Psicanálise barataNão me engano,
"Les anges exterminateurs" pode ter algum efeito sobre quem o veja. Diria que a única forma de passar este filme de modo proveitoso é mesmo embarcar nas questões paralelas e fazer outro filme na cabeça. Mas o mérito será da cabeça em questão. Sem trocadilhos baratos.
O argumento, autobiográfico, conta o durante e o depois do processo de preparação do filme "Choses secrètes", do mesmo Jean-Claude Brisseau que assina este... enfim, a ver se me faço entender: um realizador quer explorar "o mistério do prazer feminino", e para fazê-lo conta com as improvisações baseadas em fantasias próprias das actrizes que passarem pelo seu casting e forem aprovadas. Só actrizes, sós e umas com as outras. A ausência de contacto físico masculino é assegurada na entrevista prévia pelo realizador [a personagem, quer dizer], o único presente no casting. Não deixa de ser curioso que ele intua que para chegar a meandros insondáveis a solução se concretize na masturbação solitária ou entre duas ou três mulheres, em locais privados ou públicos - elas chamam-lhe às vezes fazer amor, mas resume-se basicamente a masturbarem-se mutuamente, falemos claro [ai, as visitas do Google que este blog vai ter nos próximos dias, jesus...]. Das duas três: Brisseau pensa que as mulheres terão a dupla acendalha do proibido e da cumplicidade para nela encontrarem uma chama desconhecida, mas desconhecida de quem, das mulheres ou dele, realizador, François ou Brisseau?; ou confundiu espírito de investigação artística com transferência psicológica e esqueceu-se de que não é neutro, não pode sê-lo, e que as suas próprias fantasias com mulheres não eram necessariamente
as fantasias das mulheres. E ainda se esqueceu de que havia sempre um homem presente [ele mesmo, duh!], em posição de observador [e não de homem-fantasma].
As mulheres mais interessantes do filme passam pouco tempo na tela. A primeira actriz da entrevista, sem dúvida alguém que compreende a procura do realizador e que poderia enriquecê-la... e talvez por isso mesmo se recuse docemente a fazê-lo. Céline, a actriz de segunda escolha que acaba por fazer o filme, e que afinal até era uma boa actriz apesar de "fazê-lo com muita facilidade" - a facilidade em atingir um orgasmo pode atrasar uma actriz em termos profissionais, é a moral da história. Céline é a única que não se submete agradecida. Conversa de igual para igual, assume sem problemas a sua história de trabalhadora sexual-estudante, está inteira, é inteligente, e confronta François com o seu papel edipiano nos
essayes para a escolha do trio de actrizes. Todo um mundo de teias de aranha desapareceu já de Céline, e é por isso que ela não pode ser a primeira escolha. O "papa François", tão querido que ele é, precisa de meninas que precisem dele, não de uma actriz profissional que encare um filme como aquilo que é... um filme. Precisa de mulheres que o seu olhar consiga... objectivar [em todos os sentidos possíveis e imaginários da palavra]. Por isso é tão triste o seu papel, é tão triste quando se lamenta por ter feito apenas um filme, quando o que queria era chegar a uma qualquer verdade. Talvez por isso seja tão triste este filme. E quando digo triste não estou melancólica, estou mais a pensar num palhaço.
Há um diálogo em que Julie diz que está convencida de que não é por mal que François não compreende tudo o que se passou, não compreendeu as manipulações mútuas [aqui em sentido literal, se faz favor], não compreendeu as mulheres que ouviu e filmou, não percebeu nada do que aconteceu nem porque aconteceu. Para mim o sub-texto não é que François seja burro como as casas, mas apenas que não viu porque não quis ver.
Não, François não é burro. Quanto muito, é um banana. E é por isso que lhe acontece tudo, qual Perdigão, e tudo por culpa das mulheres. Um processo judicial, uma pena suspensa, o nome de cineasta na lama, uma vingança feminina com recurso a mãos masculinas e a um taco de
baseball [pois claro, e neste caso temos até crítica político-social, porque os sacanas eram polícias à paisana]; e no fim uma mulher ida e uma casa vazia. Um rapaz tão doce, pelo menos a acreditar no inacreditável fantasma da avó que surge logo no início do filme, não merecia, coitadinho. Temos portanto um realizador banana que se filma a si próprio no corpo de um actor que até é parecido consigo e depois diz em entrevistas que a personagem só tem 20 a 30% de autobiográfica. Um filme que mete umas aparições fantasmagóricas de uma avó patética e inexplicável e de uns anjos caídos [mulheres, claro] com a função de exterminar o realizador, não se sabe bem porquê [nem uma mesma actriz para dois papéis resolve o enigma] e com nenhuma da poesia dos anjos de Wenders, nem quando se apaixonam. Uma série de pistas secundárias que dizem muito e que parecem acidentais, ou seja, nunca cheguei a perceber se ele percebeu o que lhe aconteceu, percebem? Uma penitência que chega a parecer uma vingançazinha auto-justificatória. Um querer ver muito das mulheres que nunca tira os olhos do seu próprio pénis, ora sooobe, ora deeeesce, uhuuuu! No fim, a sensação desconfortável de que as mulheres tendem a sofrer de um perverso instinto maternal, mesmo quando surgem em forma de anjo - a esposa que se despede com um magoado mas doce aviso escrito, a avó que pede aos anjinhos que sejam brandos com o seu menino, que ele no fundo é só uma criança, a anja apaixonada que só deixa que lhe partam a rótula, o ombro e a cara em vez de o matarem, tudo sussurra, coitadinho, ele não faz por mal. Mamma mia...
O que Brisseau procurava não era uma actriz, era uma vítima, e precisamente por isso foi acusado de agressor - as vítimas têm aquela tendência chata para, hmm, como dizer, se vitimizarem; já um actor, caro senhor, com maior ou menor dificuldade, entra e sai das suas personagens [ssschhht, meninos, bem bem...] e isso não é um defeito, pelo contrário, chama-se enriquecimento, crescimento ou, vulgarmente, técnica. Alguns têm grandes egos, como se diz no filme, é bem verdade, mas poucos se compararão aos egos de realizadores como este. Ou seja, um filmezeco, mas que aconselho aos homens na generalidade... bem, mais aos homo que aos hetero, talvez, já que os últimos poderão ter mais dificuldade em concentrar-se em questões de género durante o maná de cenas proto-lésbicas. E daí... quem sabe? E por que raio é que hei-de me deitar a adivinhar? Olha, já sei. Vou mas é fazer um filme sobre os mistérios do interdito no prazer sexual masculino. Sugestões, rapazes?