quarta-feira, janeiro 24, 2007
Katsushika Hokusai [1760–1849]
Sob a onda de Kanagawa [c.1830-5]
Trustees of The British Museum, Londres
É sempre a arriba do Rio da Prata. Maríamente, um feliz acaso. Pedras, diz a voz. Recolhe pedras para colocar nessa trouxa de pano; vais ter de subir a arriba com elas às costas, vê lá, não exageres na carga. Recolho os seixos. Com certeza, se se respiga pedras, são precisamente as mais belas, vítreas e perfeitas que as nossas mãos escolhem. A trouxa está suficientemente cheia. Escala a arriba, diz a voz. Não é território novo, não mete medo, e lá em cima aguardam as silvas carregadas de camarinhas. O corpo ofega um pouco. Não, frase estranha. No entanto bastas vezes na língua refere-se o corpo como sendo uma entidade em si mesmo, tenho o corpo dorido, tenho o corpo em forma, tenho o corpo mole, tudo coisas que se podem abreviar com um estou, estou dorido, estou aqui. Mas ofegar? O corpo não ofega, o homem ofega. Talvez porque o verbo venha directamente dos pulmões, vizinhos tão íntimos do coração, do seio, do imo. Refaça-se a frase, portanto, eu ofego um pouco terminada a subida, as pedras aumentaram subitamente de peso, não foi este o peso que eu escolhi para a minha trouxa de pano. As pedras, diz a voz, são tudo aquilo de que quero livrar-me. Compete-me livrar-me delas como se energia fossem, livrar-me da energia como se de matéria fosse feita. Chego à beirinha. De preferência, num sítio não muito perigoso, diz a voz, é escusado. Mas que posso fazer? Tenho na língua este gosto do ar no fim da terra... hábitos de infância, nem mais. E abro o saco; os seixos deram lugar a pequenas rochas rugosas e argilosas, rijas e ásperas, que arranham as mãos. Atiro uma a uma. Medo. Ódio. Desconfiança. Medo, novamente, a pedra é diferente mas o nome é o mesmo. Dependência. Cada pedra me arranha a mão e voa rodopiando na direcção do mar, onde se afunda gloriosamente. Fraqueza. Olha, no fundo da trouxa está o seixo da fragilidade, quase que ia por engano, mas não. Raiva. Desânimo. Por último, mais uma vez, uma obtusa pedra de Medo rodopia no vazio. Olho as mãos arranhadas, tintas de gotas vermelho-sangue e sorrio para elas: não eram seixos lisos, é a vida. Ergue-te, diz a voz. Ergo-me, dobro a trouxa, e regresso à areia, de pés afundados na rocha em estilhaços, para agradecer ao mar a repetida generosidade de me limpar o corpo e o espírito.
Este post é dedicado à ME
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Olá Joana.
Muito bonito o texto! Voltei a "ouvir-te" como nesse dia. Agradeço aos meus Deuses o poder viver experiências com quem me confia a sua Alma e partilha comigo o seu Caminho.
Obrigada por seres e estares com tanta disponibilidade e inteligência.
Um grande abraço e boas "viagens", tanto na terra como nas nuvens.
ME
Minha querida... obrigada. :)
Enviar um comentário