segunda-feira, maio 11, 2009

bartleby, jonas, a baleia e a improbabilidade da comunicação [pelo insigne cronista Rui Tavares]

Por exemplo, o profeta Elias. Vinha ele de Jericó para Betel quando se cruzou com um grupo de crianças irrequietas. Enquanto todos subiam o caminho, as crianças gritavam: vai, careca! sobe, careca!
(Elias era careca; deveria ter referido este facto em primeiro lugar?)
E então? Vamos dar a palavra ao Livro de Reis: "E então, virando-se Elias para trás, viu os meninos e os amaldiçoou em nome do Senhor. E saíram duas ursas do bosque, e as ursas despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos."
Há muito para admirar nesta passagem. A exactidão, por exemplo: duas ursas e quarenta e dois meninos despedaçados, nem um a mais ou menos. E a concisão. E a lição moral: não gozem com os carecas. Principalmente se eles forem intermediários do Criador.


Ser intermediário do Chefe, como sabe qualquer adepto de filmes sobre a máfia, dá direitos e deveres. Ser profeta também. Do lado dos direitos: protege-nos contra crianças irritantes. Deveres: quando o Chefe manda fazer um recado, o recado tem de ser feito.
E se um profeta se recusasse a ser intermediário? É aí que entra Jonas.
Jonas é o profeta preferido de Svengali.


Deus disse a Jonas: levanta-te e vai a Ninive. Ninive é no actual Iraque (ainda existe) e Deus não gostava do comportamento dos seus habitantes, a que se chama ninivitas. Então Deus ordenou a Jonas que profetizasse aos ninivitas: mudai ou sereis destruídos dentro de quarenta dias.

Mas Jonas não queria profetizar, veremos adiante porquê. Ao invés de obedecer, fugiu à pressa para um navio e atravessou o Mediterrâneo. Os versículos seguintes contam a perseguição de Deus a Jonas para o forçar a profetizar. Envolvem uma baleia e, como é do conhecimento geral, a baleia engole Jonas e vomita-o nas praias de onde fugira. Finalmente Jonas tem de ir a Ninive. Tem de profetizar. Profetiza. Os ninivitas arrependem-se. Deus não destrói Ninive.
E aqui vem a parte interessante. Jonas fica furioso com Deus. Acusa Deus de o ter enxovalhado. Ao não ter destruído Ninive, os ninivitas nunca saberiam se a profecia era verdadeira ou não. Jonas não queria passar por um falso profeta. Para tal humilhação, preferia ter ficado calado.


Qual é o problema de Jonas? Na verdade, o problema de Jonas é entender bem a linguagem e os seus efeitos. Jonas sabe que, se disser aos ninivitas que Deus destruirá a sua cidade, há duas hipóteses. A primeira: os ninivitas não mudam, são destruídos, e não sobra ninguém para confirmar que Jonas tinha razão. A segunda: os ninivitas mudam, não são destruídos, e ninguém pode garantir que Jonas tinha razão.

Ou seja, há momentos em que ter razão não serve de nada. É melhor ficarmos calados porque aquilo que dissermos pode influenciar o comportamento das pessoas a que nos dirigimos de forma a refutar a nossa opinião. Svengali chama "efeito Jonas" a este dilema: se falarmos a nossa profecia não ocorre, se não falarmos ninguém sabe que tínhamos uma profecia.
O efeito de Jonas é bem compreendido pelas crianças e pelos analistas políticos. Se dissermos, "não és capaz de fazer isto", a pessoa faz para provar que estamos errados. Se não tivéssemos falado, a pessoa nunca seria capaz de o fazer.


Pensando em Jonas, o profeta que não queria profetizar, Svengali inventou a palavra "antimediário". Os antimediários são os intermediários que se recusam a cumprir o seu papel.

Somos todos intermediários. Isto é uma coisa que os profetas sabiam. Por outro lado, isso é uma coisa que os artistas não sabem: somos todos intermediários. Os artistas chamam-se a si próprios "criadores", mas enganam-se, porque ninguém cria nada. Na verdade, limitamo-nos a repassar, a acrescentar, a comentar, a distorcer.
Essa é uma razão pela qual a completa originalidade artística não existe. Por sua vez, isso explica o bloqueio que sentem tantos artistas enquanto ainda acreditam que a completa originalidade artística existe mesmo e pode ser alcançada. A ilusão é demasiado pesada e asfixia o artista. Quando finalmente a deixa cair, o artista reconhece que não é mais do que um intermediário e pode finalmente começar a fazer coisas. Boas, más, mais ou menos, mas infinitamente melhores do que as coisas completamente originais que não chegaram a ser feitas.
Há dois exemplos diferentes de antimediários: os que não podem e os que não querem.
O escritor checo Karel Čapek criou um antimediário do primeiro género num romance,
Vida e Obra do Compositor Foltyn, cujo protagonista se chamava Foltyn e sonhava ser compositor. O "compositor Foltyn", como se apresentava em sociedade, acreditava que um artista genial vive da inspiração, da pura pulsão criativa. Acreditava nisso de tal forma que nunca fizera nenhum esforço para compor seriamente nada. Com o passar dos anos, Foltyn fica cada vez mais frustrado por não conseguir fazê-lo. Desejava tanto "criar" que nunca lhe passou pela cabeça que teria de contentar-se com ser intermediário, como qualquer artista. A arte chegou até ele, e morreu ali mesmo.


O escritor Herman Melville criou um antemediário do segundo tipo: os que se recusam. A personagem chama-se Bartleby, no conto "Bartleby, o Escrivão". Bartleby é um amanuense num escritório de Wall Street. De cada vez que o seu patrão o manda fazer algo, responde: "preferia não ter de o fazer": Quando o patrão o despede, ele diz que "preferia não ter de sair". Quando vai preso, Bartleby diz que "preferia não ter de comer".
O seu patrão indigna-se com aquela atitude, mas engana-se: não se trata de uma atitude. Tomar atitudes é coisa de intermediários. Os antimediários, segundo Svengali, sabem que estão limitados às
antitudes. Só depois de Bartleby morrer, o seu patrão descobre um pormenor que talvez explique a antitude. O anterior emprego de Bartleby fora nos correios, no arquivo das correspondências mortas, ou seja, das cartas que nunca chegaram aos destinatários. Anos e anos de convívio com cartas de amor, mensagens de pêsames e notícias de família que nunca puderam ser lidas tinham criado nele um profundo desânimo pelas possibilidades da comunicação.
Svengali pára na esquina por minutos e considera se Bartleby não é a verdadeira profecia de Jonas: o antimediário perfeito, aquele ser humano que sente que é o elo quebrado de uma cadeia inútil.



in O Fiasco do Milénio e outras tragédias menores, colecção das crónicas na Blitz, ed. Tinta da China

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