domingo, janeiro 17, 2010

a maldição branca — o Haiti somos nós.

por Eduardo Galeano



No primeiro dia deste ano, a liberdade cumpriu dois séculos de vida no mundo. Ninguém se apercebeu, ou quase ninguém. Poucos dias depois, o país do aniversário, o Haiti, passou a ocupar algum espaço nos meios de comunicação; mas não pelo aniversário da liberdade universal, apenas porque se desatou ali um banho de sangue que acabou por enredar o presidente Aristide.


O Haiti foi o primeiro país onde se aboliu a escravatura. Não obstante, as enciclopédias mais difundidas e quase todos os manuais escolares atribuem à Inglaterra essa honra histórica. É verdade que um belo dia mudou de opinião o império que havia sido campeão mundial do tráfico negreiro; mas a abolição britânica ocorreu em 1807, três anos depois da revolução haitiana, e foi tão pouco convincente que em 1832 a Inglaterra teve de voltar a proibir a escravatura.


Nada tem de novo o ignorar do Haiti. Desde há dois séculos, sofre desprezo e castigo. Thomas Jefferson, grande figura da liberdade e proprietário de escravos, advertia que do Haiti provinha o mau exemplo; e dizia que havia de “confinar a peste nessa ilha”. O seu país escutou-o. Os Estados Unidos demoraram sessenta anos a outorgar o reconhecimento diplomático à mais livre das nações. Entretanto, no Brasil, chamava-se haitianismo à desordem e à violência. Os donos dos braços negros mantiveram-se a salvo do haitianismo até 1888. Nesse ano, o Brasil aboliu a escravatura. Foi o último país do mundo.


O Haiti voltou a ser um país invisível, até ao próximo massacre. Enquanto ocupou os écrans e as páginas, no princípio deste ano, os media transmitiram confusão e violência e confirmaram que os haitianos nasceram para fazer bem o mal e para fazer mal o bem.


Da revolução para cá, o Haiti só foi capaz de oferecer tragédias. Era uma colónia próspera e feliz e agora é a nação mais pobre do hemisfério ocidental. As revoluções, concluíram alguns especialistas, conduzem ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana para o fratricídio provém da selvagem herança que vem de África. O mandato dos antepassados. A maldição negra, que empurra para o crime e para o caos.


Da maldição branca, não se falou.

A Revolução Francesa abolira a escravatura, mas Napoleão ressuscitou-a.


  • Qual foi o regime mais próspero para as colónias?

  • O anterior.

  • Pois, que se reinstitua.

E, para reimplantar a escravatura no Haiti, enviou mais de cinquenta navios cheios de soldados.


Os grandes negros venceram a França e conquistaram a independência nacional e a libertação dos escravos. Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana de açúcar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram a “dívida francesa”. França cobrou cara a humilhação infligida a Napolão Bonaparte. Acabado de nascer, o Haiti teve de comprometer-se a pagar uma indemnização gigantesca, pelo dano que havia causado ao libertar-se. Essa expiação do pecado da liberdade custou-lhe 150 milhões de francos de ouro. O novo país nasceu com o pescoço estrangulado por essa corda: uma fortuna que actualmente equivaleria a 21,700 milhões de dólares ou a 44 orçamentos do Haiti dos nossos dias. Muito mais de um século demoraria a ser paga a dívida que os juros iam multiplicando. Em 1938 cumpriu-se, por fim, a redenção final. Por essa época, o Haiti pertencia já aos bancos dos Estados Unidos. Em troca dessa fortuna, a França reconheceu oficialmente a nova nação. Nenhum outro país a reconheceu. O Haiti tinha nascido condenado à solidão.


Nem sequer Simón Bolívar o reconheceu, mesmo devendo-lhe tudo. Barcos, armas e soldados, dera-lhe o Haiti em 1816, quando Bolívar chegou à ilha, derrotado, e pediu amparo e ajuda. Tudo lhe deu o Haiti, com a única condição de que libertasse os escravos, uma ideia que até então não lhe tinha ocorrido. Depois, o herói triunfou na sua guerra de independência e expressou a sua gratidão enviando para Port-au-Prince uma espada de presente. De reconhecimento, nem falar.


Na realidade, as colónias espanholas que tinham passado a nações independentes continuavam a ter escravos, ainda que algumas tivessem leis que o proibiam. Bolívar ditou a sua em 1821, mas a realidade não se deu por achada. Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravatura; e a Venezuela em 1854. Em 1915, os marines desembarcaram no Haiti. Ficaram dezanove anos. Para começar, tomaram imediatamente para si a alfândega e a cobrança de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até que este se resignasse a assinar a liquidação do Banco Nacional, que se converteu numa sucursal do City Bank de Nova Iorque. O presidente e todos os outros negros tinham a entrada vedada nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravatura, mas impuseram o trabalho forçado para as obras públicas. E mataram muito. Não foi fácil apagar os fogos da resistência. O chefe guerrilheiro, Charlemagne Péralte, cravado em cruz contra uma porta, foi exibido, para escárnio, em praça pública.


A missão civilizadora conclui-se em 1934. Os ocupantes retiraram, deixando em seu lugar uma Guarda Nacional fabricada por eles, para exterminar qualquer possível assomo de democracia. O mesmo fizeram na Nicarágua e na República Dominicana. Algum tempo depois, Duvalier foi o equivalente haitiano de Somoza e de Trujillo. E assim, de ditadura em ditadura, de promessa em traição, se foram somando as desventuras e os anos.


Aristide, o cura rebelde, chegou à presidência em 1991. Durou poucos meses. O governo dos Estados Unidos ajudou a derrubá-lo, levou-o, submeteu-o a tratamento e uma vez reciclado devolveu-o, nos braços dos marines, à presidência. E novamente ajudou a derrubá-lo, neste ano de 2004, e novamente houve matança. E novamente vieram os marines, que voltam sempre, como a gripe.


Mas os peritos internacionais são muito mais devastadores do que as tropas invasoras. País submetido às ordens do Banco Mundial e do FMI, o Haiti obedecera às instruções sem piar. Pagaram-lhe negando-lhe o pão e o sal. Congelaram-lhe os créditos, apesar de ter desmantelado o Estado e liquidado todos os apoios e subsídios que protegiam a produção nacional. Os camponeses cultivadores de arroz, que eram a maioria, converteram-se em mendigos ou balseros. Muitos foram e continuam a ir parar às profundezas do Mar das Caraíbas, mas estes náufragos não são cubanos e raras vezes aparecem nos jornais.


Agora o Haiti importa todo o seu arroz dos Estados Unidos, onde os peritos internacionais, que são gente bastante distraída, se esqueceram de proibir os apoios e os subsídios que protegem a produção nacional. Na fronteira onde termina a República Dominicana e começa o Haiti, há um grande cartaz que adverte: El mal paso.


Do outro lado está o inferno negro. Sangue e fome, miséria, epidemias.


Neste inferno tão temido, todos são escultores. Os haitianos têm o costume de recolher latas e ferros velhos e com antiga mestria, recortando e martelando, as suas mãos criam maravilhas que se oferecem nos mercados populares.


O Haiti é um país deitado para a lixeira, eterno castigo pela sua dignidade. Ali jaz, como se fosse limalha. Espera as mãos da sua gente.



Publicado em Página/12, Buenos Aires, domingo 4 de Abril de 2004.




estórias que não se contam, culpas que não se pagam. ajudem a AMI, a Cruz Vermelha, a UNICEF, a OIKOS, mas não se esqueçam de ir ao fundo da tragédia. AQUI assinem pelo único acto decente que resta ao poder do hemisfério norte. Drop Haitian Debt, NOW!

1 comentário:

alien aboard disse...

é uma vergonha a hipocrisia do mundo ocidental, branco e "civilizado"...eu já assinei.

Obrigada por mais esta lição de história