sábado, janeiro 27, 2007

No mar da metrópole

Lisboa, sexta-feira à noite. Um amigo querido guardou convites no São Luiz, e eu a despachar-me com uma incipiente vantagem face às horas que correm para conseguir estar no Chiado antes das nove, hora a que começa o espectáculo. A minha companhia não há maneira de chegar ao Campo Pequeno, leva mais de uma hora para chegar de São Pedro do Estoril a Lisboa, metade dessa hora passada já dentro da cidade, a grande cascata do desperdício humano apinhando-se nos semáforos, nos cruzamentos, rolhas de fumo e ruído impedindo a circulação e a respiração. Bom, oito e meia, dá para chegar a horas. Acometemos pelo túnel, entramos na carruagem, troca no marquês e espera um quarto de hora pelo metro da linha azul. É de ficar doente... numa capital europeia, numa sexta-feira à noite, na estação mais central das centrais, passa uma composição de quinze em quinze minutos. Impossível chegar a horas. É isto uma capital. É também por isto que há quem prefira asfixiar atrás de um volante.

Chegamos quase com dez minutos de atraso, deixam-nos entrar para um camarote de ladecos, em que não se vê metade do palco e o som é inenarravelmente mau. Um sofrimento, não conseguir entender as palavras de Melville. No camarote ao nosso lado um grupinho de meninas ri bem alto e a despropósito - deve ser uma ligação automática, se tem o Miguel Guilherme é porque é comédia -, e canta por cima dos actores em cena. Respira fundo, respira fundo. Seja, na segunda parte descemos para a plateia, será melhor. Mas não. Cá em baixo, atrás de mim alguém mastiga pastilha elástica ruidosamente, continuam os risos a despropósito e os ruídos parasitas e inexplicáveis. Do outro lado da coxia uma criança enrola-se no colo do pai, e tenta sobreviver à noite palavrosa que a ultrapassa e que possivelmente assegurará que durante anos não terá vontade de ler duas frases de Herman Melville. Cá em baixo percebe-se finalmente que a energia do discurso foi entregue por alguns actores à potência da amplificação. As palavras embrulham-se, a elocução é trapalhona, sem recorte, sem direcção. O dispositivo cénico é interessante, mas as luzes não o fazem render como poderiam - chega-se ao fim e pensa-se, pois, teve os seus momentos. A personagem de Ismael é inexistente, a de Ahab é inconsistente [e quem me conhece sabe o que eu gosto do Miguel Guilherme], apenas o Queequeg de Miguel Borges e às vezes o imediato de Ricardo Aibéo parecem ter um sopro de vida sobre o palco; o espectáculo não tem um conceito que o segure, não serve a monumental literatura em que assenta, é uma baleia branca sem força para submergir e levar-nos com ela, enrodilhados nos arpões qual índio augúrio de desgraça. E todos em cena parecem sabê-lo. A tragédia não é trágica, o coração não pula. Há actores. Há um grande texto. Há meios. Só não há teatro.



Bom, esperar o generoso ofertador dos convites para dois dedos de conversa, matar as saudades e beber um copito e já há uma hora que passou a uma da manhã. É preciso um táxi para voltarmos ao Campo Pequeno. A voz do Júlio Iglesias recebe-nos, versões em inglês naquele maravilhoso sotaque espanhol que nos garante umas boas gargalhadas Fontes Pereira de Melo acima. Pergunta-nos o latino rádio do táxi, who's gonna drive you home, tonight?, e a conversa sobre o referendo desmancha-se em risos cúmplices. Passa o Saldanha e o Julito clama I wanna know what love iiiiiis, I want you to shoooowww meeeeeee! Nessa altura já nos passou a vergonha e no banco de trás nasce um coro gospel, com palmas e cabecinhas a abanar. O motorista ri-se e conta, satisfeito, "olhe, já transportei pretos, brancos, portugueses, alemães, japoneses, italianos, ponho toda a gente a cantar com este disco; sim, porque realmente o Júlio Iglesias faz parte da cultura do mundo inteiro..." Nós, claro, continuamos a rir, os motivos já misturados entre o azeiteiro sotaque espanhol e a deliciosa e honesta conversa do motorista. Que a música é boa por causa disto. A música alimenta-me, diz feliz, e junta as pessoas. É na próxima à direita, aviso-o, e ele responde logo que era exactamente onde ele pensava, só não nos tínhamos entendido bem no início da viagem. Entre risos e desejos de bom fim-de-semana concluímos o óbvio: devíamos ter começado logo por cantar, com certeza ter-nos-íamos entendido melhor.

1 comentário:

MPR disse...

O Moby Dick é sem dúvida um tiro na água. Felizmente não é a única coisa em palco...