar a linha da vida nem sequer acreditava na sina, mas lê-se-lhe no traço dos olhos que também não fazia assim tanta questão de ficar. Seria o mesmo que ir, afinal, is that all there is? E ficando, sempre pode manter um gato por perto. Um belíssimo tira-teimas, digo eu.
Hugo Pratt, Fábula de Veneza [sirat al bunduqyyiah]
Até hoje ainda não houve notícia da sua morte. O seu sábio dEus soube morrer primeiro.
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