sexta-feira, janeiro 15, 2010

Ich bin eine Lesbe.


foto de M.Cruz


Chamo-me Joana Manuel. Sou actriz de profissão, é verdade, ao contrário da minha amiga e companheira de activismo Raquel Freire, que é realizadora de cinema e nada obscura enquanto tal. No dia 10 de Outubro de 2008 estive nas escadarias da Assembleia da República, vestida de noiva e com uma barriga falsa, para participar numa acção de protesto e cidadania contra o desfecho antecipado da discussão que no parlamento decorria acerca das propostas de BE e PEV para a legalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A acção era simples, directa e clara nos seus objectivos: mediatizar um protesto contra uma injustiça social e política, radicada no preconceito e na discriminação de cidadãos da República em função da sua orientação sexual, em desrespeito claro do artigo 13.º da nossa Constituição Democrática. Encenámos dois casamentos, entre mim e a Raquel Freire, e entre o Paulo Jorge Vieira e o Marlon Francisco, que também se dispuseram dar a cara pela luta naquela acção. O objectivo foi alcançado, as imagens surgem sempre que se debate o tema, e durante o ano que entretanto passou foram objecto de discussão e questionamento. No passado dia oito de Janeiro foi com uma alegria incompleta que assisti nas galerias à quase totalidade do debate parlamentar que resultou na aprovação desta lei para o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, e na sequência do protesto de 2008, participei num brinde e expressei-me em boa consciência sobre o dia apesar de tudo histórico que estávamos a viver. Naturalmente os media deram-nos atenção. Mais uma vez o objectivo foi alcançado.

Espantou-me, no entanto, e entristeceu-me assistir à noite à reportagem da jornalista Ana Romeu para o telejornal da RTP. Ao rever a dita reportagem na internet ficou-me ainda o sabor amargo da manipulação e do mau jornalismo. Mas isto são dissertações para outras repartições. Sucede que a jornalista termina a sua reportagem dizendo, em off, o seguinte: “talvez por isso se explique que estas imagens que vão correr mundo reflictam essa vergonha e o preconceito que ainda subsiste: estas duas mulheres são actrizes, nenhum casal homossexual se disponibilizou a assumir este papel.” Durante os dias que se seguiram, foram vários os ecos que recebi desta reportagem: acudam, a mulher não é lésbica, é uma actriz contratada, isto é tudo uma palhaçada. Reservo-me, reserva-me a democracia o direito de responder.

Fala-se por aí da minha heterossexualidade como se a comunicação social tivesse descoberto um facto extraordinário e obscuro. Não descobriu, ele nunca foi escondido, desde a acção original dos casamentos encenados em Outubro de 2008. Sabem que não sou lésbica porque eu o disse. A luta é minha porque os homossexuais deste país são meus concidadãos e eu respeito-os e defendo-os como tal. Ao fazê-lo estou a defender-me a mim. Eu sou eles. Eles são parte do meu nós.

A acção original —ou deveria dizer, o pecado— foi planeada pelas Panteras Rosa (das quais a Raquel Freire é membro desde a formação do grupo em Portugal em 2004) face à inevitabilidade do chumbo das propostas de Outubro de 2008, em resultado da disciplina de voto imposta pelo PS aos seus deputados. No verão de 2004, um mês antes da primeira acção das Panteras contra a discriminação e a homofobia, na qual participou a Raquel, eu cantei a convite da ILGA-Portugal no Arraial Pride então atirado por Pedro Santana Lopes para o Parque do Calhau, em Monsanto. À clandestinidade sempre convieram as matas mais do que as praças públicas, imagino que tenha sido o raciocínio. O nosso percurso paralelo, meu e da Raquel, de algum modo começou nesse ano. E cinco anos depois, cinco anos de luta e de expressão contínua acerca da igualdade de direitos, foi natural o gesto que fez a Raquel convidar-me para ser o seu par nesta performance interpelante. Esclareçamos então de uma vez: nenhuma outra mulher, lésbica ou não lésbica, se recusou a “assumir o papel”, porque a nenhuma outra mulher foi proposto que “assumisse o papel”. Ninguém me contratou. Ninguém me pagou. Assumi uma luta que é minha e dei a cara por ela naquele momento porque assim se proporcionou. E orgulho-me disso.

Não estive em frente à AR como actriz, mas como activista. Sou —ou estou— heterossexual, é verdade, mas isso é do meu foro privado. Do meu foro público é a cidadania e a luta por uma sociedade mais democrática e mais igual. Esta luta é tão minha como de qualquer lésbica, e ir para a cama com homens não me retira o direito de dar a cara por aquilo em que acredito. Sou cidadã eleitora e contribuinte da República Portuguesa e ofende-me essa discriminação. Para nós, naquele momento como hoje, a orientação sexual dos intervenientes foi absolutamente irrelevante, mas vejo que há muitas pessoas que perfilham um estranho conceito de cidadania. Como dizia Brecht, depois de levarem os ciganos, os judeus, os pretos, os homossexuais, os comunistas, talvez levem essas mesmas pessoas e elas comecem a perceber do que falo. Lagarto lagarto lagarto.


[artigo publicado no Público de hoje, na secção Espaço Público; porque chega de falatório mal-intencionado; porque temos muito que aprender no que toca a democracia, cidadania e liberdade de manifestação e expressão]



7 comentários:

Hélder António disse...

Boa noite, Joana.
Saliento uma frase do seu notável artigo:
«À clandestinidade sempre convieram as matas mais do que as praças públicas».
Embora os obscurantistas do(s) costume(s) as tentem desacreditar, são pessoas como a Joana e a Raquel que contribuem para que outras pessoas deixem ou possam deixar de viver na clandestinidade.
Muito obrigado.
Bom fim-de-semana.

f. disse...

olá, joana. a discussão anterior foi em outubro de 2008 (10 de outubro de 2008) e não de 2009.

bj

Manel disse...

Claro, f., foi uma gralha estúpida. Se reparares no primeiro parágrafo digo 2008 e depois baldo-me. :p

beijos e obrigada.

Tiago disse...

Grande Manel! Então não é que tantas e tantas vezes vi essas imagens e ainda não tinha percebido que eras tu, minha magana?! Devia ser do transformismo em noiva-barriguda, que me desviou as atenções!!! Em relação às "bocas da reacção", nada de novo. Se não é do cú, é das calças...
Tenho saudades, "mlher", diz coisas no MêSêNê! Não tás a ver quem sou? It is I, Leclerc! Puxa pela massa cinzenta e cá espero novidades... ;)

Manel disse...

então não sei quem és, man? ainda outro dia a Rodrigues perguntava se alguém sabia de ti. não tens feicebuque, ó bicho esquisito? o mênêsê já era... :p

estás bem? *
beijos.

K. disse...

És simplesmente fantástica, sabias? :*)

Tiago disse...

Vem a meus braços, caraças!
Engraçado, que ainda hoje tive uma conversa a explicar porque me tinha afastado das redes sociais e afins... Valores mais altos se têm levantado, daí que tenha desaparecido para o underground novamente. Mas tenho acompanhado de longe a longe o que se vai passando nos vossos riachos.
Que se lixe! Vou mazé fazer um registo no Fuçasbook um destes dias e a gente depois conversa! ;)

Beijos!