quinta-feira, março 29, 2007

O prazer no espaço vazio

Ando há uns tempos para fazer um post a remeter para este excepcional blog que se chama De rerum natura, e hoje tinha mesmo de ser. Muitos momentos de prazer tenho tido ao lê-lo, e é justo portanto que aproveite um post que parte de Epicuro para passear pelo prazer de ser humano, pelo prazer de pensar, pelo prazer de conhecer. Carlos Fiolhais escreve com o entusiasmo de uma criança, a sapiência de um velho [um velho inteligente, note-se, que a idade é tudo menos estatuto] e o humor de um cientista; e é apenas um dos sete colaboradores.

Aqui lhe agradeço ter-me dado esta frase para começar o dia: "Somos feitos de átomos, regulados por leis, mas dotados de livre arbítrio. Os deuses não mandam em nós!"

E ao contrário do que aconselha o Sérgio Godinho nesta prendinha que aqui lhe deixo, que quem tem calos se apetreche para conseguir ir assim de lés a lés, qual centopeia prazeirosa no calcorrear e no conhecer.

Marcha centopeia.w...

terça-feira, março 27, 2007

E quanto ao teatro...

Há um ano passei este dia a trabalhar. Hoje baldei-me à festa, pois graças à alergia estou enjoadíssima e tenho um novo treçolho, desta vez no olho esquerdo. Enguiço? O treçolho, talvez...

...

Desculpa, querido Vítor, mas sentindo-me o Quasimodo, se me desse para falar de alguma coisa era de literatura. Mas bom resto de Dia Mundial do Teatro para todos. Eu ando um bocado bicho do mato, com estas maleitas, prefiro ir ver o Júlio César num dia mais calminho.
... e esta é para quem a apanhar.

Moonriver.mp3


Moonriver
wider than a mile
I'm crossing you in style
someday
Oh, dream-maker
you heart-breaker
wherever you're going
I'm going
your way

Two drifters
off to see the world
there's such a lot of world
to see
We're after the same rainbow's end
waiting 'round the bend
my huckleberry friend
moonriver
and me

Johnny Mercer e Henry Mancini, voz e dedos de Audrey Hepburn nas escadas de incêndio de Holly Golightly
Esta é para mim...

Both Sides Now.mp3


Rows and floes of angel hair
And ice cream castles in the air
And feather canyons evr'ywhere
I've looked at clouds that way

But now they only block the sun
They rain and snow on evr'yone
So many things I would have done
But clouds got in my way
I've looked at clouds from both sides now
From up and down, and still somehow
It's cloud illusions I recall
I really don't know clouds at all

Moons and junes and ferris wheels
The dizzy dancing way you feel
As ev'ry fairy tale comes real
I've looked at love that way

But now it's just another show
You leave'em laughing when you go
And if you care, don't let them know
Don't give yourself away

I've looked at love from both sides now
From give and take, and still somehow
It's loves illusions I recall
I really don't know love at all

Tears and fears and feeling proud
To say I love you right out loud
Dreams and schemes and circus crowds
I've looked at life that way

But now old friends are acting strange
They shake their heads, they say I've changed
Well something's lost, but something's gained
In living ev'ry day

I've looked at life from both sides now
From win and lose and still somehow
It's lifes illusions I recall
I really don't know life at all
I've looked at life from both sides now
From up and down, and still somehow
It's lifes illusions I recall
I really don't know life at all

Joni Mitchell, Both sides, now

segunda-feira, março 26, 2007

"Devo à providência a graça de ser pobre."
A.O.Salazar


E ainda há quem te agradeça, ó velho danado, a generosidade torturadora com que partilhaste a tua miséria humana, política, económica, filosófica, moral, cultural, cega e repressiva connosco.


...

Não mandei uma única sms para porra nenhuma de concurso nenhum. E fiz bem. Pois assim resta-me a convicção de que não votou a maioria daqueles que pensam. Ou seja, de que são muitos aqueles que esperam mais de um país do que um prato de bolor venenoso apresentado na ementa como ambrósia. Ou será que já não tens um pé numa galera, Portugal, e outro no fundo do mar, mas antes um coto enterrado numa frigideira no Tarrafal e outro debaixo da saia do bispo, um punho no lápis azul e outro no queixo partido de um democrata?

quinta-feira, março 22, 2007

Psicanálise barata

Não me engano, "Les anges exterminateurs" pode ter algum efeito sobre quem o veja. Diria que a única forma de passar este filme de modo proveitoso é mesmo embarcar nas questões paralelas e fazer outro filme na cabeça. Mas o mérito será da cabeça em questão. Sem trocadilhos baratos.



O argumento, autobiográfico, conta o durante e o depois do processo de preparação do filme "Choses secrètes", do mesmo Jean-Claude Brisseau que assina este... enfim, a ver se me faço entender: um realizador quer explorar "o mistério do prazer feminino", e para fazê-lo conta com as improvisações baseadas em fantasias próprias das actrizes que passarem pelo seu casting e forem aprovadas. Só actrizes, sós e umas com as outras. A ausência de contacto físico masculino é assegurada na entrevista prévia pelo realizador [a personagem, quer dizer], o único presente no casting. Não deixa de ser curioso que ele intua que para chegar a meandros insondáveis a solução se concretize na masturbação solitária ou entre duas ou três mulheres, em locais privados ou públicos - elas chamam-lhe às vezes fazer amor, mas resume-se basicamente a masturbarem-se mutuamente, falemos claro [ai, as visitas do Google que este blog vai ter nos próximos dias, jesus...]. Das duas três: Brisseau pensa que as mulheres terão a dupla acendalha do proibido e da cumplicidade para nela encontrarem uma chama desconhecida, mas desconhecida de quem, das mulheres ou dele, realizador, François ou Brisseau?; ou confundiu espírito de investigação artística com transferência psicológica e esqueceu-se de que não é neutro, não pode sê-lo, e que as suas próprias fantasias com mulheres não eram necessariamente as fantasias das mulheres. E ainda se esqueceu de que havia sempre um homem presente [ele mesmo, duh!], em posição de observador [e não de homem-fantasma].



As mulheres mais interessantes do filme passam pouco tempo na tela. A primeira actriz da entrevista, sem dúvida alguém que compreende a procura do realizador e que poderia enriquecê-la... e talvez por isso mesmo se recuse docemente a fazê-lo. Céline, a actriz de segunda escolha que acaba por fazer o filme, e que afinal até era uma boa actriz apesar de "fazê-lo com muita facilidade" - a facilidade em atingir um orgasmo pode atrasar uma actriz em termos profissionais, é a moral da história. Céline é a única que não se submete agradecida. Conversa de igual para igual, assume sem problemas a sua história de trabalhadora sexual-estudante, está inteira, é inteligente, e confronta François com o seu papel edipiano nos essayes para a escolha do trio de actrizes. Todo um mundo de teias de aranha desapareceu já de Céline, e é por isso que ela não pode ser a primeira escolha. O "papa François", tão querido que ele é, precisa de meninas que precisem dele, não de uma actriz profissional que encare um filme como aquilo que é... um filme. Precisa de mulheres que o seu olhar consiga... objectivar [em todos os sentidos possíveis e imaginários da palavra]. Por isso é tão triste o seu papel, é tão triste quando se lamenta por ter feito apenas um filme, quando o que queria era chegar a uma qualquer verdade. Talvez por isso seja tão triste este filme. E quando digo triste não estou melancólica, estou mais a pensar num palhaço.

Há um diálogo em que Julie diz que está convencida de que não é por mal que François não compreende tudo o que se passou, não compreendeu as manipulações mútuas [aqui em sentido literal, se faz favor], não compreendeu as mulheres que ouviu e filmou, não percebeu nada do que aconteceu nem porque aconteceu. Para mim o sub-texto não é que François seja burro como as casas, mas apenas que não viu porque não quis ver.

Não, François não é burro. Quanto muito, é um banana. E é por isso que lhe acontece tudo, qual Perdigão, e tudo por culpa das mulheres. Um processo judicial, uma pena suspensa, o nome de cineasta na lama, uma vingança feminina com recurso a mãos masculinas e a um taco de baseball [pois claro, e neste caso temos até crítica político-social, porque os sacanas eram polícias à paisana]; e no fim uma mulher ida e uma casa vazia. Um rapaz tão doce, pelo menos a acreditar no inacreditável fantasma da avó que surge logo no início do filme, não merecia, coitadinho. Temos portanto um realizador banana que se filma a si próprio no corpo de um actor que até é parecido consigo e depois diz em entrevistas que a personagem só tem 20 a 30% de autobiográfica. Um filme que mete umas aparições fantasmagóricas de uma avó patética e inexplicável e de uns anjos caídos [mulheres, claro] com a função de exterminar o realizador, não se sabe bem porquê [nem uma mesma actriz para dois papéis resolve o enigma] e com nenhuma da poesia dos anjos de Wenders, nem quando se apaixonam. Uma série de pistas secundárias que dizem muito e que parecem acidentais, ou seja, nunca cheguei a perceber se ele percebeu o que lhe aconteceu, percebem? Uma penitência que chega a parecer uma vingançazinha auto-justificatória. Um querer ver muito das mulheres que nunca tira os olhos do seu próprio pénis, ora sooobe, ora deeeesce, uhuuuu! No fim, a sensação desconfortável de que as mulheres tendem a sofrer de um perverso instinto maternal, mesmo quando surgem em forma de anjo - a esposa que se despede com um magoado mas doce aviso escrito, a avó que pede aos anjinhos que sejam brandos com o seu menino, que ele no fundo é só uma criança, a anja apaixonada que só deixa que lhe partam a rótula, o ombro e a cara em vez de o matarem, tudo sussurra, coitadinho, ele não faz por mal. Mamma mia...

O que Brisseau procurava não era uma actriz, era uma vítima, e precisamente por isso foi acusado de agressor - as vítimas têm aquela tendência chata para, hmm, como dizer, se vitimizarem; já um actor, caro senhor, com maior ou menor dificuldade, entra e sai das suas personagens [ssschhht, meninos, bem bem...] e isso não é um defeito, pelo contrário, chama-se enriquecimento, crescimento ou, vulgarmente, técnica. Alguns têm grandes egos, como se diz no filme, é bem verdade, mas poucos se compararão aos egos de realizadores como este. Ou seja, um filmezeco, mas que aconselho aos homens na generalidade... bem, mais aos homo que aos hetero, talvez, já que os últimos poderão ter mais dificuldade em concentrar-se em questões de género durante o maná de cenas proto-lésbicas. E daí... quem sabe? E por que raio é que hei-de me deitar a adivinhar? Olha, já sei. Vou mas é fazer um filme sobre os mistérios do interdito no prazer sexual masculino. Sugestões, rapazes?

terça-feira, março 20, 2007

O jogo em discussão no fórum filosófico só pode ser este.




com agradecimentos ao ANAUEL
Isto quem tem amigos tem tudo...



Só a Raquel... Até eu pensava que já não havia habermasianos na Rinchôa, é sempre bom ficar a saber estas coisas, carago! E amei, amei, amei, aquela senhora que diz que aquilo tudo lhe parece uma cambada de homens a correr atrás de uma verdade. A primeira leitura pode ser um bocado machista, mas a segunda é tão irresistivelmente existencialista, uma delícia. Eu devia tentar dominar este meu lado masculino obcecado com o Rubick, caramba... Logo eu, que até espetei na parede da cozinha um cartaz de um festival de teatro na Comédie de Reims que reza o seguinte: "Ne cherche pas l'absolu; il est en toi comme un ravin de sécheresse qui te perdra". Só que com o objectivo de me lembrar de cozinhar mais e beber menos vodka...

Ainda me estou a rir. Azulinha, és a maior!

segunda-feira, março 19, 2007

Música de câmara para um bordel



Ou de como não há cantoras como as actrizes, não há actrizes como as cantoras. Ou que raiva que eu tenho das ancas da Agnés Jaoui. Ou que rica noite passei ontem no Instituto Franco-Português. Ou quando for grande também gostava de ser assim.

Lo Dudo.mp3

domingo, março 18, 2007

Aquele que diz que nunca há excesso de virtude esquece-se de que não há virtude onde há excesso.*

O Misantropo, de Molière, Teatro da Comuna até 25 de Março.
De 4ª a Sábado às 21h30m e Domingo às 16h.
Tradução: Luís Miguel Cintra
Encenação: Álvaro Correia
Elenco: Àlvaro Correia, João Tempera, Miguel Sermão, Lucinda Loureiro, Rogério Vieira, Sara Cipriano, Sandra Faleiro e Victor Soares.




Posso começar por estipular o seguinte, e não está aberto a discussão [yeah, right!...]: Molière é absolutamente genial. Bem servido por uma tradução como a de Luís Miguel Cintra, não perde nem um pingo. E absolutamente respeitado por uma versão própria e nada reverente como a de Álvaro Correia é um prazer imenso.

O espaço, corajoso de tão largo, nunca soçobra. Os percusos são inteligentes e fruídos pelos actores, o texto compreendido, depreendido, relido, repensado, vivo portanto. O elenco, não homogéneo, mas sem dúvida coeso, merece cada aplauso [e mereceria até mais, mas pronto, era matiné e os velhotes não aguentavam mais da artrite]. Bom, para aqui vai o meu defeito crítico profissional: a elocução tinha os seus deslizes, alguns mais graves que outros, mas mercê talvez do meu trabalho mais recente [sobretudo do meu trabalho no Porto com o João Henriques], me parece haver uma certa "falta de carências" na ligação de alguns actores com a língua ou com a voz ou, por vezes, com ambas. E neste momento, naturalmente, não estou a falar apenas na Comuna, longe disso, nem de algo que diminua este espectáculo.

Palavreado àparte, temos ali, durante mais uma semana, um texto genial, servido por actores inteligentes e generosos, num cenário bonito e eficaz. Uma versão que nos deixa, como Molière provavelmente tencionava, com mais interrogações do que respostas, com vontade de pensar e de viver. Que mais se pode pedir do teatro?


*já dizia o senhor Montesquieu

sábado, março 17, 2007

Divergências significantes: a grandeza


Il Gesù, Roma, Fevereiro de 2007
Sucedâneo patético de um socialismo que parece nunca ter existido

"Ao tomar posse em condições de poder inéditas à esquerda, José Sócrates inicia a concretização de um programa político de influência ideológica neoliberal que tem como objectivo desestruturar o papel social do Estado tal como foi construído no pós-guerra (em Portugal, após o 25 de Abril), não só na vertente de garante de direitos democráticos, mas também na da redistribuição de riqueza, numa pressão inédita, numa luta de classes invertida, por forma a retirar poder de compra e qualidade de vida a quem trabalha, a favor do mercado, do capital e da classe dominante que o representa, as elites de gestores e empresários. O resultado tem sido o dumping social dos últimos dois anos."

São José Almeida, Dois anos da "nova política", Público, 17.03.2007

quinta-feira, março 15, 2007

Divergências significantes: o conforto

(frente a um anfiteatro universitário cheio)

- Acha mesmo mais reconfortante pensar que a vida se resume a isto, que não há nada depois?
- Acho mais reconfortante do que pensar que a vida não passa de um teste.

diálogo no House, dispensa-se, por óbvia, a informação de que personagem disse o quê...
Palavras

Para quem possa ter ficado a pensar em como é que se pode cantar o Lady Lazarus [não que eu possa saber, já que ninguém me diz nada, blaaargh], aqui vai a única gravação que conheço do fim de uma partitura que tive o privilégio de trabalhar [e apresentar] há dois anos com a Olga Prats, a Mareike e o Paulo, no meu último ano de esml. A soprano é Phyllis Curtin, o clarinetista, para quem a obra foi escrita, é Joseph Rabbai, o pianista é Ryan Edwards. A obra chama-se Ariel e inclui ainda os poemas Words, Poppies in July, The hanging man e Poppies in October. A música, arrebatadora e mais difícil de sentir do que de cantar, é de Ned Rorem, compositor norte-americano, e foi escrita por alturas do ano em que eu nasci. And I, a smiling woman, I am only thirty, and like the cat I have nine times do die.

Ariel - Five Poems...

quarta-feira, março 14, 2007

Um povo sem o conhecimento da sua história é como uma árvore sem raízes.
Marcus Garvey


Então estamos a caminho de tornar-nos num país com um super-intendente das polícias e onde as misercordiosas misericórdias tomarão o lugar dos serviços de saúde. Sim senhores, muito bem. Espero que no pacote venha um novo Bocage, ao menos não se perde tudo...


...

O curioso é que ainda há quem nos tente convencer de que isto é andar para a frente. Já estou como a Mafalda a olhar para o caranguejo: O FUTURO NÃO É PARA ESSE LADO!


a ler, a este (des)propósito, o sempre claro Rui Tavares.

segunda-feira, março 12, 2007

E porque cantar este poema foi uma experiência marcante para mim...

... e ouvi-lo pela própria é outra.



I have done it again.
One year in every ten
I manage it-----

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My face a featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify?-------

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot ------
The big strip tease.
Gentlemen, ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

'A miracle!'
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart---
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair or my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash---
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there----

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.


Sylvia Plath,
Lady Lazarus, in Ariel
Paizinho

Há amigos que sabem descobrir os mais belos presentes ao virar da esquina. Aqui tendes Sylvia Plath por si mesma, com sentidos agradecimentos àquela que já se deixou conhecer por Bixu.



You do not do, you do not do
Any more, black shoe
In which I have lived like a foot
For thirty years, poor and white,
Barely daring to breathe or Achoo.

Daddy, I have had to kill you.
You died before I had time--
Marble-heavy, a bag full of God,
Ghastly statue with one gray toe
Big as a Frisco seal

And a head in the freakish Atlantic
Where it pours bean green over blue
In the waters off beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du.

In the German tongue, in the Polish town
Scraped flat by the roller
Of wars, wars, wars.
But the name of the town is common.
My Polack friend

Says there are a dozen or two.
So I never could tell where you
Put your foot, your root,
I never could talk to you.
The tongue stuck in my jaw.

It stuck in a barb wire snare.
Ich, ich, ich, ich,
I could hardly speak.
I thought every German was you.
And the language obscene

An engine, an engine
Chuffing me off like a Jew.
A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.
I began to talk like a Jew.
I think I may well be a Jew.

The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna
Are not very pure or true.
With my gipsy ancestress and my weird luck
And my Taroc pack and my Taroc pack
I may be a bit of a Jew.

I have always been scared of you,
With your Luftwaffe, your gobbledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You--

Not God but a swastika
So black no sky could squeak through.
Every woman adores a Fascist,
The boot in the face, the brute
Brute heart of a brute like you.

You stand at the blackboard, daddy,
In the picture I have of you,
A cleft in your chin instead of your foot
But no less a devil for that, no not
Any less the black man who

Bit my pretty red heart in two.
I was ten when they buried you.
At twenty I tried to die
And get back, back, back to you.
I thought even the bones would do.

But they pulled me out of the sack,
And they stuck me together with glue.
And then I knew what to do.
I made a model of you,
A man in black with a Meinkampf look

And a love of the rack and the screw.
And I said I do, I do.
So daddy, I'm finally through.
The black telephone's off at the root,
The voices just can't worm through.

If I've killed one man, I've killed two--
The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,
Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There's a stake in your fat black heart
And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.
They always knew it was you.
Daddy, daddy, you bastard, I'm through.

Sylvia Plath, Daddy, in Ariel

sexta-feira, março 09, 2007

Dias de tantas mulheres

Ela é bela, double-face, para usar a terminologia do Miguelito. Ela tem sido tantas ao longo dos verdes anos que tem percorrido intensamente. Ela agarra-nos à cadeira e faz-nos viajar pelo sofrimento e pela felicidade de estar inteira num palco. Para isto, paga-se bilhete. Para vê-la percorrer a vida com o mesmo amor, a mesma dor, as mesmas tripas e a mesma generosidade é preciso ter o privilégio que eu tenho e que nenhum bilhete compra: o de a ter como uma das mulheres mais importantes e mais próximas da minha vida.

Hoje é o dia dela. Por isso é o meu dia, que lhe sinto a falta e a presença, e que daqui, a 600 km de distância do seu campo de estrelas, lhe faço o meu brinde sentido e saudoso.


À tua, querida Violeta!
À amizade, ao amor e à vida que em ti fervilha!


Muitos parabéns!


Roma, Outubro de 2005

terça-feira, março 06, 2007

Well, tough, your life is worthless. So what?



Richard Dawkins não é um papa, um pregador, um profeta. É um pensador ateu. Claro e apaixonado, confortável na dúvida, desconfortável no conforto fácil. William Crawley é um brilhante interlocutor, na melhor acepção do simpósio filosófico, não baixa as armas nem ataca, contrapõe e desafia de modo inteligente e sem reverências. E assim faz um belíssimo programa de televisão.

Coloco aqui este vídeo por um sem número de razões. Acima de tudo porque é absolutamente consolador assistir a uma discussão deste calibre, com esta qualidade de parte a parte, com esta capacidade de ouvir o outro, de pensar, de contradizer, de motivar. E depois porque sou ateia, e quanto mais religiosa me sinto mais ateia me assumo. Porque me sinto parte de um todo, porque sei que sou feita da mesma matéria-base que os meus fellow-humans, fellow-animals, fellow-rocks, fellow-plants, fellow-oceans. Sabemos já muito acerca das nossas origens e evoluções, tudo, naturalmente, descodificado na nossa linguagem, nas mais diversas linguagens que a nossa consciência de humanos criou. Mas esse muito é nada. E tudo o resto é incógnita, mistério, assumpção. E não posso, por isso não quero, chamar deus a esse mistério, não posso, por isso não quero, chamar deus a isso que sinto que nos une a tudo. "Deixa de ser antropomórfica", diz-me a minha querida e católica e brilhante Raquel. Mas não sou eu que sou antropomórfica. É a palavra deus e a consciência que é atribuída ao conceito, são elas que são antropomórficas. Têm uma história, têm milénios de histórias, de contos, de mitos, de lendas, de mentiras. Einstein, como refere Dawkins, usou a palavra "deus" para falar desse absoluto, sem a conotação antropomórfica. Não me arrogo poder julgar a sua opção, eu, mera pulga intelectual face a um génio de tal calibre. Mas para mim, essa opção não é válida. A palavra deus, para a quase totalidade dos crentes, implica uma voz, uma sarça ardente, um dedo criador, um triângulo na cabeça, uma pomba branca por mensageiro, uma consciência e uma hierarquia. Tudo coisas absolutamente humanas. O que faz com que me sinta desonesta se atracar tal palavra à minha noção daquilo que nos religa a todos.

Somos, pela nossa consciência, um animal auto-centrado. E criámos os nossos deuses à nossa própria imagem. Mas numa coisa não há volta a dar-lhe. Re-re-citando Russell [que Dawkins cita e que Luís Grave Rodrigues, que no Random Precision me deu a conhecer este vídeo, também cita], not enough evidence, God, not enough evidence. E para mim uma coisa é a religião. Outra, talvez paralela, mas não consubstancial, é a poesia. E as suas humanas metáforas.
Blue!


Roma, Fevereiro de 2007

Desta vez não passei na Piazza di Spagna... mas escutei Keats novamente, do outro lado da Via dei Fori Imperiali. A mesma personagem, a caneca desta vez azul, a mesma miséria, um ano e meio depois. Do outro lado da larga avenida seguem as obras de restauração de um glorioso passado.

ANSWER TO A SONNET ENDING THUS:
Dark eyes are dearer far
Than orbs that mock the hyacinthine bell -

J.H.Reynolds


Blue! 'Tis the life of heaven, the domain
Of Cynthia, the wide palace of the sun,
The tent of Hesperus, and all his train,
The bosomer of clouds, gold, grey and dun.
Blue! 'Tis the life of waters - Ocean
And all its vassal streams, pools numberless,
May rage, and foam, and fret, but never can
Subside, if not to dark blue nativeness.
Blue! Gentle cousin to the forest-green,
Married to green in all the sweetest flowers -
Forget-me-not, the blue-bell, and, that queen
Of secrecy, the violet. What strange powers
Hast thou, as a mere shadow! But how great,
When in an eye thou art, alive with fate!


John Keats


Roma, Out. 2005
26 Febbraio, Piazza della Rotonda


Michelangelo Merisi, dito il Caravaggio, La vocazione di San Matteo
Igreja de São Luís dos Franceses, Roma
[a foto não é minha e a sensação é pessoal e intransmissível, infelizmente... ou naturalmente]
clicar na imagem para ampliar


A cidade entre mil mundos. A cidade que me comove como se minha fosse, ou porque minha não é me faz chorar.
Parto hoje para norte. Chego à janela e a despedida anuncia-se doce no som de um saxofone no Largo della Torre Argentina, o largo do teatro que foi nosso uma vez mais, o bella ciao, ciao, ciao...
Uma última e solitária hora em San Luigi dei Francesi, bebendo luz frente à vocação de Mateus, o momento antes de se erguer da mesa da usura, à inspiração de Mateus, o momento antes da escrita do evangelho, ao martírio de Mateus, o momento depois do trespasse da espada. Michelangelo Merisi, detto il Caravaggio. Descobriu-se esta semana que afinal nasceu em Milão. Talvez amanhã se descubra que nasceu em toda a parte, da mesma forma que me faz nascer e renascer novamente em São Luís dos Franceses. Não posso escrever mais. Há pulsações que não se descrevem.
A pulsação de Roma, não se descreve. Demasiado divina. Demasiado pagã. Demasiado humana. Tudo em demasia. Riqueza e miséria em demasia. História, espírito, génio em demasia. Beleza em demasia.


San Luigi dei Francesi, Roma
23 de Fevereiro de 2007

segunda-feira, março 05, 2007

Post explicativo
ou
Bem sei que às vezes escrevo como se esperasse que me lessem o pensamento, desculpem lá...


Aqui vai, então, a teoria económica pós-friedmaniana do colchão, segundo a qual Salazar foi um grande economista; por passos:

passo 1. descoser um colchão [de preferência não um fouton, além de ser um desperdício, tem pouco espaço viável de armazenamento - ou antes, de crescimento económico];

passo 2. recheá-lo com as notas, as acções da bolsa ou os lingotes de ouro, consoante se seja um mero avarento, um burguesito armado aos cucos, ou um tirano reprimido e repressor ansioso por ficar bem na fotografia histórica - coisa que aparentemente se reduz à taxa de ocupação permanente dos cofres estatais;

passo 3. voltar a coser o colchão. Ou fechar a porta do cofre. E a do país, também, não vão o diabo e os subversivos tecê-las.

domingo, março 04, 2007

E la nave va...


cenário de João Mendes Ribeiro para o Dom João de Molière encenado por Ricardo Pais para o TNSJ
Fonderie Teatrali Limone [Moncalieri], Teatro Stabile di Torino
1 de Março de 2007


Em Roma levámo-los connosco na desenfreada corrida para o abismo e eles reagiram à italiana. Em Turim, seguimos vogando na tempestade de um espectáculo que amadurece connosco e que nos amadurece. Em Abril faltar-nos-á uma peça importante do puzzle, outra lhe sucederá. E novamente nos desfiaremos neste navio de retalhos onde vivemos tanto, amamos tanto e somos tão felizes.

Em Lisboa, ontem, colapsei no sofá e dormi uma longa e merecida noite. Exausta e feliz. Como diz essa pecinha que não regressará em Abril à Praça da Batalha, há vidas mais fáceis, mas para mim não prestam.



Amanhã lança-se o DVD, filmado em espectáculos feitos há quase um ano atrás. Não se compra no sítio do costume, mas no Foyer do Teatro Nacional de São João, no Porto. E é o mesmo espectáculo, mas não é o mesmo espectáculo, o espectáculo que continuou a crescer em Lisboa e agora em Itália. E é bom que assim seja. Porque a constância só é boa para os ridículos. E ninguém dirá, aconteça o que acontecer, que somos capazes de arrependimento.